Coréon Dú, o filho artista do presidente de Angola

16/03/2015

 
Os pais queriam que fosse médico, engenheiro ou economista – mas José Paulino dos Santos decidiu ser Coréon Dú, artista.

 

 

Coréon Dú entra na sala com um fato azul e rosa, de calções, meias de motivos geométricos pretos e brancos e umas grandes botas de cabedal. Todos estão vestidos em tons escuros na apresentação da coleção de sapatos do modelo luso-guineense Armando Cabral, durante a semana da moda de Nova Iorque, e o músico angolano, de 30 anos, destaca-se. Move-se de forma discreta, mas sorri quando cumprimenta o modelo e estilista, um sorriso de criança, que não terá mudado muito desde que tinha oito anos, todos o chamavam José Paulino e o pai, Presidente de Angola, concordou que fosse viver para casa dos avós, em Lisboa, longe da guerra civil que assolava o país.

 

 
Dois dias depois, o filho de José Eduardo dos Santos e da sua segunda mulher, Maria Luísa Perdigão Abrantes, está no restaurante do The Greenwich, o elegante hotel de Robert DeNiro em Manhattan. Explica que está nos Estados Unidos para a promoção do seu último álbum, Binário, com voz baixa e os olhos fixos na mesa à sua frente, uma postura que contrasta com as calças de padrão étnico, a T-shirt colorida e a camisa de ganga, que ele mesmo tingiu. Durante esta semana, foi a desfiles de moda, deu entrevistas e organizou uma apresentação visual do seu álbum. Numa sala adaptada para o efeito, vários artistas convidados mostraram uma série de esculturas, instalações e pinturas inspiradas na sua música – havia, por exemplo, uma árvore multimédia onde vários ecrãs mostravam imagens do artista distorcidas até este ser quase irreconhecível. “O meu meio de expressão preferido é a música”, explica o angolano, mostrando imagens do evento no seu portátil, “mas sou um artista.”

 

 

Samacaca, a primeira inspiração.

 

 

Apesar de hoje ser dono da Semba Comunicação, que produziu a telenovela Windeck, o documentário I Love Kuduro (em exibição nos cinemas portugueses) e todos os anos celebra contratos multimilionários com o Estado angolano, José Paulino soube sempre que não pertencia ao mundo da política e dos negócios. Com cinco anos destruiu os lençóis e cortinados de casa inspirado pelos estilistas da novela brasileira Ti Ti Ti. “Lembro-me da minha avó e da minha mãe terem ficado chateadíssimas. Mas eu só queria fazer roupa para os meus brinquedos, ser como aqueles dois designers.” Terá sido uma das primeiras vezes que José Paulino deu lugar a Coréon Dú.

 

 
Pouco tempo depois, pediu a um tio que lhe fizesse um corte de cabelo inspirado em Bobby Brown. “Foi considerado extravagante”, garante. “Chamaram os meus pais à escola e disseram que estava a ser uma má influência.” José Eduardo dos Santos e Maria Luísa Abrantes “não viram qualquer problema, até acharam querido, mas a sociedade angolana era muito conservadora e tinha certas normas. Queriam impor o cabelo curto, normal, para não destoar entre os outros.” José Paulino começou a ser vítima de bullying quando se mudou para Lisboa. “Era um momento particularmente xenófobo da história de Portugal, com uma certa resistência a tudo o que era estrangeiro e, sobretudo, das antigas colónias”, lembra. “Senti isso na pele, de forma severa, por parte de pessoas de todas as idades, desde os meus colegas da escola a pessoas na rua.”

 

 

Aos onze anos, mudou-se para os EUA com a mãe e os irmãos. Os problemas continuaram. Na escola, em Washington, os colegas gozavam com o seu sotaque britânico, o nome português, os hábitos diferentes ou o estrabismo. Quando se esqueceu de empurrar uma cadeira, a professora obrigou-o a ficar em pé durante toda a aula, dizendo: “Tenho a certeza de que estás habituado a ter empregadas em casa, mas aqui não sou a tua empregada.”

 

 

Entre os 12 e os 13 anos, viveu a fantasia de ser um escritor atormentado. “Não podes fazer algo mais alegre, mais leve?”, perguntava-lhe a professora de literatura, sobre os textos depressivos. “Não”, respondia-lhe, “é assim que me sinto.” Foi nessa altura que começou a vestir-se de forma diferente. Vestia-se de negro, “meio gótico, meio punk”, mas apenas longe dos olhares da mãe: “Quando saía de casa, lá punha o aparato todo.” Começou a pedir que lhe chamassem Coréon Dú.

 

 

Apesar de visitar Luanda todos os anos, só no final da guerra civil é que pôde conhecer o país. “Fui ao Sul, a Lubango, à floresta do Mayombe, a Cabinda… achava tudo fantástico.” Quando descobriu a Samacaca, um tecido tradicional, sentiu-se inspirado para fazer roupas. “Umas brincadeiras”, recorda, primeiro para si, depois para os primos, finalmente para os amigos. Foi desafiado para desenhar uma coleção e, no final do desfile, convidaram-no para a apresentar na Angola Fashion Week. Ainda era adolescente e já estava na maior mostra de moda angolana.

 

 

‘Artistas na família, não’

 

 

Com 16 anos, disse aos pais: “Quero ser artista.” E prosseguiu: “Vou estudar teatro musical, porque é isso que quero ser: um performer, fazer filmes, entrar em musicais da Broadway.” Dos pais, diz que recebeu “um ‘não’ redondíssimo.” Disseram-lhe: “Filho, podes ser médico, engenheiro, advogado, gestor, tudo isso. Agora, artistas, na família, não nos interessa.” Apesar dessa resposta, o angolano recorda que José Eduardo dos Santos foi compositor de uma banda nos anos 50 e 60 e escreveu letras para vários músicos. Diz também que vários dos seus seis irmãos – como Isabel, que a revista Forbes considera a primeira bilionária africana, ou José Filomeno (Zenu), que preside o Fundo Soberano de Angola e é apontado como o sucessor do pai – também têm apetências artísticas. “Quase todos cantamos ou tocamos algum instrumento. Eles receberam a mesma versão da conversa, mas eu fui aquele que disse: ‘Ótimo, então vou fazer o meu curso, e depois…'” Depois seria o fim de José Paulino dos Santos.

 

 

Durante o curso de gestão na Universidade de Loyola (Nova Orleães), ficou tão deprimido que começou a frequentar outra licenciatura, em ciências da comunicação, com foco em publicidade, porque “tinha uma componente criativa muito forte.” No final, mudou-se para a Europa e tirou um mestrado em Dança-Teatro na escola de dança Laban, em Londres.

 

 
Regressou a Luanda, onde ainda vive, com 22 anos, e criou a Semba Comunicação, juntamente com a irmã Welwitschea José dos Santos (Tchizé). Desde o primeiro ano que a empresa ficou responsável pela promoção de Angola no exterior, através de campanhas institucionais milionárias e do desenvolvimento do canal internacional da Televisão Pública de Angola (TPA). As campanhas, que passaram na CNN Internacional, foram encomendadas pela Agência Nacional de Investimento Privado (ANIP), cuja presidente é a mãe de Coréon e ex-mulher do Presidente de Angola. Segundo o site Maka Angola, do jornalista Rafael Marques de Morais, o Orçamento do Estado angolano do ano passado atribuiu à Semba quase 60 milhões de dólares para campanhas através do Gabinete de Revitalização e Execução da Comunicação Institucional e Marketing da Administração (CRECIMA) e outros 50 milhões para gestão de dois canais da TPA. No total, perto de 110 milhões de dólares (cerca de €87 milhões).

 

 
Em 2010, Coréon Dú era também acionista (10%) da Di Oro, empresa detida em 90% pela irmã Tchizé e o marido, quando José Eduardo dos Santos autorizou o prorrogação dos termos de uma concessão de diamantes, Projecto Muanga, a uma associação de quatro empresas, entre as quais as Di Oro. Já em 2005, dos Santos tinha prorrogado a exploração de outro negócio de diamantes, o Projecto Cabuia, a um consórcio do qual a empresa dos filhos fazia parte.

 

 

“Pago as minhas contas”, diz José Paulino, recusando acusações de favorecimento: “A oportunidade que tive foi o investimento dos meus pais na minha educação, numa época em que não era fácil.” O empresário garante que o arranque explosivo da Semba se deve a contactos feitos desde os 16 anos a produzir eventos. “Algumas pessoas olham para o percurso da Semba [e esquecem-se] que abriu com uma base de clientes. Se tinha um cliente para quem, aos 19 anos, tinha feito a festa de Natal, quando ele viu aquela estrutura começou a contratar-me para desafios mais sérios…” Coréon diz mesmo que ser filho do Presidente angolano tem, sobretudo, desvantagens: “Infelizmente, para mim cria mais impedimentos do que abre portas, sobretudo por estar no ramo criativo. Acham que não tenho integridade artística ou que sou um socialite aborrecido em busca de algo.”

 

 

Celebrar a diferença

 

 

A Semba também já chegou a Portugal. Não só através do documentário I Love Kuduro, do realizador Mário Patrocínio, e da novela Windeck, que passou na RTP, mas também da compra das revistas Lux, Lux Woman e Revista de Vinhos, no ano passado, pela luso-angolana Masemba, de que é sócia.

 

 
Coréon foi o responsável pela história da Windeck, que foi nomeada para um Emmy Internacional, e diz que tentou refletir na novela “a realidade urbana luandense.” Foi por isso que introduziu “a personagem principal, sem escrúpulos, que não olha a consequências para chegar ao topo económico e social, e temas que foram relativamente polémicos, como ter um casal homossexual, duas lésbicas, um personagem gay…”.

 

 

O músico diz que “apesar de Angola ser um país conservador, onde existe muito preconceito, as pessoas conseguem entender-se e respeitam o espaço umas das outras, ao contrário de sítios em África onde, infelizmente, se perseguem pessoas por terem uma determinada religião, grupo étnico ou orientação sexual.” Criado em escolas particulares, com aulas todo o ano, diz que não consegue ficar parado – e os negócios lucrativos dão-lhe tranquilidade para se dedicar à carreira musical. No primeiro álbum, Coréon Experiment, cantou um dueto com Luciana Abreu. Editou depois um álbum com misturas desses temas e, já em 2014, lançou o segundo disco de originais, Binário.

 

 

Tanto canta kuduro como pop, semba, kizomba ou música de dança. “Não me limito a um género musical, porque a minha música tem mais a ver com o sentimento que quero transmitir”, explica. “Reduzir-me a um género seria trair-me como artista.”

 

 

Diz que os episódios de bullying e o preconceito por ser filho do Presidente o inspiram. “Tento transformar estas memórias em algo que dê força e autoestima, para permitir que cada um celebre a sua forma de ser e a sua criatividade.” É por isso que se revê no kuduro, que entende ser “o único género angolano, não só musical mas cultural, que celebra a diferença.”

 

 
No início, os pais não iam aos seus espetáculos. “Diziam que não gostavam”, lembra. Nos últimos anos, no entanto, começaram a aparecer, sem dizer nada. Amigos e colegas diziam-lhe depois que tinham visto o pai ou a mãe na plateia. “No mundo ideal, preferiam que tivesse sido engenheiro ou médico, mas tiveram de render-se às evidências”, explica. “O que os convenceu foi a minha persistência. Quando tinha cinco anos queria ser artista, quando tinha dez, quando tinha 16… E depois de acabar a faculdade continuava a querer ser artista.”

 

 
Em 2011, o Governo angolano contratou a Orquestra Clássica da Madeira, dirigida pelo Maestro Rui Massena, para o concerto do dia da Independência. Foi José Paulino que entrou em palco: nervoso, tímido. Mas quando cantou o tema tradicional Kambuta, de impecável smoking azul, era já Coréon Dú, o artista. Na plateia, os olhos de José Eduardo dos Santos brilhavam.

 

 
Alexandre Soares, em Nova Iorque

 

 
VISÃO 1128

 

 

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