Já esteve 110 horas fechado na cela de 3,5 por 2,20 metros. Mas, com a sua “vozinha de padre” e modos simples, conquistou a simpatia geral, a ponto de o designarem responsável pela biblioteca da cadeia. E mantém-se irredutível: os €23 milhões da Suíça são seus e não de Sócrates…
A advogada Paula Lourenço seguia online, através de uma aplicação específica, o percurso de um envelope com documentos importantes, enviado de Genebra a 27 de janeiro último. Era correspondência com centenas de páginas, percebia-se que apenas se tratava de folhas de papel, e o remetente e o destinatário estavam identificados como advogados.
Mas à chegada a Lisboa, a 2 de fevereiro, o envelope foi desviado, verificou a advogada. Apurou depois que havia sido “selecionado”, para “averiguação”, pela Autoridade Tributária (AT), que tem uma equipa a trabalhar com o procurador Rosário Teixeira no inquérito da Operação Marquês, em lugar da PJ.
Paula Lourenço sobressaltou-se. Naquelas centenas de páginas estavam todos os movimentos bancários das contas no UBS (Union des Banques Suisses) tituladas até final de 2009 pelo seu constituinte Carlos Santos Silva, as quais tinham dominado o interrogatório do juiz de instrução Carlos Alexandre ao empresário, amigo de longa data de José Sócrates e que o Ministério Público (MP) alega ser o testa de ferro que geria milhões de euros arrecadados pelo ex-primeiro-ministro de forma ilícita.
A defensora de Santos Silva tinha toda a pressa em obter aqueles documentos, para sua própria análise e para os disponibilizar ao MP, procurando assim eliminar um dos motivos que levou o juiz Carlos Alexandre a determinar, em 24 de novembro passado, a prisão preventiva do seu cliente: o perigo de perturbação do inquérito.
Por isso, ao ficar na posse da necessária procuração de Santos Silva, viajou para Genebra. No UBS, quando esperava que a porta de um gabinete se abrisse para se reunir apenas com o gestor de conta, Paula Lourenço deparou-se, espantada, com um grupo de pessoas, entre as quais três juristas.
No decorrer do encontro, um obstáculo intransponível foi levantado – os termos da procuração não estavam corretos, de acordo com a lei suíça. A advogada saiu confusa e preocupada da reunião.
Era precisa uma segunda procuração de Santos Silva, feita com as indicações fornecidas, e Paula Lourenço teria de viajar outra vez para Genebra. Mas, à cautela, contratou um criminalista local para a coadjuvar no assunto.
ESTRANHA CALMA
Santos Silva, esse, mostrava uma aparente e estranha calma na sua cela individual, de 3,50 por 2,20 metros, com casa de banho, água quente e TV (aparelho trazido pela família), na cadeia anexa à sede da PJ, na capital. Passou nova procuração e a sua advogada regressou a Genebra.
No entanto, quando julgava ter tudo resolvido e ia já a caminho do aeroporto, para voltar a Lisboa, Paula Lourenço recebeu um telefonema do criminalista suíço que contratara: faltava indicar ao MP local que Santos Silva não se oporia ao envio dos dados bancários para o MP português. Não se opunha, respondeu a advogada.
Depois, na primeira oportunidade, Paula Lourenço dirigiu-se ao n.º 60 da lisboeta Rua Alexandre Herculano, onde se situa o Departamento Central de Investigação a Ação Penal (DCIAP), do MP. Foi dizer ao procurador Rosário Teixeira que estava prestes a receber da Suíça os movimentos das contas de Santos Silva e que, se o magistrado quisesse, lhe disponibilizaria de imediato a documentação. Rosário Teixeira só pode ter ficado algo embaraçado, mas, procurador experimentado que é, por certo disfarçou bem.
O magistrado tinha no seu mail todos esses dados há mais de um ano (desde novembro de 2013), que lhe chegaram após o envio, à época, de uma carta rogatória ao MP suíço.
OFICIOSO NÃO É OFICIAL.
Nos interrogatórios feitos aos arguidos pelo juiz Carlos Alexandre, em novembro de 2014, as defesas não foram informadas por Rosário Teixeira de que o MP já possuía elementos sobre o assunto que dominou, quase na totalidade, as perguntas formuladas a Sócrates e, sobretudo, a Santos Silva: as contas na Suíça do empresário amigo do ex-primeiro-ministro.
Mais tarde, haveria protestos de advogados, que invocavam o dever de “verdade e lealdade” do MP para com as partes. O procurador tinha resposta pronta: a receção por correio eletrónico é “oficiosa”, e só se torna oficial com a chegada da documentação em papel.
Na verdade, Rosário Teixeira pediu ao colega de Genebra que retivesse o envio “oficial”, a que apenas deu luz verde em dezembro, por forma a municiar-se de “dados novos” nas contra-alegações aos recursos dos arguidos para o Tribunal da Relação de Lisboa, e na promoção do prolongamento das prisões preventivas de Sócrates e Santos Silva, quando em fevereiro o juiz Carlos Alexandre reviu os pressupostos da medida de coação, o que conseguiu.
Se há lição que Carlos Santos Silva agora aprendeu é a de que “este é o tempo do procurador”, que não permite estabelecer uma “estratégia de defesa”, mas só “gerir as circunstâncias”.
ESCUTAS NA CELA?
Num pequeno salto à retaguarda, temos Paula Lourenço a verificar que a correspondência vinda de Genebra fora apreendida pela AT, culminando os protestos da advogada na apresentação de uma queixa-crime no MP contra incertos, ainda sem desfecho.
O desvio ocorreu a uma segunda-feira (o mencionado dia 2 de fevereiro) e a documentação chegaria ao escritório de Paula Lourenço na sexta-feira seguinte – hermeticamente fechada num invólucro de plástico e com o envelope ostensiva-mente rasgado. Assim se mantém, como prova preservada. A advogada requisitaria uma segunda via a Genebra.
Num outro salto à retaguarda, este maior, vemos Santos Silva surpreendido por, logo após o juiz Carlos Alexandre ter determinado a prisão preventiva e proibir o contacto entre arguidos, ficar na mesma cela que João Perna (atualmente em liberdade provisória), ex-motorista de Sócrates. “É para saberem do que falam, o que dizem”, foi o empresário avisado. Quer então dizer que havia escutas ambientais ali dissimuladas? A resposta de quem alertou Santos Silva limita-se a um revirar de olhos.
É abusivo relacionar estes factos entre si. Mas individualmente considerados não contribuem, por certo, para a saúde psicológica de quem está preso há já cinco meses, caso de Carlos Santos Silva, 56 anos, e logo indiciado por crimes tão graves como corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais, num processo histórico da Justiça portuguesa.
Existem, porém, surpresas intramuros: “Se há dias em que possa estar mais em baixo”, relata um funcionário da cadeia, o empresário “não o deixa transparecer”. As situações complicadas, no entanto, acumulam-se – e assim vão continuar. Também ele disfarça bem.
CADEIA ‘NA MÃO’
Com a sua “vozinha de padre”, como até os amigos a caracterizam, de sotaque beirão nunca perdido, e os seus modos simples, Santos Silva conquistou, na prisão, a simpatia geral – de reclusos a guardas, funcionários administrativos e direção.
“É extremamente simpático, muito bem educado, não se isola, não há a mínima arrogância nele”, diz a fonte já citada. Isto numa cadeia sobrelotada, com capacidade para pouco mais de cem detidos, mas que tem hoje cerca de 140, quase todos preventivos. E onde a permissão de acesso a um minúsculo pátio a céu aberto limita-se a quatro horas diárias.
Muito há de ter custado a Santos Silva a trabalheira burocrática e notarial, feita na prisão, para se afastar de administrador do conjunto das suas empresas, indicando substitutos, de forma a que a sua situação as prejudique o menos possível.
No resto, o recurso da prisão preventiva (chumbado pela Relação de Lisboa), subscrito por Paula Lourenço (do escritório de Germano Marques da Silva), traz um parágrafo lapidar de resistência à tese do MP: Carlos Santos Silva, argumenta a advogada, “tem o direito de exigir que o modo como honra as suas amizades e ajuda os seus amigos seja pelo menos respeitado, mesmo que incompreendido, porque o ato de ajudar os amigos não está tipificado como crime na lei portuguesa e os tribunais estão ainda sujeitos ao princípio da legalidade”.
Acrescenta que auxiliar amigos, “com mais ou menos generosidade, não é contrário à lei e é um ato aprovado pela moral”.
Por altura de apresentação do recurso, o procurador Rosário Teixeira telefonou a Paula Lourenço, numa sexta-feira, 13 de fevereiro último, para marcar uma audição do arguido Santos Silva, no DCIAP, para a quinta-feira seguinte, 19. Mas a advogada encontrava-se adoentada naquela sexta, não compareceu no escritório e só respondeu ao telefonema do magistrado na segunda-feira, 16. Havia uma incompatibilidade na agenda de Paula Lourenço, que lá acabou por aceitar a marcação pretendida pelo procurador.
E, logo de seguida, a advogada recebeu um telefonema de Inês do Rosário, mulher de Santos Silva, que se mostrava alarmada. Tinham de falar rapidamente. Aconteceu que na véspera, domingo, 15, surgiu em cena António Morais, o controverso professor que passou Sócrates em cinco cadeiras na Universidade Independente, e amigo de longa data do empresário.
Nesse dia, diligenciou para se encontrar à noite, num centro comercial lisboeta, com um administrador de uma empresa de Santos Silva. Terá dito ao gestor que era crucial que o seu patrão dispensasse os serviços de Paula Lourenço, que só o estava a prejudicar. Ainda nesse domingo, António Morais convenceu Manuel Santos Silva, primo de Santos Silva e ex-reitor da Universidade da Beira Interior, a deslocar-se da Covilhã (onde reside) a Lisboa para um encontro “urgente” na manhã seguinte, na pastelaria Mexicana. .
Tinha informações (uma das quais a de que Santos Silva ia ser ouvido no DCIAP, na quinta-feira, 19, o que ainda não estava acertado entre Rosário Teixeira e Paula Lourenço) que podiam conduzir à libertação do empresário.
SUSPEITAS DE COAÇÃO
Às 10 e 30, Manuel Santos Silva estava no local combinado quando, à sua mesa, se sentou um indivíduo não identificado. ?O homem foi agressivo: o MP, disse, possui escutas comprometedoras para Inês do Rosário, e se Santos Silva, na audição de quinta-feira no DCIAP, insistisse em não denunciar Sócrates, a filha menor do casal, de 13 anos, corria o risco de ver os dois pais na prisão.
Mas, se mudasse o seu depoimento, rapidamente sairia da cadeia para prisão domiciliária e, depois, já em liberdade provisória, ficava só obrigado a apresentações periódicas. Melhor ainda: na acusação a deduzir pelo MP, o crime de corrupção não lhe era atribuído, sendo-lhe apenas imputado o branqueamento de capitais – que, sem o ilícito antecedente, podia até levar a uma pena suspensa numa eventual condenação em tribunal.
Abruptamente, o indivíduo abandonou a mesa e, a seguir, um perturbado Manuel Santos Silva e António Morais, que chegara à Mexicana, conversariam na rua. O professor terá transmitido ao ex-reitor, quase na íntegra, a mesma mensagem.
BARRICADO NA ‘SUA’ VERDADE
Na tal quinta-feira, 19 de fevereiro, Santos Silva recusou-se a prestar declarações a Rosário Teixeira, em protesto pela “coação” protagonizada pelo indivíduo não identificado e por António Morais, contra o qual, aliás, Paula Lourenço apresentou no DCIAP uma queixa-crime. Será que na trincheira do empresário se acredita mesmo que o procurador é capaz de recorrer a expedientes tão obscuros? “Há mais gente a trabalhar na acusação”, responde-se, enigmaticamente.
Numa entrevista recente à CMTV, António Morais disse que se limitou a dar sequência a uma conversa que teve com Inês do Rosário, a pedido da própria, que “estava muito preocupada com a situação do marido” e lhe solicitou que tentasse ajudar Santos Silva a “ver estratégias de defesa”. Ao contrário do que se esperava, porém, não respondeu à queixa-crime apresentada por Paula Lourenço, em nome do seu constituinte, com uma participação por denúncia caluniosa.
O professor está, aliás, bastante mal visto pelo lado de Santos Silva: “Só fez o que fez porque receia ser envolvido no processo”, ouve-se. Já agora: sabe-se que a Mexicana tem um circuito interno de vídeo, pelo que haverá imagens do indivíduo não identificado. Não, não há. O equipamento encontrava-se avariado.
Na primeira semana do corrente mês, o empresário, mais magro, passou por uma experiência limite: esteve 110 horas fechado na cela, ao longo de cinco dias, por causa de uma greve dos guardas prisionais. Ou seja, em cada um daqueles dias esteve 22 horas enclausurado num espaço de 3,5 por 2,20 metros. Quem o visitou nessa altura impressionou-se com o seu olhar vítreo, opaco, e a dificuldade em responder às perguntas mais simples.
Mas, leitor compulsivo, recompor-se-ia com uma rara boa notícia – foi designado responsável pela biblioteca da cadeia, que possui mais de ?3 600 obras, substituindo um recluso com essas funções e que saiu da prisão.
Como se imagina, a rotina da cadeia é dura: alvorada às sete da manhã, com conto de reclusos; às oito é distribuído o pequeno-almoço, tomado na cela; às nove os calabouços são abertos; ao meio-dia regressa-se à cela, para o almoço; às duas da tarde os calabouços são outra vez abertos; às 17 e 30 volta-se à cela, para o jantar; às 18 e 30 há novo conto de detidos, a que se segue o “encerramento geral”.
Os reclusos têm direito a três visitas por semana, de uma hora cada uma. Mesmo neste ambiente, a que acresce o facto de a sua mulher ter sido, na semana passada, constituída arguida (embora sem medida de coação privativa da liberdade), Santos Silva mantém que os €23 milhões transferidos em 2010 da Suíça para Portugal, ao abrigo de uma amnistia fiscal, são seus e não, como alega o MP, de Sócrates. Mas amigos de ambos afirmam, sem pensar duas vezes, que Sócrates, após perder as Legislativas de junho de 2011, trabalhou como consultor para Santos Silva, enquanto “facilitador” para ajudar a abrir portas importantes.
E perguntam-se: porque não fizeram eles um contrato que normalizasse essa ligação empresarial, em vez de Sócrates, como se verifica em escutas, pedir dinheiro a Santos Silva usando palavras do género “fotocópias” ou “folhas de dossiê”? Em silêncio, procuram uma resposta, que não surge.
Mas, tenha o significado que tiver, o agora bibliotecário Santos Silva está a ler Kafka.
Ilustrações: Hélder Oliveira
José Plácido Júnior
VISÃO 1156
30/04/2015