Nos jornais reina a hipocrisia e quando a realidade não é compatível com a ideologia omite-se. Mete-se em letras pequeninas. Arruma-se num cantinho. Faz-se quase de conta que afinal não aconteceu nada.
Estas primeiras páginas do PÚBLICO e do Jornal de Notícias do dia 8 de Maio – um dia após as eleições britânicas – são uma eloquente introdução ao jornalismo português. Onde estão os resultados?
Em Portugal as redacções são de esquerda, facto em si mesmo nem bom nem mau e que nada tem de original. O problema, ou melhor dizendo o nosso problema, é que essa pertença traduz-se num fenómeno do domínio do paranormal pois só o esoterismo consegue explicar que tendo as redacções como propósito fazer notícias e dependendo o seu sucesso da sua capacidade para as produzir acabem a esconder notícias relevantes simplesmente porque elas põem em causa a sua narrativa prévia sobre o mundo.
Uma narrativa que garante que os partidos que cabem no espectro do progressismo (seja isso o que for!) são invariavelmente os vencedores e que se tal não acontece essa anormalidade só se explica por chapeladas, manipulação ou obscurantismo dos eleitores.
E assim, como a maior parte das nossas redacções está convicta de que nenhum povo poderá votar num partido que além de se dizer conservador defende a austeridade, a derrota de Cameron foi dada como certa. Como tal não aconteceu, apesar de todas as certezas prévias dos enviados especiais, só resta escondê-lo.
Pelo mundo fora há quem proteste. Há quem dê conta da sua fúria como fez o Daily Mirror que naquela que considero a melhor capa sobre o resultado destas eleições britânicas, clama contra o que considera serem mais cinco anos de governo do primeiro ministro David Cameron.
Pode ou não concordar-se com a posição do Daily Mirror mas a capa é indiscutivelmente boa. Contudo em Portugal nunca se faria uma capa destas. Nós somos todos oficialmente neutros. E confundimos esses estado de sonsismo a que chamamos neutralidade com rigor e independência.
Ninguém toma posição a favor ou contra. (Curiosamente, uma das raras vezes que um meio de comunicação tomou posição – a Rádio Renascença aquando do referendo ao aborto – a sua cobertura jornalística foi não só rigorosa como equilibrada.)
Na prática a hipocrisia reina e quando a realidade não é compatível com a ideologia omite-se. Mete-se em letras pequeninas. Arruma-se num cantinho. Faz-se quase de conta que afinal não aconteceu nada e varre-se para debaixo do tapete.
Estas primeiras páginas do Jornal de Notícias e do PÚBLICO tornam-se ainda mais eloquentes quando colocadas ao lado daquelas que essas mesmas publicações dedicaram há bem poucos meses à vitória do Syriza. Esse exercício de comparação foi feito pelo blogue Insurgente (que também englobou o Diário de Notícias). O resultado fala por si.
A incapacidade de noticiar o que não cabe no enquadramento ideológico que os rege é uma característica que tem acompanhado os jornalistas portugueses na democracia. Livres do exame prévio é como se continuassem previamente a ter a certeza do que vai acontecer, do que devem escrever e dizer.
Para a História e memória dessa sobranceria iluminada dos jornalistas logo no nascimentos da democracia ficou aquela reportagem da RTP aquando das eleições de 1975 em que, na fase da apologia do voto em branco, para “todos os que não saibam em quem votar”, o jornalista pergunta no Minho a uma mulher vestida de negro (símbolo para qualquer jornalista do Portugal rural e atrasado que naturalmente não sabia em quem votar) se ela sabia o “que é uma Assembleia Constituinte?” Ao que a mulher respondeu prontamente com outra pergunta:“E o senhor sabe o que é um almude?”
A resposta definitiva chega na pergunta seguinte: “Então porque vai votar?” pergunta com algum paternalismo o jornalista. Sem perder mais tempo ela diz: “Pelo futuro de Portugal”. A reportagem acabou ali.
O lápis azul da censura do Estado Novo passou automaticamente a lápis mental rosa, às vezes vermelho na democracia. Graças a ele os jornalistas portugueses deitaram fora a oportunidade de fazer algumas daquelas que podiam ter sido as suas melhores reportagens. Veja-se o caso dos retornados.
Só depois de milhares e milhares de pessoas terem fugido e dos seus caixotes começarem a atravancar os portos é que vemos os primeiros retornados nos jornais. Mas daí até entrevistá-los foi um passo que demorou frequentemente anos.
E mesmo assim com os jornalistas a fazerem enquadramentos vários sobre se eram retornados ressentidos ou não ressentidos, se tinham sido exploradores ou explorados, colonialistas ou vítimas do colonialismo.
Mais, de Angola e Moçambique, entre Julho de 1974 e meados de 1975, foram expulsos pelas autoridades militares portuguesas vários jornalistas e líderes políticos acusados de “agressão ideológica” sem que tal perturbasse em Lisboa a classe que até 25 de Abril de 1974 se mostrara tão sensível às prepotências do poder.
Em boa verdade se tivesse de escolher um lema para ilustrar o pensamento dominante em muitas redacções optaria pelo slogan do desaparecido O Diário, jornal afecto ao PCP que se anunciava como trazendo “a verdade a que temos direito”.
De facto O Diário dava aos seus leitores a verdade a que os comunistas achavam que eles tinham direito. Como os leitores achavam aquela verdade muito especial ou por assim dizer pequenina, O Diário foi perdendo leitores e não resistiu ao desmoronar do mundo comunista: fechou abruptamente em Junho de 1990.
Ironia das ironias, como nesse ano os feriados se colaram ao fim-de-semana o seu desaparecimento quase só se percebeu uma semana depois e, perante a indiferença geral, os seus trabalhadores foram despedidos ao abrigo das alterações à lei laboral levadas a cabo pelo então primeiro-ministro Cavaco Silva que o mesmo PCP acusava dos crimes mais nefandos por causa de querer instituir no país o despedimento colectivo.
O Diário fechou mas o conceito de “verdade a que temos direito” esse manteve-se. E nem é na política que causa maior dano este circunscrever das notícias à verdade a que os leitores têm direito na óptica do pensamento avançado das redacções.
Afinal há sempre um dia em que os resultados eleitorais desmontam essas certezas. E ao contrário do que se possa pensar nem sempre os líderes amados pelas redacções acabam beneficiados por esse fervor.
Veja-se o caso de António Costa que levado em ombros pelas redacções como o líder que seria capaz de fazer o PS descolar nas sondagens está agora com uma imagem de perdedor porque não consegue obter os resultados que a boa imprensa associava automaticamente ao seu nome.
Mas como disse não é no noticiário político que este vigorar da “verdade a que temos direito” tem mais impacto. É sim nas notícias sobre o quotidiano e naqueles temas que se tornam causas que essa “verdade a que temos direito” se torna na verdade indiscutível.
Assuntos como o aquecimento global, racismo, igualdade, insegurança tornam-se no pretexto para a divulgação de um pensamento único em que nem se admite o simples acto de discordar.
Podia dar centenas de exemplos daquilo a que nos conduziu esta “verdade a que temos direito” levada ao extremo. Mas vamos ficar por outra imagem. Esta reproduzida na página 10 do Diário de Notícias de 6 de Outubro de 2013. Era acompanhada de uma pequena legenda onde se lia “Homenagem aos Bravos da Rotunda. Sargentos.
Os “Nove Bravos da Rotunda” foram ontem homenageados numa iniciativa do jornal O Sargento, na Praça do Marquês de Pombal, em Lisboa. Acampados na praça de 4 para 5 de outubro de 1910, decidiram ali continuar, numa “ação determinante” para o êxito da revolução”.
Mas se repararmos bem na imagem lá ao fundo desfilam vários manifestantes. O que quereriam? A legenda desta foto não o diz. Nem eles são referidos em parte alguma dessa edição do jornal. Nem dos outros jornais. Alguns blogues deram conta da sua estranheza mas o assunto não mereceu qualquer destaque.
Aliás segundo um dos participantes nessa manifestação mediaticamente invisível, José Ribeiro e Castro, à excepção da Lusa e da Rádio Renascença não houve qualquer outra referência àquela manifestação que vemos ao fundo nesta fotografia. Como foi isto possível?
Foi possível porque aquela manifestação não cabia no conceito de verdade a que temos direito: aqueles manifestantes desfilavam contra o aborto e a verdade a que temos direito só nos dá o direito a sermos informados sobre manifestações a favor do aborto.
Esta fotografia é um símbolo do jornalismo a que temos direito em Portugal: o repórter fotográfico saiu da redacção do Diário de Notícias, que por sinal ficava mesmo ao lado, e foi fazer a foto da homenagem aos revoltosos de 1910. De entre as fotos que fez seleccionou-se a melhor.
Na redacção alguém fez uma legenda a explicar o que faziam aquelas vinte ou trinta pessoas ao pé da estátua do Marquês de Pombal. Lá ao fundo passava uma manifestação. Reunia centenas de pessoas: 500 para a Lusa, mais de mil para os organizadores. Mas sobre ela caía o manto da invisibilidade da verdade a que temos direito.
Helena Matos
10/05/2015