Elementos de uma comissão aeronaval portuguesa destacaram hoje, no Mindelo, a importância da ciência naval na travessia do Atlântico por Sacadura Cabral e Gago Coutinho, com escala há cem anos naquela cidade cabo-verdiana, que ainda celebra esse feito.
“A verdade é que estes aviadores deram um contributo na área da ciência náutica. Fizeram uma travessia que parece simples, mas sobretudo com o problema de orientação poderiam nunca ter chegado ao destino. E conseguiram chegar com precisão onde queriam, com a navegação que era na altura utilizada no mar e que a transformaram para poder funcionar no avião”, explicou o vice-almirante Edgar Bastos Ribeiro, Diretor da Comissão Cultural de Marinha portuguesa.
O oficial integra a Comissão Aeronaval 100TAAS, constituída por seis militares da Marinha e Força Aérea de Portugal, que está na ilha cabo-verdiana de São Vicente para assinalar o centenário da travessia aérea do Atlântico pelos dois aviadores portugueses.
“Não poderíamos deixar de estender estas atividades a Cabo Verde porque o país foi um ponto de passagem, onde o hidroavião esteve alguns dias parado e daqui se lançou para a rota maior a caminho do Brasil. É um feito que está inclusive como património da UNESCO, a UNESCO também se associou a este evento, ajudando, mas sobretudo registando nos seus arquivos e na sua plataforma de divulgação este evento”, frisou Edgar Bastos Ribeiro, em declarações à Lusa à margem do programa das comemorações realizadas hoje no Mindelo, ilha de São Vicente.
O hidroavião “Lusitânia” fez história em 1922 ao ligar o Atlântico, mas a passagem dos “aviadores” Gago Coutinho e Sacadura Cabral por São Vicente permanece na memória daquela ilha cabo-verdiana. Além de ter sido a primeira travessia aérea do Atlântico sul, foi também o primeiro voo que Cabo Verde recebeu.
No final do dia 05 de abril de 1922, o hidroavião Fairey III D Mkll — o primeiro de três usados naquela histórica travessia – amarou na baía do Mindelo, ilha de São Vicente, depois de uma viagem de 10 horas e 43 minutos para percorrer 1.572 quilómetros, desde as Canárias, que tinham sido a primeira paragem após a saída de Belém, Lisboa, em 30 de março.
Um marco que deixou algumas “pegadas” em São Vicente, na forma de monumentos, mas as condições destas obras têm vindo a motivar preocupação naquela ilha.
Há cem anos, aos comandos do hidroavião seguiam Gago Coutinho, experiente cartógrafo da Marinha, e Sacadura Cabral, piloto com larga experiência, conhecimentos complementares e tidos como decisivos para o sucesso de uma viagem com, no total, cerca de 8.300 quilómetros, chegavam ao Mindelo.
Em Cabo Verde, o programa das comemorações do centenário envolve ainda o apoio das Forças Armadas do arquipélago, o Instituto do Património Cultural, a Câmara Municipal de São Vicente, a Universidade Técnica do Atlântico (UTA) e a Embaixada de Portugal, nomeadamente com atividades de âmbito cultural.
Segundo os relatos da altura, os dois aviadores portugueses foram recebidos, triunfantes, pela população da ilha de São Vicente.
As autoridades municipais mandaram mesmo construir um padrão no local onde aportaram, na baía, e edificaram outro cerca de dez anos depois.
Um século depois, a Comissão Aeronaval 100TAAS está a promover o feito com ações em Portugal, Cabo Verde e Brasil, divulgando os valores da “coragem física, da determinação”, mas também do “conhecimento”.
“Foi criada pela Marinha e pela Força Aérea para divulgar este feito que ocorreu há cem anos e que juntou os dois lados do oceano Atlântico, a Europa e a América do Sul, neste caso o Brasil, e com isso revolucionou aquilo que são hoje as viagens aéreas transatlânticas. É um facto que junta simultaneamente a coragem de dois homens, mas essencialmente o saber, a ciência”, explicou o tenente-general Rafael Martins, presidente da Comissão Histórico-Cultural da Força Aérea Portuguesa, ramo que representa nesta comissão.
“E foi a ciência que nos dá hoje a possibilidade de voarmos por todos os continentes”, acrescentou.
Em São Vicente, Gago Coutinho e Sacadura Cabral permaneceram mais de dez dias, em reparações do hidroavião “Lusitânia”. A etapa seguinte foi curta, até à Praia, ilha de Santiago, e aconteceu em 17 de abril, com 315 quilómetros percorridos em pouco mais de duas horas. Pouco mais do dobro do tempo das ligações aéreas atuais, cem anos depois.
Naquela ilha, central na travessia de 1922, o programa das comemorações envolve hoje conferências e a inauguração de uma exposição no Museu do Mar, entre outras atividades.
De acordo com o presidente do Instituto de Engenharias e Ciências do Mar, da UTA, com sede no Mindelo, aquela instituição de ensino superior público participa nestas comemorações precisamente pelo objetivo de instalar na ilha do Sal um polo dedicado à engenharia aeronáutica.
“E falar de qualquer ciência, é preciso falar da sua história, portanto a proeza de Sacadura Cabral e Gago Coutinho constitui sem dúvida um marco muito importante para a história da aviação em Cabo Verde”, explicou Henrique Évora.
Os dois aviadores deixaram Cabo Verde – ilha de Santiago – em 18 de abril de 1922 para o troço mais longo da viagem. Levaram 11 horas e 21 minutos para percorrer os 1.682 quilómetros até amarar no arquipélago de São Pedro e São Paulo, um conjunto de pequenos ilhéus rochosos do estado brasileiro de Pernambuco, mas ainda a quase 1.000 quilómetros da costa continental.
Ali trocaram para o Fairey N.º 16, batizado de “Pátria”, mas este sofreu uma avaria no motor em 04 de maio, na viagem a caminho do arquipélago de Fernão de Noronha, e os aviadores foram forçados a amarar de emergência.
Já no terceiro hidroavião, o Fairey N.º 17, batizado “Santa Cruz”, Gago Coutinho e Sacadura Cabral chegaram ao Rio de Janeiro em 17 de junho de 1922, o destino final.
No dia 12 de Abril de 1926 todos queriam apertar os ossos ao Almirante!!…
Gago Coutinho era recebido em Espanha com honras régias e D. Afonso III teimava em tê-lo sempre a seu lado. Pelas ruas, o povo saudava o sábio e simpático português como se de um espanhol se tratasse.
Talvez nem toda a gente escrevesse ao Almirante, mas certamente que toda a gente queria apertar os ossos ao Almirante, como diz o povo. Almirante Carlos Viegas Gago Coutinho, ou só Gago Coutinho, que dá mais jeito. O homem que, com Sacadura Cabral, efectuou a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, em 1922. Já lá iam quatro anos, mas nada lhe abalava o prestígio. Nesse mês de Abril de 1926, estava em Espanha, como enviado especial do governo português. Em Huelva e em Sevilha foi recebido com a pompa e a circunstância de um verdadeiro herói. Por cá, como sempre, a imprensa lambia o próprio pêlo de orgulho, como um cachorrinho bem comportado: ter um compatriota a ser ovacionado pelas ruas das cidades espanholas era do quilé. “O sábio e simpático Gago Coutinho tornou-se, em Espanha, uma figura popular. As manifestações de que foi alvo tiveram a chancela oficial muito acima da habitual frieza protocolar, como o caracter sincero e atraente das multidões!” Assim, sim, portuguesinho valente a ser aplaudido pelos vizinhos do lado sempre dispostos a dedicar-nos o menoscabo.
Contava-se o episódio desvanecedor: um alemão, acabado de aterrar em Sevilha, ficou boquiaberto com tanta gente na rua, em romaria. E perguntou, inocente: “Mas quem é este homem, alvo de singulares ovações em toda a parte, na rua e nas salas?” Não sabia o ignorante teutónico que não se tratava de um espanhol, como ele julgava, mas sim de um português de peito enfunado como vela de galeão, como o Raposão do divino Eça na Terra Santa em busca de relíquias para a horrenda Titi.
Momento alto
Recebido a bordo do couraçado Catalunha pelo próprio monarca espanhol, Afonso XIII, Gago Coutinho, no seu estilo tímido, não quis tomar a frente da fileira quando por este passou, apitando, o Buenos Aires. Na coberta de um e de outro navio, altos dignitários, tilintando de medalhas, saudavam-se galhardamente uns aos outros. Notando a delicadeza do Almirante, o Rei foi pessoalmente à sua procura pelo meio de todos os oficiais que o rodeavam e solicitou-lhe que permanecesse sempre a seu lado, de forma a que todos pudessem homenageá-lo como merecia, e certamente merecia bem mais do que a maioria dos bem-fardados que quase abafavam a sua figura de especto frágil. Gago Coutinho ficou particularmente tocado por esta real amabilidade e viria a expressá-lo no regresso a Lisboa.
Os jornalistas nacionais que acompanhavam a viagem deliraram: “Cá em baixo, os embaixadores, os ministros, sabiam que os dois homens tinham, nesse momento, as honras do navio – o rei espanhol e o navegador português. Esta gentileza tradicional do monarca foi correspondida sempre pela multidão. Gago Coutinho chegou a ser alvo de manifestações que fariam supor a um estrangeiro (e provavelmente ao tal alemão, digo eu), fora das realidades, que ele também fizera, ao lado de Francisco Franco, acabado de ser promovido a general, a travessia do Atlântico com os bravos aviadores espanhóis que, nesse dia, regressaram a casa. E não podia haver nisto tudo preparação ou simples deferência”.
Era de sublinhar que Portugal e Espanha viviam momento de fraterna e correspondida amizade. O dr. Melo Barreto, embaixador em Madrid, era o primeiro a confirmá-lo, acrescentando que não se tratava apenas de mero entendimento diplomático e político. Ia bem para além disso. Tratava-se de uma forte união popular que a visita do Almirante servira para afirmar nas ruas por onde passou e foi festejado como se de um espanhol se tratasse. Chamaram-lhe “O abraço de Sevilha”. Aquele que Afonso XIII, que abdicaria cinco anos mais tarde, ofereceu de coração cheio ao Almirante que andava na boca do povo.
TPT com: Lusa// SYN/PVJ // VM// Afonso de Melo/Jornal I// 12 de Abril de 2022