29 Maio 2014 – por Eva Gaspar | Jornal de Negócios
“A certa altura, José Sócrates convence-se de que o BCP vai ser elevado para a esfera do Compromisso Portugal e alimentará uma espécie de novo PSD. E aí o raciocínio foi simples: temos de intervir”. Jardim Gonçalves n’ “O poder do silêncio” de Luís Osório, com prefácio de Eanes.
Centenas de horas de uma conversa que se prolongou por cinco anos são agora reveladas no livro do jornalista Luís Osório sobre a vida e a obra de Jorge Jardim Gonçalves, fundador do BCP.
Intitulada “O poder do silêncio”, a biografia conta com um prefácio de António Ramalho Eanes que poderia ser ele mesmo um pequeno livro. Nele, o antigo Presidente da República diz não se conformar com a “acção de cerco e destruição” do homem e do banqueiro que deveria ser combatida “por todos os que tinham tido a oportunidade, ou obrigação institucional, de o conhecer”, dando explicitamente os exemplos de Vítor Constâncio e de Teixeira dos Santos, antigo governador do Banco de Portugal e ex-ministro das Finanças, respectivamente, e de Carlos Tavares, o ainda presidente da CMVM.
Ao longo de mais de 600 páginas, Luís Osório discorre sobre as origens madeirenses de Jardim Gonçalves, as suas profundas raízes católicas e pertença à Opus Dei, passando pela família ancorada na aliança inabalável com Assunção, mãe dos seus cinco filhos.
Parte essencial do livro, que será lançado na quarta-feira, 4 de Junho, centra-se na ascensão e queda do BCP por si fundado em 1985 e cuja direcção deixou em 2005, então a favor de Paulo Teixeira Pinto, tendo-se mantido nas funções de presidente do Conselho Geral e de Supervisão e de presidente do Conselho Superior, até 2008.
Em 2 de Maio de 2014, Jardim Gonçalves foi condenado em tribunal a uma pena de dois anos de prisão, que fica suspensa mediante o pagamento de 600 mil euros, pelo crime de manipulação de mercados
Nesse processo de queda, acelerado pela OPA falhada lançada ao BPI em Março de 2006, surgem vários nomes: José Sócrates, António Mexia, Ricardo Salgado, Rafael Mora (da Ongoing), António de Sousa, Joe Berardo ou Pedro Teixeira Duarte. Jardim Gonçalves considera que o princípio do fim de um “império” que chegou a querer servir 60 milhões de potenciais clientes está no crédito concedido por bancos rivais – designadamente por Carlos Santos Ferreira (CGD), Ricardo Salgado BES e Horta Osório Santander – a novos accionistas do BCP que o usaram para destronar a “geografia” accionista e os propósitos originais do banco.
O livro de Luís Osório é uma viagem quase sempre na terceira pessoa, mas contém várias citações directas de Jardim Gonçalves.
Sobre a escolha de Paulo Teixeira Pinto:
“Percebo que a sua nomeação tenha provocado surpresa em alguns, mas escolhi-o por não me parecer que tivesse um calado de defeitos que o impedisse de ser presidente do banco. Sabe o que é um calado? (…) É a distância que vai do fundo do barco à linha de água. Se a pessoa possui um calado muito grande acaba por encalhar. Neste tipo de escolhas não podemos ir pelas qualidades porque estas esvoaçam, vamos pelos defeitos porque se agudizam quando se tem o poder. Pensei que Paulo tivesse menos defeitos, talvez não o conhecesse tão bem ou ganhou-os a seguir, não sei.”
“Bastava que Paulo tivesse sido um obstáculo a uma erosão que foi crescente para que nada disto tivesse acontecido. (…) Não fui eu quem lhe colocou entraves ou o pôs fora, quem o fez foram os que promoveram o conflito que dividiu a instituição. E ele sabe-o, seguramente sabe-o hoje muito bem.”
“Nunca tive uma relação de intimidade com Paulo (…) Mas o apreço era total. Quando leio algumas entrevistas revejo o homem que me fez ter poucas dúvidas no momento da escolha, um homem inteligente, com ética e moral, convicção e humanidade.”
Sobre a OPA ao BPI:
“A UBS [banco de investimento ligado aos catalães de La Caixa que possuíam 16,5% do BPI] é mercenária e o Paulo caiu no engodo. Nesse caso é evidente que foram uma banca de investimento no pior dos sentidos, foi operação por operação e é certo que ganharam muito dinheiro. Fiz o que me foi possível, mas os accionistas preferiram ser leais a Santos Silva e Ulrich do que a ganhar mais-valias. Encontrei-me em Washington com Roberto Setúbal, do Banco Itaú [banco brasileiro também accionista do BPI]. E falei uma única vez do assunto com Isidro Fainé, do La Caixa. Não quiseram trocar mais argumentos. Essa posição teve logo a simpatia das pessoas de bem, só que não me pareceu que fosse consequente porque logo a seguir, após o falhanço assumido pela administração do BCP, aconteceu a proposta de uma fusão amigável”.
“Ele [Teixeira Pinto] não desiste por um misto de obsessão e fixação. A OPA falhada custou mais de 100 milhões, uma catástrofe. Foi um capricho que custou caro e que o fragilizou fatalmente”.
Sobre o jornal Expresso:
“Sou convidado para dar uma entrevista ao Expresso, mas antes de aceitar promovi uma reunião entre o Conselho de Supervisão e a Administração. Perguntei aos administradores se tinha condições para governar, todos me disseram que sim. Comuniquei-o a Vítor Constâncio. O jornal garantiu-se que só seria publicada uma entrevista. A minha… Comprometi-me na ideia de que a Administração tinha condições para governar, o que ia ao encontro do que Teixeira Pinto e os seus colegas me haviam garantido. No entanto, na mesmo edição, o Expresso publicou uma notícia com declarações específicas de Paulo onde afirmava exactamente o contrário. Confessava que não tinha a confiança dos colegas, que não acreditava em alguns e que o terreno estava minado. E informou de que estava a ser preparada uma proposta para a destituição dos que não confiava por ser necessária uma clarificação”.
Sobre os novos accionistas:
“Esses novos accionistas entraram para dividir e destruir. E fizeram-no com dinheiro emprestado por outros bancos, o que transformou tudo isto numa espécie de jogo de casino. Não tenhamos ilusões: as coisas só podiam acabar muito mal. Bastaria os accionistas a crédito, mas ainda se abriu a porta à Sonangol a quem foi retirado o condicionamento dos estatutos” (…) Todos estavam interessados no que aconteceu. Uns porque desejavam alterar a geografia accionista, outros porque tinham o legítimo apetite de destruir o BCP e o Governo, através da Caixa Geral de Depósitos, na ideia de controlar o principal banco privado” .
Sobre José Sócrates:
“A certa altura, José Sócrates convence-se de que o BCP vai ser elevado para a esfera do Compromisso Portugal e alimentará uma espécie de novo PSD. E aí o raciocínio foi simples: temos de intervir antes que esta gente fique com o poder. Temos a Caixa, passamos a controlar o principal banco privado, influenciamos o BES pela ambição de Ricardo Salgado. Financiamos as empresas e os interesses que desejamos, a própria República poderá implementar uma política de juros ambiciosa e endividar-se com mais facilidade. Por motivos diferentes, tanto eu como o Teixeira Pinto éramos um embaraço.”
Sobre António Mexia:
Aqui não é Jardim Goncalves que fala em discurso directo, mas o autor da biografia, Luís Osório, que enquadra o papel que terá tido o presidente da EDP.
Escreve agora o autor do livro que, “para uns, é aí que José Sócrates explicitamente intervém; não faria qualquer sentido que desperdiçasse a oportunidade única de controlar um banco privado, seria oferecer de bandeja o controlo do BCP a empresários e gestores do partido da oposição”. “A lista de Teixeira Pinto não passara de um simulacro criado por António Mexia, a cortina de fumo escondia o objectivo de um governo que, desde o primeiro momento, sabia que a confusão no BCP acabaria por dar frutos a prazo. O presidente da EDP [cargo para o qual fora indicado por José Sócrates] jogava em vários tabuleiros e ficou numa posição privilegiada. Ganharia, acontecesse o que acontecesse. Se Sócrates deixasse passar o comboio, tornava-se a eminência do novo poder no banco e, a prazo, transportaria essa aura para um PSD órfão de liderança; se o Governo não deixasse escapar a oportunidade, faria cair Teixeira Pinto e continuaria a desempenhar as funções de cardeal do poder de José Sócrates (…) sendo aliado do poderoso Ricardo Salgado”.
Luís Osório prossegue: “Antigo conselheiro de Pina Moura na Economia, Mexia estivera no Governo de Santana Lopes, é certo. Fora um dos impulsionadores do Compromisso Portugal, movimento liberal, é certo. Mas a sua dimensão de intervenção política estava há muito ligada à conquista do poder e esta, na sua linha de acção, não se faz com lealdades eternas a partidos, ideologias ou pessoas”.
Sobre o que dizem de si:
Jardim Gonçalves de novo em discurso directo: “Interessava passar a imagem que eu não era o que aparentava – gastava o dinheiro dos accionistas, fazia e tinha conhecimento de coisas estranhas, era discricionário na distribuição de benefícios, gastava dinheiro com seguranças, aviões particulares. Passei a ser agredido diariamente nos jornais e televisões. (…) Mas enquanto as primeiras páginas se enchiam de mentiras a meu respeito, o BCP mudava de mãos. Tudo patrocinado por altas figuras do Estado e pelos bancos concorrentes que emprestaram dinheiro com o objectivo de alterar a estrutura accionista e permitir a mudança do poder. A opinião pública estava demasiado ocupada a falar de mim para perceber que, à frente do seu nariz, algo de mais importante acontecia”.
Sobre a prescrição das multas:
“Não me parece que a CMVM ou o Banco de Portugal estejam interessados nas multas, o que interessa aos que dominam o sistema financeiro é a nossa inibição. É uma vontade política que está em linha com a reunião promovida por Vítor Constâncio”.
Sobre Carlos Costa:
“[Escreveu-lhe uma carta a pedir um encontro. Carlos Costa remeteu-a para o vice-governador, Pedro Duarte Neves, que declinou]. Imaginou incrivelmente que eu desejava falar com ele por causa dos processos, nunca o faria. O tema era outro. Interessava-me falar do sistema financeiro português, dizer-lhe o que pensava, ajudá-lo com a minha experiência e distância em relação à acção. Como pode ter achado que seria para o influenciar?”
Sobre Cavaco Silva:
“Gosto do professor Cavaco Silva e mantive, em todas as circunstâncias, contacto com ele. Durante a polémica do BCP falámos algumas vezes”.
Sobre a justiça:
“Tenho de confiar na justiça, até porque não podemos ser a favor quando ela nos favorece e ser contra quando nos prejudica. Mas este julgamento da CMVM foi uma lástima, a ignorância da juíza magoou-me muito, magoou-nos muito.”
Sobre as pessoas:
“Sempre vi as pessoas como pessoas, sem mais nem menos. E sempre dei mais importância e valor aos que conquistam do que aos meninos que se limitam, sem qualquer esforço, a herdar terras e contas bancárias das famílias”.