Salazar via a guerra como uma forma de ganhar tempo para melhorar as condições de vida e conquistar o coração e as mentes dos povos coloniais. E apresentava-a como fazendo parte da defesa do Ocidente.
No quarto texto desta série em que se procura analisar e contrastar alguns dos relatos mais tradicionais sobre o que foi a guerra colonial, analisamos hoje a estratégia seguida por Salazar. Foi uma estratégia que conseguiu sustentar o esforço de uma guerra travada em três frentes mas que estava condenada ao insucesso, pois contrariava a grande estratégia europeia ocidental e norte-americana que, ao não partilhar as suas preocupações e o seu desejo de preservar a África subsaariana sob tutela colonial, seguiu por outros caminhos.
Nos três artigos anteriores abordámos, sucessivamente, os seguintes temas: 1. Como Salazar preparou a guerra colonial; 2. Angola, 1961: como os independentistas prepararam a guerra; 3. Para haver “capitães” teve que haver generais.
IDENTIDADE E POLÍTICA
Num discurso proferido a 12 de Agosto de 1963, Salazar fez questão de colocar claramente a possibilidade e a necessidade do “povo” português, da “metrópole” e do “ultramar”, se pronunciar em “acto solene e público sobre o que pensa da política ultramarina que o Governo tem prosseguido”.
Salazar apresentou a política ultramarina, confrontada naquele ano de 1963 com uma frente de guerra em Angola e outra na Guiné, como decorrendo do facto de ter sido definida e executada para garantir e por garantir a “própria existência e identidade da Nação”.
Salazar fez ainda questão de sublinhar aqueles que seriam os três elementos essenciais da “política ultramarina”: dois foram enunciados pela negativa, um pela positiva. Proclamou, em primeiro lugar, que a política ultramarina não tinha fundamentos económicos. Declarou depois que a reacção política e militar que a política ultramarina vigente provocara, e tal como protagonizada pelo movimentos de libertação, como a própria existência dessa política ultramarina, não decorriam da natureza autoritária do Estado Novo. Salazar, aliás, e como seria natural, negava que tanto na “metrópole” como no “ultramar” vigorasse qualquer “política de opressão.”
Por fim, o presidente do Conselho apresentou a política ultramarina, confrontada naquele ano de 1963 com uma frente de guerra em Angola e outra na Guiné, como decorrendo do facto de ter sido definida e executada para garantir e por garantir a “própria existência e identidade da Nação”. Estas razões eram de tal forma ponderosas que o levavam a afirmar que uma eventual alteração de rumo da política ultramarina, como a sua manutenção, teria sempre consequências “decisivas para todos e definitivas para o futuro.”
Salazar e os demais arquitectos e executantes da política ultramarina entendiam a preservação da integridade, total ou parcial, do estado colonial não tanto como um elemento básico na defesa do chamado interesse nacional, definido política, económica e sociologicamente, mas enquanto fórmula única de afirmação e de salvaguarda da identidade política e cultural portuguesa.
Um mapa que é todo um programa: “Portugal não é um país pequeno”. Estava em todas as escolas do país. E fora organizado por Henrique Galvão, que mais tarde se tornaria um temível opositor de Salazar.
O recurso ao argumento identitário é relativamente simples de explicar. Desde a década de 1950, depois da sociedade internacional, e especialmente a europeia, ter conhecido um processo de transformação acelerada provocada pela Grande Depressão e pela Segunda Guerra Mundial, e justamente quando acabava de ter início uma etapa, muito incerta, de construção daquele que viria a ser um novo paradigma de organização do sistema internacional designado por Guerra Fria, o discurso identitário oficial português assentou definitivamente no pressuposto segundo o qual a nação portuguesa seria histórica e politicamente uma só “comunidade” mas na qual a dimensão pluricontinental e multirracial era a sua pedra angular, ainda que reconhecidamente “inventada”, “imaginada” e sustentada pela primazia histórica e política do Portugal europeu.
As razões de uma política foram apresentadas e glosadas nestes termos de forma exaustiva pelos seus responsáveis até ao momento em que Salazar foi forçado a abandonar a presidência do Conselho. Mas já o problema da definição e apresentação da grande estratégia que sustentou a política ultramarina adoptada, com aparência definitiva e imutável depois da revisão constitucional de 1951, e a guerra de contra-insurgência que mais tarde se seguiu, não mereceu ainda a atenção devida.
Salazar defendeu a política colonial de Portugal com base numa grande visão sobre o que significava o Atlântico para o Ocidente: “se neste mar se criassem bases comunistas, se uma única das nações litorais fosse hostil à nossa concepção de civilização, o Atlântico em vez de uma ligação capital transformava-se numa barreira.”
No geral, diga-se, as análises dominantes sobre as razões da guerra tendem a centrar-se na vontade e nas idiossincrasias de um homem (ou de uma clique político-militar e económica) que certamente desempenharam um importante papel, mas a ignorar a avaliação necessariamente feita pelos decisores políticos sobre as implicações que a médio-longo prazo o prosseguimento, ou não, de uma política certamente acarretaria.
A GRANDE ESTRATÉGIA DE SALAZAR
A grande estratégia de Oliveira Salazar, e do Estado Novo, no que diz respeito às opções de política ultramarina, ou colonial, terá origens mais ou menos longínquas. Podem, por isso, ser identificadas, em alguns dos seus aspectos, ainda durante a vigência da Monarquia Constitucional ou da I República, mas também nos anos em que vigorou a Ditadura Militar ou quando o Estado Novo dava os seus primeiros passos, procurando erguer-se e consolidar-se. No entanto, em termos mais imediatos, as suas origens detectam-se nos anos da Segunda Guerra Mundial, primeiro, na reformulação discreta da política colonial prosseguida no imediato pós-guerra, depois, e, finalmente, nas importantes reformas da política colonial, de política económica e na viragem sofrida pela política externa ocorridas a partir do início da década de 1950 e em finais da década de 1940, respectivamente.
1961 fora o ano mais difícil de Salazar
A revisão constitucional de 1951, a aprovação de uma nova Lei Orgânica do Ultramar Português em 1953, a aceitação da ajuda Marshall em 1948 e a adesão à NATO em 1949, além da cedência à administração Truman, no imediato pós-guerra, de autorização para o uso das infra-estruturas militares aéreas e navais localizadas na ilha Terceira, foram acontecimentos que não tendo em mente apenas uma melhoria substancial do enquadramento estratégico em que a política colonial podia ser executada, tinham ainda assim grandes implicações naquele domínio.
Nas vésperas do deflagrar da guerra em Angola e da vaga independentista que assolou a África subsaariana a partir de 1960, numa entrevista a um jornal francês, Salazar ensaiou uma explicação e uma contextualização ambiciosa e relativamente original não só sobre as implicações da política ultramarina portuguesa já tantas vezes enunciada e em plena execução, mas também sobre as consequências da continuação daquela imensa fatia do continente africano sob domínio político das potências europeias ali instaladas. Segundo o chefe do Governo português apenas com a preservação dessa presença seria possível garantir que “o Atlântico pertence[sse], de facto, ao Ocidente até nova ordem!” Este oceano, que constituía “um indispensável, um formidável traço de união entre a Europa e o continente americano”, podia dessa forma ser preservado como um “ideal instrumento de vigilância que se prolonga[va] até aos dois pólos.”
O argumento de Salazar era que a política ultramarina portuguesa, de preservação da soberania de Lisboa, além de assentar numa legitimidade histórico-jurídica, na obra de construção de sociedades assentes no princípio do multirracialismo e da elevação material e cultural das populações nativas da África “portuguesa”, também pretendia contribuir para a preservação do continente africano na esfera de influência europeia ocidental.
No entanto, alertava Salazar, “se neste mar se criassem bases comunistas, se uma única das nações litorais fosse hostil à nossa concepção de civilização, o Atlântico em vez de uma ligação capital transformava-se numa barreira.” Ou seja, a política ultramarina portuguesa, de preservação, ainda que não por tempo ilimitado, da soberania de Lisboa nos territórios ultramarinos, além de assentar naquilo que seria uma indiscutível legitimidade histórico-jurídica, na obra exemplar de construção de sociedades assentes no princípio do multirracialismo e da elevação material e cultural das populações nativas da África “portuguesa”, pretendia contribuir para aquilo que seria a preservação do continente africano na esfera de influência europeia ocidental.
Ora a capacidade europeia de preservar a sua influência sobre a África subsaariana permitiria ao “velho continente” tentar e conseguir salvaguardar a sua segurança, a sua prosperidade, a sua identidade e a sua autonomia numa conjuntura particularmente adversa porque marcada pelo impacto da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. Finalmente, uma África europeia seria a único meio para garantir a segurança do Atlântico e dos três continentes banhados por este oceano, assegurando assim que este e aqueles continuariam a ser “ocidentais”.
MUDANÇAS NA POLÍTICA COLONIAL
Uma vez iniciada em 1961 em Angola a primeira fase do confronto militar contra o domínio colonial português, e alargada essa confrontação em anos subsequentes aos territórios da Guiné e de Moçambique, esta visão estratégica sobre o lugar da África negra e da África portuguesa no contexto estratégico de defesa da Europa e do “ocidente” teve que ser revisto.
Os massacres do norte de Angola em 1961 permitiram a Salazar mobilizar o país para uma guerra que em breve teria três frentes
É verdade que Salazar continuou a sustentar a ideia, tal como muitos dos seus colaboradores políticos e militares, que além de se defender a si próprio, Portugal defendia nas suas províncias ultramarinas os interesses materiais (tanto políticos como económicos) e os princípios morais da Europa e do “Ocidente”. No entanto, e sobretudo no ambiente circunspecto dos gabinetes, o pensamento estratégico português teve, de facto, que ser ajustado à nova realidade e aos novos desafios que, além de militares e africanos, eram também civis e globais.
Os elementos mais importantes trazidos para o campo da decisão e da reflexão política, tal como determinados por esta nova realidade, foram, sem dúvida, e em primeiro lugar, o reconhecimento de que a guerra, ou as guerras, uma vez que em três anos aquela se alargou a três “províncias ultramarinas”, teriam efeitos políticos, económicos e militares difíceis de antecipar e certamente impossíveis de controlar.
A partir de 1962 o regime procedeu à transferência de competências e de recursos para os governos das províncias ultramarinas, e tentou uma estratégia de negociação político-diplomática com líderes nacionalistas da África portuguesa, com governos africanos tidos como moderados, com governos “ocidentais” e com o secretário-geral das Nações Unidas.
Em segundo lugar, e muito embora a guerra tenha sido entendida pela liderança política e militar do Estado Novo como um instrumento eventualmente capaz de forçar os movimentos de libertação a não aceitarem outra solução política para a questão colonial que não fosse aquela determinada pelas autoridades portuguesas, a verdade é que desde 1962, muito por efeito da invasão e ocupação de Goa por tropas da União Indiana, mas também como resultado do impacto político interno e internacional da guerra, o Governo português foi ensaiando mudanças na sua política colonial.
Assim, procedeu à transferência de competências e de recursos para os governos das províncias ultramarinas, e procurou pôr em prática uma estratégia de negociação político-diplomática com líderes nacionalistas da África portuguesa, com governos africanos tidos como moderados, com governos “ocidentais” e com o secretário-geral das Nações Unidas.
Ainda que, no plano político-diplomático, boa parte destas iniciativas não tenham produzido resultados, ou que a estratégia descentralizadora de gestão político-administrativa das colónias tenha ficado aquém daquele que era o desejo dos espíritos mais reformistas do salazarismo metropolitano e ultramarino, a verdade é que as intenções e os factos por elas gerados tiveram um significado que foi não apenas político mas, também, estratégico.
A guerra era parte de uma estratégia com o intuito de comprar tempo para construir o estado, a nação e o sistema social que Governo e regime garantiam existir antes e após o início do confronto militar em três frentes.
Ou seja, por um lado o Governo e o regime político que decidiram aceitar a guerra como parte da solução para resolver a questão colonial, nomeadamente entre 1961 e 1968, nunca a pensaram nem encararam como uma matança sem sentido e interminável. Pelo contrário, viram-na sempre como um instrumento, ou meio, usado para atingir objectivos políticos. Ou seja, a guerra era parte de uma estratégia com o intuito de comprar tempo para construir o estado, a nação e o sistema social que Governo e regime garantiam existir antes e após o início do confronto militar em três frentes.
No entanto, a substituição de Oliveira Salazar por Marcello Caetano, nas suas implicações políticas e estratégicas visíveis a partir de 1969, e a metamorfose sofrida pelas cúpulas da instituição militar, a que se juntaram mudanças em circunstâncias exteriores à questão colonial tal como interpretada pelo estado português, acabaram por inviabilizar a continuidade da estratégia prevalecente até aos primeiros meses do consulado marcelista.
A PEQUENA ESTRATÉGIA OU A CONQUISTA DOS CORAÇÕES E DAS MENTES
No plano político, e em particular no plano estritamente militar, a estratégia é um processo racional. Seja a grande estratégia, seja a apenas a estratégia enquanto sinónimo de guerra. Ambas, porém, sucumbem, ou podem sucumbir ao imponderável ou ao facto de colidirem com outras formas de pensar estrategicamente e de executar esse pensamento estratégico. A grande estratégia de Salazar sucumbiu às mãos de uma grande estratégia europeia ocidental e norte-americana que não partilhava as suas preocupações e o seu desejo de preservar a África subsaariana sob a soberania europeia, tal como subsistiu até finais da década de 1950, e o oceano Atlântico como um “mar” exclusivamente “ocidental”.
Rebeldes desfilam num acampamento em Angola: o ditador acreditou que podia conquistar o coração e as mentes dos povos africanos
A pequena estratégia, no entanto, foi salvaguardada e executada até 1969 e dependeu em grande medida do facto de ter sido posta em prática um modo de fazer a guerra que por um lado correspondia à quantidade e à qualidade dos recursos humanos e materiais que estado e sociedade portuguesa – na metrópole e no ultramar – dispunham, e que por outro procurou não a derrota militar dos inimigos mas a conquista, ou o controle, dos “corações” e das “mentes” das populações directamente envolvidas nas acções militares de insurgência e de contra-insurgência.
A pequena estratégia portuguesa beneficiou ainda até 1969 do facto de ter sido capaz de estabelecer a diferença, nos três teatros de operações militares, entre aqueles que possuidores de corações “duros” combatiam pela afirmação da sua identidade e, em última análise, por uma independência política, e aqueles que possuidores de mentes “abertas” transigiriam a partir do momento em que constatassem uma melhoria substancial e continuada da governação.
A guerra colonial foi, portanto, e por um lado, resultado da elaboração e aplicação de uma grande estratégia delineada após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, e por outro lado, a guerra colonial forçou a definição de uma pequena estratégia ajustada aos efeitos não só daquele conflito mas também de uma alteração dos condicionalismos nacionais e internacionais.
05/10/2014
Fernando Martins