Quer saber tudo sobre o projecto de revisão constitucional que o Observador agora traz a público? Os cinco académicos que o escreveram explicam aqui o seu trabalho e justificam as suas opções.
1. Será que a Constituição precisa de ser revista? Se subjacente a esta pergunta estiver a ideia de que a Constituição é a culpada de todos os males e se vir a respetiva alteração como uma panaceia universal, então a resposta é claramente negativa: não, a Constituição não precisa de ser revista.
É certo que cada vez há mais vozes que pedem uma revisão profunda da Constituição – e algumas até uma IV República. Algumas dessas vozes verberam contra os inúmeros obstáculos e bloqueios ao desenvolvimento económico que a Constituição terá criado. Mas o cotejo da generalidade das estatísticas relevantes dos últimos trinta e oito anos, comparáveis às das demais democracias europeias, acaba com a possibilidade de dar algum respaldo empírico a esse exercício de retórica.
A isto acresce que estas posições são geralmente estribadas em preconceitos ideológicos, vendo a possibilidade de revisão constitucional como uma “vingança da história” – esquecendo, desta forma, que a construção da democracia foi (e tem de ser) possível apesar (e por causa) de discordâncias ideológicas profundas.
Por outro lado, é também comum ancorarem-se em leituras nominais e teóricas de uma Constituição que na prática provou, sobretudo devido ao papel essencial de uma jurisprudência constitucional que sempre foi suficientemente flexível para buscar as soluções que, em cada momento, se impunham. Será preciso recordar que, quando a Constituição determinava que o acesso ao Serviço Nacional de Saúde era “gratuito” (e não ainda “tendencialmente gratuito”, como passou a ser a partir da revisão constitucional de 1989), o Tribunal Constitucional não hesitou em recorrer a um “conceito normativo de gratuitidade” para aceitar a criação de taxas moderadoras? É que é aí – na vida real do dia-a-dia, mais do que no texto – que a Constituição importa.
A outro tempo, deve reconhecer-se que grande parte dos artigos da Constituição que mais perplexidades geram – os relativos à Constituição económica – caiu em desuso e/ou foi (ou foi sendo) revogada. Em alguns desses casos, devido à crescente marginalidade dos constitucionalismos nacionais nos atuais contexto e momento do constitucionalismo europeu.
Outras vozes centram a sua atenção num ponto que merece reflexão mais detida: o esgotamento de algumas das soluções institucionais em vigor. Se se trata de uma linha de argumentação que tem a virtualidade de salientar um conjunto de problemas e ineficiências reais (e que, só por isso, deve ser tida em conta), a verdade é que a mesma também pode ser perniciosa. Isto, essencialmente por duas razões.
Por um lado, porque é um tanto desresponsabilizadora: acaba por funcionar como uma desculpa para tudo o que os sucessivos Governos da República não conseguiram concretizar. Ao mesmo tempo, constitui um álibi para tudo o que eventualmente não se venha a (conseguir) fazer nos próximos anos.
2. Um dos problemas da Constituição portuguesa é, aliás, o excesso de revisões constitucionais que sofreu. Com sete revisões em trinta e oito anos, temos vivido em permanente estado de revisão constitucional – ou, como já foi referido por outros, num estado de “frenesim constitucional”, de “constitucionalismo aparente” ou de “cio constitucional”.
Quem fez as contas, diz que já foram alteradas mais de setecentas e trinta e cinco disposições constitucionais; algumas destas disposições foram alteradas praticamente tantas vezes quanto a própria Constituição.
Com este estado de aceleração constitucional e de legalismo exacerbado, tão português, não há, obviamente, qualquer estabilidade – atributo essencial para que qualquer ordem constitucional se possa desenvolver com normalidade e no quadro institucional que gera.
3. Nada que se acaba de dizer significa que temos a Constituição perfeita. Longe disso. Longa, programática, contraditória: os defeitos são muitos e o pecado é original.
Para ser aprovada, mesmo com o voto contra do CDS, a Constituição teve de incorporar os contributos que foram dados por praticamente todos os partidos, desde a extrema-esquerda à democracia cristã, para que ninguém na Assembleia Constituinte pudesse dizer que tinha perdido. Intrinsecamente compromissória, a Constituição de 1976 foi, como também outros o disseram, a “Constituição possível”.
4. Mas, se a Constituição não precisa de ser revista, é urgente fazer um debate constitucional sério. Neste contexto, foi-nos lançado há uns anos um desafio pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, que agora se recupera a convite do Observador: apresentar um projeto de revisão constitucional da autoria de cinco estrangeirados nascidos e criados depois de a Constituição ter sido aprovada.
Surpreendentemente ou não, os pontos de acordo entre todos foram muito mais do que aqueles que suscitaram discórdia profunda. Em termos de método, cumpre salientar que, embora este projeto seja o resultado de um trabalho conjunto, as opções individuais não foram necessariamente aprovadas por todos os participantes, mas sujeitas a discussão e, se necessário, votação.
A final, apresenta-se o texto do articulado resultante em singelo, isto é, como diz a própria Constituição, com “as alterações […] inseridas no lugar próprio, mediante as substituições, as supressões e os aditamentos necessários”.
5. O presente trabalho integra um conjunto significativo de propostas substanciais, ora pragmáticas, ora experimentalistas – mas sempre enformadas por preocupações teóricas e de eficiência.
Para além dessa tónica orientada para a resolução de problemas concretos, os eixos centrais que o orientaram passaram por três coordenadas: melhorias técnicas e de sistematização; diminuição da carga programática e excessivamente detalhada de muitos dos artigos da Constituição; e redução da regulação constitucional ao efetivamente essencial.
De entre as benfeitorias propostas, foram apagados os artigos com conteúdo meramente remissivo – designadamente, a lei. Se “são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional”, cabe à lei fazer as escolhas relevantes – e não à Constituição anunciá-lo, como se de um mordomo se tratasse.
Também se aproveitou a oportunidade para resolver algumas querelas doutrinárias desnecessárias – a título de mero exemplo, a utilização da expressão “tratado internacional” em lugar da trilogia “convenção, tratado e acordo internacionais”.
Com artigos que descem ao detalhe de determinar que “Portugal preconiza a abolição do imperialismo”, a Constituição assume que tudo o que não for dito pode e será usado contra a ordem constitucional portuguesa, como se esta existisse num vácuo de valores e ideias.
De certa forma, a Constituição ficciona a inversão do nexo texto-valores, assumindo que é o texto que cria as preocupações e valores comuns e que, portanto, sem ele, os mesmos deixam de existir. Trata-se de um fenómeno que alimenta o medo do nada, como se sem a Constituição, tal como ela é, a vida se tornasse anárquica e privada de bom senso.
De uma filosofia e de uma realidade jurídico-constitucional paternalista que permitem sempre que as culpas sejam partilhadas com a entidade paternal e que escondem e apagam a dimensão livre do agir individual no caso concreto.
Por fim, na Constituição só deve ter assento o que é fundamental. O que é conjuntural pertence à política quotidiana e à espuma dos dias. E são os órgãos de soberania competentes – designadamente o Parlamento e o Governo – que têm a responsabilidade de conduzir essa política.
A título de exemplo, a Constituição não deve servir de escape para a consagração de limites ao endividamento. Estes devem ser discutidos e, se necessário, alterados, nos fóruns políticos e económicos adequados – mas não constitucionalizados.
Não só porque a introdução de uma cláusula de equilíbrio orçamental na Constituição, na prática, de nada serviria (nem para acalmar os mercados, nem para efetivamente impedir déficits excessivos), como sobretudo porque uma Constituição não serve para isso.
É claro que se poderá defender que um tal expediente teria a vantagem de fazer subir o nível da discussão orçamental para o nível constitucional. Mas não só esse argumento se pode aplicar a todas as hipotéticas opções de constitucionalização de quaisquer matérias (o que bastaria para o afastar), como inverte toda a lógica da separação de poderes.
As propostas feitas neste projecto opõem-se à “fuga para a frente” constitucional que tenha, como tem neste caso, o objectivo de desresponsabilizar as opções de política económica e financeira de Governos da República e de governos regionais sucessivos e a falta de actuação atempada e efectiva dos reguladores competentes.
Acaba-se, enfim, com a ideia do “pelo sim, pelo não, pomos isto na constituição”: só lá está o que é fundamental – ou seja, o que verdadeiramente deve lá estar.
Feito este enquadramento, proceder-se-á, nos parágrafos que se seguem, à apresentação de um sumário das propostas que constam do articulado anexo. Não se espere uma justificação detadalha de todas as opções feitas – o objectivo é, tão-só, proporcionar uma visão panorâmica da proposta.
6. Em matéria de direitos, liberdades e garantias, cumpre salientar que – em conjunto com o direito internacional dos direitos humanos e com as tradições liberais do mundo ocidental –, Portugal tem como um dos valores dominantes a proteção da dignidade da pessoa humana.
Foi a esta luz, e neste contexto, que o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias foi estabelecido. A presente proposta visa apenas racionalizar o sistema vigente, eliminando excessos regulatórios de matérias sem dignidade constitucional, que devem ser deixados às relevantes instituições democraticamente eleitas, confiando no normal funcionamento do sistema político – como é a regra em democracias maduras.
Cumpre salientar, ainda assim, dois aspetos. Por um lado, a introdução de um novo capítulo em que se sistematizam os “direitos, liberdades e garantias nas relações com a administração pública e demais entidades públicas”, antes dispersos pela Constituição.
Por outro, o emagrecimento do capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias nas relações laborais, reduzido ao seu núcleo duro: os direitos de negociação e de ação coletivas.
7. No campo dos direitos económicos, sociais e culturais, a primeira questão que se colocava era a da sua manutenção, ou não, no texto constitucional. Tendo em conta a identidade social genética de raiz da Constituição, essa matriz foi mantida.
De resto, estes direitos estão presentes, em maior ou menor medida, com maior ou menor grau de justiciabilidade, na grande maioria das constituições do pós-II Guerra Mundial e, sobretudo, nas constituições de democracias de “terceira vaga”, como a nossa.
Tomada esta opção, reduziu-se o elenco de direitos ao que se pode considerar ser o núcleo duro da identidade social da Constituição: educação, saúde, segurança social. Eliminam-se, assim, direitos que muito dificilmente têm estatuto fundamental (por exemplo, o direito ao desporto) ou cujo objeto (parcelar) acaba por se esgotar noutros direitos (como é o caso dos direitos à infância ou à juventude).
Mesmo em relação aos direitos escolhidos, reduziu-se a carga diretiva das normas em que os mesmos se encontram plasmados. Na verdade, se os direitos sociais já são, em si, em parte programáticos, há que assumir que as opções fundamentais da respetiva concretização devem competir primariamente ao legislador. Mantiveram-se a garantia institucional da escola pública (gratuita no ensino obrigatório, mas deixando ao arbítrio do legislador em matéria universitária) e de serviço nacional de saúde e de segurança social universal e geral.
O respetivo financiamento, contudo, foi desconstitucionalizado, não só porque a sua sustentabilidade é (neste momento) um enigma, mas também porque a criação de sistemas europeus de saúde (e eventualmente de segurança social) já esteve mais longe (veja-se a recente Directiva sobre cuidados de saúde transfronteiriços).
8. As alterações que se propuseram em matéria de “organização económica” visam, no essencial: eliminar o seu cunho ideológico, abandonar o tratamento de políticas económicas setoriais e reduzir a densidade normativa em matéria financeira, orçamental e fiscal.
Entre vários exemplos desta marca ideológica, que agora se eliminam, destaca-se: a titularidade dos meios de produção como elemento fundamental da organização económica (e a obrigatoriedade de coexistência de titularidade pública, privada e cooperativa) e o planeamento como instrumento preferencial de política económica.
Propõe-se, igualmente, acabar com a ideia que a propriedade pública é uma decorrência necessária da soberania estadual e que um mínimo de bens tem forçosamente de permanecer na esfera pública independentemente de critérios económicos que validem esta opção.
Apesar das sucessivas revisões constitucionais – que contribuíram para a diminuição do relevo ideológico na Constituição –, as incumbências do Estado em matéria económica mantêm uma tendência fortemente socializante e de promoção da autarcia nacional.
Assim, e não obstante a adesão à (então) Comunidade Económica Europeia e a permanente partilha de soberania no seio da União Europeia, a Constituição continua a exigir o condicionamento de atividades e investimentos estrangeiros e a tratar os auxílios de Estado como um instrumento fundamental de política industrial.
A filosofia subjacente às alterações preconizadas é a de que não cabe à Constituição estabelecer um modelo económico ideal que condicione a atuação dos poderes legislativo e executivo, passando Parlamento e Governo a ser os principais responsáveis pela busca das soluções mais adequadas para fazer face a problemas concretos.
Não cabe à Constituição definir um modelo económico concreto a seguir nem aferir da validade de doutrinas científicas cujo sucesso é ditado não pela sua bondade intrínseca, mas pela comunidade científica e ambiente intelectual em que surgem.
Deste modo, propõe-se a eliminação da ‘Constituição económica’ nos moldes atuais e a sua substituição por um paradigma neutro em termos de modelo económico e cingido à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos – particularmente, à sua iniciativa económica privada, propriedade privada e legalidade e não retroatividade dos impostos cobrados pelo Estado.
9. Uma das áreas que mereceu alguma atenção detida – e que tem sido uma das que mais tem sofrido pela sucessão de revisões constitucionais – foi a das fontes de direito. Sistematicamente, foi inserida em parte própria, separada das demais.
E, em termos substanciais, os objetivos que as alterações propostas seguiram consistiram no reforço do primado da Assembleia da República – que se quer, como se verá de seguida, com menos deputados, mas com mais condições de trabalho – e, sobretudo, numa simplificação substancial do sistema de atos legislativos.
Em termos competenciais, a regra continua a ser a da concorrência entre Parlamento e Governo. Mas, uma vez assente esse dado, acaba-se com a dualidade reserva absoluta / reserva relativa da Assembleia da República e fundem-se ambas numa competência exclusiva da Assembleia da República.
Como até agora, algumas das matérias objeto da reserva abrangem apenas as respetivas bases, passando o Governo (e apenas o Governo) a ter competência reservada para o respetivo desenvolvimento.
Assim se acaba com a figura dos decretos-leis (e decretos legislativos regionais) autorizados – verdadeiras fraudes constitucionais cuja prática quase sempre consistiu em primeiro elaborar o diploma autorizado e depois, à imagem deste, esboçar a lei de autorização.
Também a existência de várias maiorias e de trâmites agravados de aprovação de disposições de leis ou de partes de leis (cuja complexidade deixava o respetivo sistema de aprovação nos limites da inteligibilidade) desaparecem, passando a existir apenas três categorias, consoante a matéria: maioria simples, maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções e maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções.
Já em termos de autonomia legislativa regional, o único limite à respetiva atividade legislativa passa a consistir na reserva exclusiva da Assembleia da República.
Por fim, suprimem-se duas figuras espúrias do procedimento legislativo: a referenda ministerial – resquício da monarquia sem qualquer utilidade prática – e a apreciação parlamentar de atos legislativos – se a competência é concorrencial, a Assembleia da República pode simplesmente (ou substitutivamente) revogar os decretos-lei que entenda.
Ainda que não se trate, em rigor, de uma fonte de direito – mas à falta de melhor local para integrar a proposta –,optou-se por eliminar o quórum mínimo nos referendos.
Tal como tem sido defendido por outros, a exigência de 50% de participação, para que o mesmo seja vinculativo, favorece a parte que pretende manter o status quo, na medida em que fazer campanha pela abstenção é o equivalente funcional a fazer campanha pela negação da passagem da alteração legislativa.
Donde, nos referendos o importante é manter a oportunidade de os cidadãos participarem, não exigindo a participação de pelo menos metade dos eleitores para que o resultado seja vinculativo.
10. Sobre o poder político e separação de poderes, a reforma proposta preconiza quatro alterações substanciais.
Em primeiro lugar, uma alteração na natureza do relacionamento do Presidente da República com o restante sistema político, através do alargamento do número de anos do mandato, dos atuais cinco para sete, impossibilitando, concomitantemente, a reeleição para um segundo mandato.
Esta alteração visa, essencialmente, retirar o Presidente da República do jogo eleitoral, fazendo com que as suas palavras e ações sejam menos toldadas por considerações de natureza estratégica que visem assegurar a sua reeleição.
Deste modo, garante-se que, uma vez eleito, o Presidente da República aja efetivamente como o ator político que tem por missão fundamental dotar o sistema político de equilíbrio, estando, por definição, fora de qualquer quadro de competição eleitoral. Aproveitou-se a oportunidade para reforçar alguns dos poderes presidenciais, designadamente em relação a outros órgãos.
Assim, passou a prever-se (entre outros) que seja o Presidente da República a nomear, ouvido o Governo, o Presidente do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República e as chefias militares; bem como a nomear sete juízes do Tribunal Constitucional (proposta que se explicará em detalhe mais abaixo) e o Provedor de Justiça, ambos sujeitos a audiência pública perante a Assembleia da República e confirmação por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções.
Quanto às restantes competências presidenciais, mantêm o seu esqueleto fundamental. Mas claro que, juntamente com o acentuar do primado legislativo do Parlamento, isto equivale a uma certa desgovernamentalização do sistema de governo.
A segunda proposta tenta responder a um problema clássico do sistema político português: os Governos minoritários. É razoavelmente consensual no debate político que os governos minoritários acarretam um conjunto de dificuldades para a qualidade do funcionamento da democracia. Isto redunda numa perda de eficácia do sistema político, que se pretende alterar através da exigência de uma maioria absoluta de deputados em efetividade de funções para a aprovação do programa do Governo, que marca formalmente a sua entrada em funções.
A norma que atualmente está em vigor postula que é a “a rejeição do programa do Governo [que] exige maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções”, sendo que para o Governo entrar em plenitude de funções basta que o seu programa seja apreciado, sem qualquer votação.
A alteração preconizada cria estruturas de incentivos formais e informais à formação de coligações para que se concretize a entrada do Governo em funções. O objetivo final desta alteração é a diminuição do número de Governos minoritários e o fomento de uma cultura de diálogo e formação de coligações – existente, aliás, na esmagadora maioria dos Estados membros da União Europeia.
A terceira proposta diz respeito ao número de deputados à Assembleia da República. Esta ideia tem de ser integrada numa reforma integral do Parlamento, não bastando invocar um conjunto de razões financeiras para diminuir simplesmente o número de deputados.
Como ponto de partida para este debate, importa sublinhar que a diminuição do número máximo de deputados dos actuais duzentos e trinta para duzentos teria um efeito marginal muitíssimo reduzido no rácio deputado/população representada.
Por outro lado, o número de deputados existente na Assembleia da República não é, em si mesma, indicativo da qualidade da fiscalização política e legislativa, nem muito menos da capacidade de especialização, agregação e obtenção de informação que advém dos pequenos grupos no Parlamento – como sejam as comissões parlamentares, onde verdadeiramente reside o poder.
Por tudo isto, propõe-se que a redução do número de Deputados abra a porta a uma reforma da Assembleia da República que utilize os recursos financeiros e humanos libertados pela diminuição dos custos com os deputados na criação de um corpo de funcionários altamente especializados sem qualquer ligação política. Aumentar-se-iam, deste modo, os recursos para a fiscalização quantitativa e qualitativa dos atos do Governo, mas também o apoio técnico para a boa redação das propostas legislativas.
Por fim, propõe-se o fim do monopólio partidário nas candidaturas à Assembleia da República. Se surgirem novas clivagens na sociedade ou interesses que careçam de representação – ainda que locais ou pontuais –, por que razão se deve exigir que os mesmos se devem agregar em partidos políticos? É um círculo vicioso que reflete apenas o axioma de que o sistema não funciona sem partidos. Ainda que se corra o risco da atomização da representação, não se veem vantagens em que só existam partidos políticos agregando interesses ao nível macro.
Não há modelos perfeitos em nenhum dos casos. O que se sabe é que, no caso português, a escolha dos Deputados depende sempre, em primeira (e maioritariamente também última) linha, dos diretórios partidários – sejam eles comissões políticas, federações distritais, secretariados, comité centrais ou mesas nacionais –, que nem sempre se regem por outros critérios que não a lealdade ao partido. Optou-se, por isso, por uma solução que permita, ao nível constitucional, candidaturas de associações de cidadãos, deixando para a lei os detalhes da respetiva regulamentação.
11. No que concerne ao poder judicial, em especial, a presente proposta propõe uma versão minimalista de regulação constitucional. Considerou-se, de facto, que a regulamentação da organização judiciária deve ser deixada ao legislador, ainda que lhe seja exigido que o faça através de procedimentos de aprovação mais agravados, por se tratar de matérias de regime.
A exceção a esta orientação é a matéria da independência do poder judicial e a da chamada questão do “auto-governo das magistraturas” – que se se prefere chamar de “auto-gestão”, porque, na realidade, é disso que se trata.
A existência de uma estrutura de auto-regulação que nomeia, transfere e pune juízes, dotada de todas as garantias de independência, é essencial à democracia e é garantia institucional da independência dos representantes do poder judicial contra interferências políticas.
Mas essa estrutura deve, ao mesmo tempo, possibilitar a fiscalização por parte dos representantes democraticamente eleitos, por forma a que, apesar de independente, a magistratura não deixe de fazer parte da cadeia de accountability do poder democrático.
Com este enquadramento, propõe-se um rearranjo institucional significativo nesta matéria, cujo traço essencial assenta no seguinte: passaria a existir um único Conselho Superior da Magistratura.
Este órgão teria uma composição maioritária de não-magistrados e três atributos essenciais: maiores garantias de independência, profissionalização da gestão e transparência. Independência orgânica e funcional assente, designadamente, num mandato único, longo e não renovável, que acresceria às já existentes garantias de inamovibilidade e de estrita condução da sua atividade sem sujeição a ordens ou instruções.
Profissionalização da gestão, através da exigência do respetivo exercício a tempo integral. Transparência, por fim, pela exigência de que todas as decisões do Conselho sejam publicitadas.
12. Ainda dentro da temática do poder judicial, mas agora centrado na fiscalização da constitucionalidade, o objetivo central foi, no fundo, idêntico: evitar a politização da justiça constitucional para que esta e os seus juízes não se tornem lacaios dos jogos político partidários.
Para isso havia que abrir a designação dos juízes do Tribunal Constitucional a diferentes instituições, bem como ao escrutínio público. Havia ainda que confiar aos cidadãos a defesa da ordem constitucional e a iniciativa para promover a fiscalização da constitucionalidade.
O atual sistema, deixando à Assembleia da República a designação de dez juízes que depois cooptam os restantes, produz três problemas. Em primeiro lugar, converte a simpatia partidária dos juízes numa razão para a escolha dos mesmos, que pode levar à preterição de candidatos de maior qualidade.
Este problema é agravado porque, sendo a Assembleia da República que detém o monopólio da designação, o enviesamento por “cor partidária” está sempre presente.
Finalmente, dada a natureza também política das questões constitucionais a decidir, esta partidarização do sistema põe em risco a independência dos próprios juízes. A proposta que se apresenta procura superar estes problemas, bem como ir um pouco mais além: repartir a designação de juízes entre poderes distintos impede que o referido enviesamento partidário afete todos os eleitos.
Além do mais, três instituições diversas asseguram que, entre os juízes eleitos, o leque de competências seja mais alargado porque cada instituição hierarquizará diferentemente as competências julgadas relevantes. O problema da independência é, também ele, mitigado porque, ao diminuir a proporção de juízes potencialmente eleitos devido à sua cor partidária, diminuirá também a influência destas razões nas decisões do Tribunal.
Finalmente, sendo um órgão unipessoal, o Presidente da República será mais responsabilizado pelas suas escolhas. A introdução de uma audiência pública, perante o Parlamento, em que os candidatos sejam escrutinados e vejam o seu mérito avaliado tem, por sua vez, uma dupla função.
A um tempo, procura reforçar o fator qualidade dos candidatos vis-à-vis o fator cor partidária, já que se tornará politicamente arriscado apresentar candidatos cujo mérito seja duvidoso. A outro tempo, visa incrementar a visibilidade e a comunicação entre o Tribunal Constitucional e os respetivos juízes, por um lado, e a sociedade em geral, por outro.
Quanto aos processos de fiscalização da constitucionalidade, a proposta baseia-se na centralidade da fiscalização concreta. O grande objetivo é limitar a possibilidade de partidarização da justiça constitucional através do fim da representação política na defesa da ordem constitucional. A lógica argumentativa pode ser sumariada da forma que se segue. As questões a apreciar em sede de fiscalização da constitucionalidade são inquestionavelmente políticas, levando a que, através das suas decisões, o Tribunal Constitucional faça escolhas políticas.
Por isso mesmo, atribuir legitimidade para iniciar o processo de fiscalização a órgãos políticos dá-lhes poder para o usarem de forma a forçar o Tribunal Constitucional, na prática, a ter de escolher um “lado” no debate político-partidário.
Aquilo que não foi obtido no jogo político parlamentar pode tentar ser obtido mais tarde, através da justiça constitucional, com a diferença de que quem decide passa a ser um punhado de juízes dotados de legitimidade democrática limitada (e sendo a legitimidade técnica desadequada para o caso, porque questões políticas não são de resposta certo/errado).
Além do mais, precisamente porque a fiscalização pode ser pedida em abstrato – isto é, desligada de qualquer violação/afetação de interesses concretos –, não existe forma de garantir que os interesses defendidos sejam os dos cidadãos representados e não apenas os do jogo político. Por tudo isto, propôs-se a restrição da fiscalização abstrata a dois casos.
Em primeiro lugar, permite-se que o Provedor de Justiça possa pedir a fiscalização da constitucionalidade em abstrato, porque, à partida, representa os cidadãos fora do jogo político-partidário. Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional passaria, obrigatoriamente, a ter de decidir, em processo de fiscalização abstrata, da constitucionalidade de uma norma por si declarada inconstitucional em três casos concretos.
E definindo-se a obrigatoriedade da promoção do pedido por parte do Ministério Público, assegura-se que esta intervenção abstrata não possa ser manipulada por razões político partidárias. Ao mesmo tempo, é uma fiscalização abstrata baseada na experiência e prática do controlo concreto.
13. Voltando agora à matéria institucional, as opções que foram feitas quanto a outros órgãos constitucionais foram claras: retirar do texto constitucional tudo o que não devia lá estar – seja, designadamente, por falta de consenso sobre essas matérias (regiões administrativas), seja por inutilidade (sendo as organizações de moradores o caso paradigmático) – e simplificar ao máximo tudo o que lá ficou.
Justifica-se uma explicação mais desenvolvida no que concerne às regiões autónomas. A opção feita consistiu em passar o essencial da regulação das respetivas competências e geometria relacional para os estatutos político-administrativos. E, em matéria de órgãos, acaba-se com a figura do Representante da República, atribuindo-se – como se referiu antes – as respetivas competências ao Presidente da República.
A isto acresce que as Assembleias Legislativas (não sendo órgãos de soberania), deixam de poder ultrapassar vetos do Presidente da República (ele próprio um órgão de soberania).
Aproveitou-se também a oportunidade para dar um novo fôlego à figura do Provedor de Justiça, até agora subaproveitada, dada a posição privilegiada que tem entre os cidadãos e os poderes públicos. Assim, para além de passar a ser o único órgão com legitimidade ativa própria para iniciar processos de fiscalização sucessiva abstrata da constitucionalidade, altera se também a respetiva forma de nomeação e dedica-se-lhe um título próprio.
14. É tempo, por fim, de nos debruçarmos sobre as propostas de alteração das normas sobre revisão constitucional. No essencial, acaba-se com a hiper-rigidez constitucional e com quaisquer limites temporais – que, de resto, como se referiu, de pouco serviram, uma como outra, aos ímpetos revisionistas da classe política portuguesa. Também se desiste dos limites materiais, apelidados de “cláusulas pétreas” do outro lado do Atlântico.
Desde logo, não são a melhor forma de defesa da Constituição – de resto, não evitaram a eliminação da norma que impunha irreversibilidade das nacionalizações em 1989 – e apenas constituíram o pretexto para que fossem esboçadas teorias sobre a forma de os ultrapassar, como a famosa teoria da “dupla revisão”. Mas mais do que isso, são profundamente anti-democráticos. Não precisamos de recusar a todos os que virão depois de nós a liberdade que nós tivemos para fazer escolhas fundamentais.
E, sobretudo, não precisamos de o fazer através do papel: é perversa esta falta de confiança nos homens e excessiva confiança no texto. Por isso, mantendo-se os limites circunstanciais, o que se propõe é a substituição dos restantes limites de revisão pela exigência de uma maioria de três quartos para o início e aprovação de uma revisão constitucional.
Observador
16/05/2015
Autores
• Gonçalo Coelho
• Guilherme Vasconcelos Vilaça
• Jorge Fernandes
• Pedro Caro de Sousa
• Tiago Fidalgo de Freitas