No momento em que o processo de paz na Colômbia entra na sua fase crucial, Paulo Portas escreve sobre o presidente Juan Manuel Santos, um político “que não pensa nas próximas eleições”.
1. O que distingue os grandes líderes e homens de Estado dos meros chefes de fação é a capacidade que os primeiros têm – e os segundos não – de ver para além do presente e serem, por isso, criadores do futuro. Como alguém disse, é mais importante para a História o trabalho dos que pensam nas próximas gerações do que a atividade dos que pensam apenas nas próximas eleições.
2. O Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, pertence definitivamente ao primeiro grupo, o dos fazedores de futuro que deixam uma marca relevante na História. Posso dizê-lo como amigo da Colômbia e sem qualquer ânimo de interferência, que seria sempre indevida e indelicada, em temas de política interna desse maravilhoso país ainda desconhecido para muitos europeus.
3. Conheci o Presidente Santos em 2011. Era eu Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal; juntamente com a Canciller María Ángela Holguín – outra figura internacional de primeira categoria –, iniciámos um plano de aproximação sistemática e crescente entre os nossos dois países. Os resultados políticos, económicos e culturais, estão à vista. Mas hoje quero dar o meu testemunho sobre a importância, não só para a Colômbia e para a América Latina, mas também para a Europa e para a Comunidade Internacional, como um todo, do processo de paz na Colômbia.
4. O primeiro ponto que quero sublinhar é que não há comparação possível entre a percepção que o mundo tinha sobre a Colômbia há umas décadas e aquela que o mundo tem nos nossos dias. A Colômbia sofreu, durante muitos anos, a duríssima realidade de um Estado democrático, na prática sequestrado por organizações terroristas que proclamavam a sua orientação marxista-leninista e que foram – e ainda são – responsáveis por milhares de vítimas inocentes. A sociedade colombiana não podia viver a sua liberdade plenamente, nem aspirar a um desenvolvimento económico e social integral, dado que a questão da violência – usada pelas FARC com níveis de crueldade e opressão inimagináveis – se sobrepunha a todas as outras. O fim do totalitarismo comunista, simbolicamente evidente com a queda do Muro de Berlim, foi convertendo essas organizações de terrorismo ideológico em organizações cada vez mais marcadas por um terrorismo de criminalidade sofisticada, igualmente ruinoso para as aspirações das famílias colombianas.
Essa Colômbia, que alguns definiam como um Estado dominado pelo terror e ameaçado pelo narcotráfico, felizmente já não existe. A ação determinada e corajosa do Governo e das Forças Armadas, que derrotaram militarmente as FARC, é reconhecida em todas as democracias. Creio que se pode dizer que o Presidente Santos, que foi Ministro da Defesa de Uribe, teve um valor extraordinário ao participar e pôr em execução uma estratégia de segurança vencedora. E foi esse primeiro passo, que requer a coragem dos que aceitam pôr a sua própria vida em risco para defender o bem comum, que permitiu à Colômbia dar prioridade a um modelo aberto e basicamente liberal de crescimento económico, e a tarefas de inclusão social que diminuíram as desigualdades, como é próprio em políticos humanistas.
Onde ontem o mundo via uma Colômbia marcada pelo terror e vulnerável ao tráfico de droga, o mundo admira hoje uma Colômbia em que o Estado de Direito venceu a violência diária e sistemática, com um Governo que é líder no crescimento económico, investimento e comércio aberto na América Latina. É uma enorme mudança e foi feita em relativamente pouco tempo. É justo dizer que o Presidente Santos esteve sempre do lado certo nas duas frentes de batalha: segurança e paz entre colombianos, economia pujante e moderna para a Colômbia.
5. Para todos os homens de Estado com uma formação cristã, a questão da paz e da reconciliação nacional não é ignorável nem é secundária. Talvez por isso, o Presidente Santos assumiu com igual coragem e lucidez aquele que é, porventura, o maior desafio político da sua vida: iniciar, desenvolver e concluir um processo de paz, capaz de libertar definitivamente a Colômbia do horror da guerra, fazendo triunfar a democracia e a liberdade em todo o território nacional, consagrando o império da lei e fazendo justiça, dando às novas gerações de colombianos todas as condições institucionais e efetivas para, através do seu talento, iniciativa e trabalho, subirem na vida e beneficiarem dos frutos da estabilidade. O Presidente Juan Manuel Santos fê-lo sabendo que só quem foi capaz de vencer uma guerra tem legitimidade para propor a paz. É o seu caso.
6. O mundo está cheio de conflitos que parecem não ter fim; também por isso, o êxito do processo de paz na Colômbia será um grande exemplo para a comunidade internacional, começando pelas Nações Unidas. Já sabemos que o desarmamento total das FARC e a aceitação, pelos guerrilheiros, da via política e democrática como única via de expressão e confronto de ideias tornará a paz um objetivo possível e a esperança um sentimento dominante. Constituiria um poderoso exemplo da viabilidade do diálogo numa América Latina cheia de contrastes. Comprometeria os Estados da região com a institucionalidade das relações entre Estados, o que é incompatível com qualquer patrocínio da violência. Mas além disso, do possível êxito do processo de paz na Colômbia depende, também, termos um planeta mais liberto do negócio da morte que é o negócio da droga, tal a ligação que existe e está documentada entre as FARC e a “exportação do mal”.
Mas não tem sido suficientemente notada uma outra consequência da paz na Colômbia: o sucesso de negociações tão difíceis como as que decorrem em Havana – uma capital bem escolhida, se pensarmos nos resultados – seria o poderoso estímulo que receberiam todos os líderes internacionais que têm de optar entre continuar a guerra ou tentar a paz; e, do outro lado do espelho, o forte sinal de dissuasão e desencorajamento que receberiam todos os fundamentalistas, fanáticos e terroristas do mundo. É porventura neste ponto que o Presidente Santos é mais notável na sua ação e merece todo o apoio internacional. Para ele, seria bem mais simples defender o status quo, seria certamente mais confortável, como dizem os brasileiros, “deixar estar como está para ver como fica”. O que faz do Presidente Santos um homem de Estado invulgar é ter posto em risco a sua reeleição, ter sofrido a incompreensão de muitos dos seus amigos e ter arriscado toda a sua biografia política – digo arriscar porque ninguém pode garantir à partida o final feliz de um processo de paz –, exclusivamente em nome de um bem maior: o futuro de uma Colômbia definitivamente em paz.
7. Quando vejo o fracasso do processo de paz no Médio Oriente e a brutalidade sacrificial de tanta violência, que incessantemente destrói vidas, atingindo com uma dor incalculável, por exemplo, crianças, grávidas ou idosos especialmente vulneráveis, seres humanos cujo único erro é estar no sítio errado na hora errada, lembro-me frequentemente de Juan Manuel Santos e da sua lúcida ousadia.
O Presidente da Colômbia compreendeu que uma coisa é acantonar militarmente as FARC, o que as debilitou solenemente. Outra coisa, é pensar que será viável uma solução definitiva para o conflito que seja exclusivamente militar. Deste axioma retirou outro: a grandeza de um homem de Estado não está em utilizar o sofrimento das pessoas para perpetuar o conflito. A grandeza está na superação de décadas de guerra por uma era de paz, única forma de calar as armas mas também de ir mais a fundo, reconciliando opiniões dramaticamente divergentes e sarando feridas e fraturas numa sociedade em que as vítimas nunca poderão ser esquecidas e em que os tribunais terão de contrariar o sentimento de impunidade. Com a mão da autoridade, o Presidente procura justiça, e com a mão da negociação, procura saídas políticas e democráticas que submetam à soberania do voto aqueles que se habituaram a acreditar na tirania do terror.
8. Negociar com organizações como as FARC é um exercício muito exigente. No início do processo, quem adivinharia que três dos cinco pilares da negociação estivessem bem encaminhados em menos de dois anos? No entanto, não ignoremos as dificuldades. Nas FARC, haverá certamente quem prefira a continuação do conflito, porque já são muitos anos de rendas do narcobusiness, e também de feudalismo, dominando pela coação territórios e populações. Em todo o mundo, o terrorismo vive, aliás, tempos de fragmentação que podem ser até mais perigosos. Será possível garantir a boa-fé ou a autoridade vertical dos negociadores das FARC? Por outro lado, não faltarão incidentes graves que têm como objetivo diminuir a autoridade do Presidente Santos ou procurar dividir as Forças Armadas – colocando-as como alvo, como recentemente sucedeu – e o poder político civil.
Muitos, na Comunidade Internacional, confiamos nas qualidades de Juan Manuel Santos para aguentar a pressão e tomar a melhor decisão. O Presidente sabe o que nestas matérias diz a História: a melhor estratégia é a que conduz a outra parte a não ter alternativa senão aceitar um acordo. E para seguir esta estratégia a gestão do tempo e a verificação da autenticidade dos progressos são elementos chave. O Presidente Santos tem deixado claro que há um tempo útil para negociar: a paz não é uma oportunidade infinita, porque a paciência das sociedades democráticas tem os seus limites. E tem agido com objetividade: em toda a negociação, há sempre uma medida dos avanços; se a partir de certo ponto, o impasse for a verdade das coisas, isso contamina o processo. Compete às FARC demonstrar que compreendem a urgência e aceitam o irreversível.
9. As instituições da União Europeia acabam de dar um sinal de compromisso com a paz na Colômbia. Na sequência da visita que o Presidente Santos fez a algumas capitais da Europa, entre as quais Lisboa, Portugal empenhou-se na defesa de uma ativa política de cooperação entre Bruxelas e Bogotá, a pensar e a desenvolver no pós-conflito. Está a fazer o seu caminho a ideia de um Trust Fund que tenha por objetivo ajudar a construção da paz e ativar políticas de desenvolvimento e parceria económica que mudem a face dos territórios mais abrangidos pela violência. Isso quer dizer duas coisas muito simples: na Europa, queremos que a iniciativa de paz do Presidente Santos chegue a bom porto; e a Europa quer ser parte, amiga e fiável, do futuro de uma Colômbia em paz.
10. Por vocação, gosto de História e sou um leitor frequente de biografias políticas. Quando conheci o Presidente Santos guardei dele a primeira impressão: uma serenidade que gera confiança, uma visão que impõe esperança. Ao longo dos anos e vários encontros, fui acompanhando os seus passos e confirmando essa opinião. Disse-lhe, em Lisboa, que com ele acontecera um facto muito raro na ciência política: em certo sentido, já todos os colombianos votaram nele pelo menos uma vez. A direita e o centro, por convicção; mas também o centro e a esquerda, por reconhecimento. Umas vezes uns, outras vezes outros. Na Europa isso aconteceu a poucos políticos, por exemplo o general De Gaulle. A comparação impressiona. Mas mais importante é o que esse largo espectro permite e revela: se o processo de paz superar os obstáculos e terminar bem, ninguém estranhará que o Presidente Santos entre na História como o Presidente de todos os colombianos.
Paulo Portas
Vice-Primeiro-Ministro
Observador
El Tiempo, da Colômbia
10/05/2015