25/02/2015
“A União Europeia será talvez uma resposta à história, mas nunca poderá substitui-la”, escreveu Tony Judt. O que por vezes temos tendência a esquecer.
“Museu das Vítimas dos Genocídios”, este é o nome do imponente edifício que em Vilnius, capital da Lituânia, pretende mostrar ao público a história das ocupações soviética e nazi. O edifício construído no final do século XIX reflecte a história conturbada do país e da cidade: província do império russo até 1914, Vilnius foi ocupada pela Alemanha durante a Primeira Grande Guerra e em seguida pela Polónia até 1939. Em 1940-1941, ao abrigo do pacto Ribbentrop-Molotov, a União Soviética entra na cidade e o edifício do actual museu foi quartel-general da NKVD – a polícia política soviética – e prisão dos recalcitrantes.
Com a invasão nazi, no verão de 1941, o edifício torna-se sede da Gestapo e do Sonderkommando A – esquadrão de extermínio, que com o apoio de letões e lituanos, levou a cabo até 1944 o assassinato da quase totalidade dos 250 mil judeus da Lituânia, assim como de ciganos, resistentes nacionalistas e comunistas. E finalmente, entre 1945 e 1991, durante a longa ocupação soviética, o edifício torna-se de novo sede da polícia política comunista, rebaptizada em 1952 com o nome de KGB, local de interrogatório, tortura, prisão e execução.
Com uma história assim, o que nos conta hoje o Museu? Foi o que fomos ver neste verão de 2014, no decorrer de mais um “Seminário sobre Rodas”, viagem de estudo organizada pela Memoshoá – Associação Memória e Ensino do Holocausto, que desde há cinco anos percorre a Europa nos “passos” da Shoá com professores do ensino básico e secundário.
A maior parte dos três imensos andares do edifício é preenchida por aquilo que foi a prisão do NKVD-KGB. A guia, uma mulher jovem, conduz-nos demoradamente pelos meandros da prisão, as suas alas de interrogatório e tortura, celas e local de execução dos prisioneiros… Mas no decorrer da visita guiada apercebemo-nos da existência, sem qualquer menção nem paragem por parte da guia, de uma pequena cela com uma estrela de David ao fundo. Trata-se de um espaço exíguo onde o nosso grupo de 27 pessoas não cabe todo ao mesmo tempo, o único dedicado ao período nazi em todo o museu.
Questionada, a guia remete para o final a visita ao referido espaço. Na verdade, esta não terá lugar: sob pretexto de que “somos especialistas” e que não precisamos dela, abandona-nos precipitadamente. Parece-nos evidente que não está preparada para nos falar do nazismo e sobretudo das vítimas judias…
O Museu das Vitimas do Genocídios conta bem a história de quase meio século de ocupação soviética: os documentos, as fotos e testemunhos são abundantes, esclarecedores e constituem uma clara condenação do regime comunista. Conta-nos também o combate pela independência da Lituânia e a resistência nacional e popular anti-soviética ao longo de todo esse período histórico. Mas a história da ocupação nazi é-nos praticamente ocultada.
A narrativa do Museu é clara: sim, fomos ocupados pelos nazis entre 1941 e 1944, mas o verdadeiro sofrimento, aquele que tem de ser contado, narrado e nunca esquecido, é o meio-século de ocupação soviética. Esta é a narrativa que encontrámos com pequenas diferenças e algumas (poucas) excepções nos três países do Báltico: Lituânia, Letónia e Estónia. Os grandes museus nacionais evocam o sofrimento das populações sob o regime soviético, calando ou minimizando o massacre dos seus cidadãos judeus.
É compreensível? Em parte sim. Independentes entre 1920 e 1939, os três países ocupados pela URSS em 1939/1940, ao abrigo do Pacto Molotov-Ribbentrop, acolhem os nazis em 1941 como libertadores e muitos colaboram no extermínio dos judeus, ciganos e quadros comunistas. E em 1944-45, quando finalmente aguardam pelo restabelecimento da independência nacional, são de novo ocupados pelo poder soviético e desta vez até à sua derrocada, em 1991.
São pois décadas de esperanças frustradas, de repressão, de deportações para os goulags siberianos. Por outro lado, nestes países ferozmente nacionalistas, as minorias étnicas ou religiosas não “são parte”, são os “outros”: a cultura define a nacionalidade, herança do império russo. Presentes desde o século XIV na Lituânia, na Letónia no século XVI e no século XVIII na Estónia, os judeus são considerados uma minoria nacional não autóctone, com as consequências óbvias em termos de marginalização social.
Mas vinte e três anos depois da libertação, é tempo de reconhecer que a história dos países do Báltico não é apenas uma longa e heróica luta pela independência. É também uma história de quatro anos de colaboração com o nazismo no extermínio praticamente total de uma parte significativa da sua população.
Nas valas comuns das florestas de Ponary, em Vilnius, de Rumbula e de Bikernieki, perto de Riga ou de Klooga em Tallinn, jazem as cinzas dos cerca de meio milhão de judeus das comunidades dizimadas entre Julho e Dezembro de 1941, pelos Einsatzgruppen que acompanham o exército nazi na Operação Barbarossa. Em Janeiro de 1942, na conferência de Wahnsee, os três países do Báltico já são considerados praticamente judenrein – “limpos” de judeus.
A brutalidade da matança coincide muito provavelmente com a decisão de Hitler nesse Outono de 1941 de levar a cabo o que hoje chamamos de Holocausto: o extermínio total do povo judeu.
Nas imensas e belíssimas florestas do Báltico que percorremos, pequenos e simbólicos memoriais erguidos perto das valas comuns por alguns sobreviventes, ou seus descendentes imigrados, financiados na sua maioria por entidades judaicas e doadores americanos, lembram um genocídio que liquidou perto de 100% de comunidades com uma vivência cultural única no mundo judaico.
Os três países têm em comum uma intensa vida religiosa nos séculos XVIII e XIX à qual sucede uma vivência politica e cultural marcada pela secularização: desenvolvimento do movimento operário e dos movimentos sionistas, crescimento de uma imprensa, literatura e ensino em Iídiche e hebraico. Na viragem do século, Vilna, em russo, Vilno, em polaco, Vilnius em Lituano e Vilné em Iídiche, é o centro de todos os movimentos que suscitam uma transformação radical da vida judaica. A sua situação geográfica explica este papel chave. Considerada a “Jerusalém da Lituânia”, é um ponto de confluência entre o Ocidente e Oriente europeus, onde as correntes de vanguarda encontravam eco numa intelectualidade muito receptiva e preparada.
Na véspera da II Guerra, as cidades do Báltico partilham assim uma brilhante cultura judaica e universal com um forte tecido associativo, cultual e cultural. Tudo isto será destruído pelo genocídio nazi. No final dos anos 1990 viviam apenas no conjunto dos países bálticos independentes, 25.000 judeus e os vestígios do seu brilhante passado praticamente desaparecidos. Hoje, pelo que pudemos apurar, serão ao todo entre quinze a dezassete mil a lutar pela sobrevivência das suas comunidades.
O poeta de língua Idiche, Abraham Sutzkever, escreveu: “E se na minha cidade não restarem mais nenhuns judeus, as suas almas continuarão a habitar as suas ruelas sinuosas”. Mas mesmo as almas precisam de espaço na memória dos povos. Vilnius, Riga, Tallinn, cidades que procuram sarar as feridas de uma longa e recente ocupação, talvez ainda não sejam capazes, mas o que elas nos demonstram é que a memória europeia não é simétrica no leste e no ocidente europeu. “A União Europeia será talvez uma resposta à história, mas nunca poderá substitui-la”, escreveu Tony Judt. O que por vezes temos tendência a esquecer.
Autora:
Esther Mucznik