Há 30 lusodescendentes a trabalhar na Herdade do Vale da Rosa. Vieram para escapar a uma crise que os deixou à míngua. Como é o seu dia-a-dia em Alfundão, aldeia alentejana, onde vivem em contentores? A VISÃO passou o dia com estes emigrantes que não dominam a língua, mas que estão cheios de garra para se integrarem e começarem uma nova vida, em segurança.
Olhamos para a foto do nascimento de Manuel Maurício, que aconteceu há um dia, e está lá a mãe, claro, com ele nos braços, e a irmã de quatro anos a seu lado, de cabeça encostada em modo ternurento. Sorriem ambas, mas menos do que se espera na data em que nasce um filho e um irmão. Pudera: o pai, Leonardo de Abreu, 25 anos, está a seis mil e seiscentos quilómetros, a distância que separa Maracay, na Venezuela, onde o bebé acaba de vir ao mundo, e Ferreira do Alentejo, a localidade mais próxima da Herdade do Vale da Rosa, onde Leonardo se encontra agora a trabalhar. Perdeu o nascimento do filho e não vê a restante família desde o dia 2 de julho, data em que atravessou o Atlântico, rumo ao Funchal, em busca de uma vida melhor para todos. Quinze dias depois, voltou a partir, de barco, para Portimão, e seguiu de camioneta até ao Alentejo. “Lá não havia trabalho. Assim que apareceu esta oportunidade, eu agarrei-a.” Passam poucos minutos das quatro da tarde, e esta é a altura em que o lusodescendente consegue trocar umas palavras com o sogro, Jorge Jardim, 50 anos. Leonardo está a pegar no trabalho, na câmara de frio; Jorge a sair do turno como operador de máquina no armazém onde se embalam seis mil toneladas de uva de mesa, especialmente sem grainha. Foi com o sogro que saiu da Venezuela, deixando para trás, além da companheira grávida e da primogénita, a mãe. Jorge também tem, em Maracay, outra filha, de 11 anos, e a mulher. Dantes viviam todos juntos, e ninguém perde a esperança de isso voltar a acontecer no Alentejo. “É duro, mas há que aguentar.
Se Deus quiser, daqui a dois meses elas virão ter connosco, menos a minha mãe, que terá de esperar mais um pouco até conseguirmos o dinheiro os voos custam cerca de 1 300 euros.” Planos não lhes faltam, e esses passam por alugar uma casa em Ferreira do Alentejo ou em Beja ou, quem sabe, pedir um empréstimo para comprar uma habitação. “É aqui que quero viver, já tratei do título de residência e meti os papéis para me tornar português”, afirma, cheio de convicção. Lá também trabalhava na área de frio, numa grande multinacional, e até gostava do que fazia. “Não rendia nada. Num mês, ganhava 18 euros, agora recebo 34 por dia.” Quantia que chega para enviar dinheiro para casa, num esquema que permite contornar a inflação galopante. Deposita os euros na conta portuguesa de um amigo venezuelano, e ele dá o equivalente à família em bolívares, a moeda corrente. “Se não mandasse nada, como é que elas comiam?”
“MAMÃ, NÃO AGUENTO MAIS ISTO”
Leonardo e Jorge são apenas dois dos 30 emigrantes que já vieram, desde que a Vale da Rosa lançou esta proposta à comunidade de refugiados lusodescendentes que chegou à Madeira, escapando das péssimas condições criadas pelo Governo de Nicolás Maduro.
O êxodo começou, de forma discreta, há cerca de três anos e, logo nessa altura, António Silvestre, 70 anos, o proprietário da herdade e também ele um ex-emigrante no Brasil, lembrou-se de pedir à em- presa que trata do trabalho temporário para os recrutar. “Como não apareceu ninguém, há três meses fui falar com o Governo Regional”, conta. Na Madeira, reuniu-se com a Secretaria Regional da Inclusão e Assuntos Sociais e foi encaminhado para o Instituto de Emprego, que cadastrou 600 pessoas potencialmente interessadas em ir para o campo.
A ideia ganhou tamanha consistência que, no início deste mês, assinou um convénio com o Governo Regional para formalizar o que já acontecia na prática.
Durante a época da colheita, que pode estender-se até novembro, os que se aventurarem na sua herdade ganharão 580 euros, mais subsídio de férias e de almoço. Se trabalharem mais do que a conta, receberão 22 euros por cada hora extraordinária. Têm alojamento incluído, mas cobram-lhes 35 euros mensais pelo equipamento e pelo espaço.
“Sei que existe gente muito preparada a vir da Venezuela. Temos até 100 lugares a pensar nos que se destacarem”, compromete-se António Silvestre.
Por enquanto, ocupam postos de trabalho na colheita, no embalamento, nas máquinas, na montagem de caixas e no controlo de qualidade.
Quem entra no armazém não distingue os luso-venezuelanos dos outros funcionários. Na zona de embalagem, vestem um casaco polar cor de rosa, uma bata da mesma cor e uma touca branca descartável para o cabelo. Ao todo, nos 250 hectares da herdade, trabalham 637 funcionários chegam quase aos mil, nesta altura do ano de várias nacionalidades.
Marcus Gonçalves, 46 anos, por exemplo, é filho de madeirenses e engenheiro de formação, mas o seu canudo não vale nada por cá. Encontramo-lo a forrar caixas de cartão com plástico. “Costumo estar junto das máquinas a ver se funcionam bem, mas hoje não havia ninguém para este posto”, justifica-se, antes de contar que, na Venezuela, tinha uma empresa de sistemas de computação. No entanto, era como intermediário num sistema paralelo de venda de dólares que ele ganhava mais dinheiro. “Mesmo assim, não chegava para viver.” A somar a esta precariedade, Marcus sentia que a vida lá não tinha valor.
Desde que chegou o socialismo faz questão de simular umas aspas com os dedos, quando pronuncia esta palavra que aumentou muito a insegurança.
“O Presidente Hugo Chávez tinha um grupo armado para assustar os opositores, que foi crescendo de tal forma que está, atualmente, mais apetrechado do que a polícia”, relata.
Um dia acordou, ligou à mãe, que regressara à Madeira depois de 40 anos de emigração, e disse-lhe: “Mamã, vou-me embora pois não aguento mais isto.” Os primeiros tempos na terra da família serviram para matar saudades, mas rapidamente percebeu que não viera de férias, que precisava de trabalhar, de juntar dinheiro para trazer a mulher, cubana. Marcus tem dupla nacionalidade, por isso saiu como venezuelano e entrou na Madeira como português. Neste trabalho de armazém, viu um novo começo. “Aqui sinto-me tranquilo, posso caminhar sem medo, o ambiente é muito bom e já criei amizades fortes. São elas que me ajudam a superar a carga emocional de ter deixado o meu país. Todos temos problemas idênticos.”
CANUDOS VALEM ZERO
Rosário Alegra, presidente do Instituto de Emprego da Madeira, realça que um dos maiores obstáculos à colocação destes profissionais no mercado de trabalho é o facto de eles “não terem as habilitações certificadas”. Também de nada ajuda que muitos apresentem um fraco domínio do português ou do inglês tem havido alguma formação para melhorarem a questão das línguas.
Neste momento, existem 1 220 pessoas oriundas da Venezuela inscritas no Instituto. Só neste ano, até setembro, já houve mais gente a dar o nome do que em 2017, e quase o triplo do que em 2016. No entanto, Rosário Alegra sabe que estes números oscilam bastante. “São pessoas muito pró-ativas e sujeitam-se a qualquer tipo de trabalho.” O processo da Vale da Rosa continua em aberto e estão sempre a aparecer interessados mais do que com formação, procuram-se pessoas motivadas e com disponibilidade para a mobilidade e para o trabalho agrícola. “Existe ainda a perspetiva de contratação para outros quadros técnicos e mais especializados, para colocação durante todo o ano (chefes de equipa, supervisores de campo, engenheiros agrónomos, mecânicos…)”, enumera.
Daniela, 30 anos, chegada há uns dias à Herdade do Vale da Rosa, esforça-se por adaptar-se ao trabalho do campo e ao facto de os outros emigrantes já estarem organizados. Na Venezuela, deixou uma vida difícil, onde as privações são o pão nosso de cada dia.
Os últimos cinco aventureiros partiram da Madeira há 15 dias. Daniela, 30 anos, foi uma delas. E agora está no campo, debaixo de uma videira, de tesoura de poda na mão, pronta para cortar os cachos das uvas, limpá-los e guardá-los em paletes. Em Caracas, vivia com a avó e a tia, e trabalhava por conta própria na área de ilustração digital. Ainda fala com raiva na voz quando se lembra da delinquência agressiva, que rouba e mata num piscar de olhos, da falta de dinheiro (como viver com três euros por mês?), da fome por não haver comida nos supermercados.
Apesar de o pai ser madeirense, Daniela nunca tinha pisado solo português. Arriscou e, até agora, ainda não se arrependeu da reviravolta que deu à vida.
DAR O SALTO, DE MÃO DADA
Para saírem da herdade, há autocarros que apanham os trabalhadores à hora em que acabam os turnos. David Duarte, 23 anos, e Laura Moura, 21, estão de mão dada, ao pé de um grupo de outros venezuelanos, à espera dessa boleia que os levará para casa, em Alfundão.
São marido e mulher e, em outubro, fugiram de Valencia para a Madeira.
Lá, desenrascavam-se com biscates, nada que tivesse que ver com o que estudaram ele design gráfico, ela moda. Agarraram esta oportunidade de trabalhar no armazém e no controlo de qualidade assim que ela apareceu, pois permite-lhes ficar juntos.
Depois de uma viagem de 10 minutos, com apenas uma paragem para deixar um grupo de paquistaneses junto ao seu alojamento, os luso-venezuelanos saem em direção ao núcleo de contentores construído há cerca de três meses para os receber. Na curta caminhada que fazem, passam por um campo de jogos. “Costumamos jogar futebol com os paquistaneses”, contam-nos. Também nos dizem que no fim de semana anterior estiveram nas festas de Ferreira, e que há sempre um transporte que pode levá-los a um supermercado ou, durante a semana, ao banco, ao hospital ou a algum serviço a que precisem de ir.
Também se avista uma escola primária, àquela hora já sem alunos.
É para lá que muitos vão, depois do jantar, aproveitar a rede de wi-fi aberta, para ligarem às famílias e tratarem de outros assuntos que necessitem de internet.
Cada contentor tem quatro quartos, todos com dois beliches. Por enquanto, nenhum esgota a lotação máxima.
Em Maracay, onde vivia, Marcus Gonçalves, 46 anos, saía pouco de casa, porque os níveis de insegurança assim o ditavam.Em Alfundão, apesar da tranquilidade que ele elogia, o engenheiro aproveita as pausas no trabalho para pôr os assuntos em dia no computador e para falar com a mulher cubana, que anda a tratar dos papéis para se juntar a ele.
No El Ávila, uma cadeia montanhosa em Caracas e, agora, o nome com que batizaram a morada deles, estão 13 homens. E tudo parece correr às mil maravilhas (“somos família”), apenas respaldados por um cartaz que pede “respeito mútuo”, que se lave a loiça “logo após se cozinhar” e que se mantenha a área limpa. Só há quatro bicos de fogão, um forno e um micro-ondas, mas os que estão no turno de dia lá se organizam, sem atropelos, para prepararem o jantar e o almoço que levam no dia seguinte. Para a lavandaria, comum a todos os moradores, há que fazer turnos para otimizar as três máquinas de lavar a roupa e os dois ferros de engomar. Nem sempre comem juntos e raramente cozinham para todos. Os produtos de despensa são partilhados, mas o mesmo não acontece com o que está dentro dos dois frigoríficos e da arca talvez por isso se vejam tantos frascos de ketchup lá dentro. Muitos deles confessam que estão agora a aprender a sobreviver sozinhos, sem o amparo feminino que lhes cuida da roupa, da casa, da cozinha. Todos sabem fazer arepas o pão tradicional venezuelano, preparado com farinha de milho branco e invariavelmente é o que cai na mesa do jantar, recheado do que lhes der na gana.
Arturo Rodrigues, 57 anos, quase nunca fica em casa depois de um dia de trabalho, numa área que nada tem que ver com o que fazia na Venezuela. Este engenheiro químico, casado com uma bióloga e pai de dois filhos já formados, tinha uma empresa de produtos de limpeza e beleza. A família não quis acompanhá-lo, só que isso não abalou a sua decisão de trocar a América do Sul pela Europa. “Sei que, nestas histórias, nem sempre há finais felizes, mas eu decidi arriscar.” Na Madeira, tinha a mãe à sua espera.
Desde que deu este salto, sente-se um homem diferente, para melhor.
E não se arrependeu nem um minuto.
Arturo Rodrigues, 57 anos, é o mais velho do grupo e o que aproveita melhor o facto de estar numa pacata aldeia alentejana, desde agosto. Deixou a mulher e os dois filhos mais velhos para trás.
De tempos a tempos, liga à mulher, venezuelana, e diz-lhe: “Olha que não vou voltar. Estás pronta para vir?” Até agora a resposta tem sido negativa, mas ele compensa isso com o carinho que tem sentido em Portugal. “O País recebeu-me de braços abertos, e eu retribuo fazendo um esforço para incorporar a vossa cultura. Gosto muito de falar com as pessoas.” Trabalha no armazém da herdade desde agosto e adora. Di-lo com imensa enfatização, destacando a tranquilidade e a recetividade da população local.
RUAS MAIS ANIMADAS
Carlos Raposo está ao balcão da única farmácia que existe na aldeia. Nas horas vagas, é presidente da União das Freguesias de Alfundão e Peroguarda e sente bastante satisfação com este acréscimo de população que já chegou aos 1 800 habitantes. “Isto anima o concelho e eu até arrisco dizer todo o Alentejo.” Acha que os luso-venezuelanos estão “bem integrados” e não regista qualquer “queixa”. Considera que o facto de falarem, ou tentarem falar, português também ajuda à sua inserção na aldeia onde vivem.
Arturo, por exemplo, esforça-se por meter conversa com os habitantes.
Noutro dia, Patrícia Braz, 39 anos, à frente da Loja do Euro, emprestou-lhe umas ferramentas para ele mudar a disposição dos beliches no quarto.
“Da minha parte, tento ajudar no que posso. Também vivi fora, na Suíça, durante oito anos, e sei o que é estar do outro lado. Muitas vezes, falta-nos um bocadinho de calor”, nota a lojista, agradada com o facto de haver mais gente nas ruas da sua terra.
Na Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, não se mostra só satisfação ou se justifica a fácil integração com a cidadania portuguesa. Luís Ameixa, o presidente, percebe que esta comunidade de emigrantes vem com perspetivas de ficar e não se limita apenas a cumprir um contrato sazonal. Então, decidiu pôr a andar um estudo acerca das condições de habitação do concelho, para fazer um levantamento das casas fechadas ou abandonadas.
“Vemos aqui uma oportunidade para recuperar este tipo de habitação. Já reuni com o ministro da Economia, e ele encara esta iniciativa com todo o interesse.” Luís Ameixa há de apresentar um plano estruturado ao Governo e criar, então, condições especiais, a preços mais favoráveis, para os luso–venezuelanos que queiram assentar em Ferreira e reiniciar a vida numa das casas recuperadas.
Este é o caso de Jorge, que está agora no seu contentor a cozinhar arepas, e do genro Leonardo, que permanecerá no seu posto na câmara de frio até o turno acabar. Antes de partirmos, Jorge pede que passemos pela herdade para levar uma arepa com queijo e fiambre ao genro, que ainda tem muitas horas de trabalho pela frente…
TPT com: Visão//Luísa Oliveira/Luís Barra//jornalistas// 28 de Outubro de 2018