O líder dos UHF abriu os seus arquivos para a BLITZ e preparou um CD de preciosidades inéditas. Uma História Secreta dos UHF é CD grátis com a presente edição da BLITZ. Leia aqui a entrevista de António Manuel Ribeiro.
António Manuel Ribeiro, o incansável líder dos UHF, verdadeira instituição rock nacional, procurou nos arquivos pessoais um lado menos exposto da sua banda construindo para a BLITZ uma verdadeira peça de coleção que revela não apenas a longevidade, mas também a variedade de que se faz a história dos homens de “Cavalos de Corrida”. De uma longa conversa emergem histórias do passado contadas com os pés bem assentes no presente pela boca de um homem que teima em depositar no futuro todas as suas expectativas.
Como correu este mergulho nos arquivos em busca da história secreta dos UHF?
Há uns anos, quando os formatos [físicos] começaram a perder a viabilidade comercial, tive a necessidade de passar tudo aquilo que tinha em fitas para digital. E quando comecei a receber os digitais comecei a fazer um arquivo, portanto tenho uma noção daquilo que tenho e posso até dizer que há mais coisas guardadas. Para a BLITZ fiz um vintage: há aqui material de topo, como uma versão inédita de um tema do Zeca [Afonso], por exemplo, a versão do “Sarajevo” para voz e com piano pelo maestro [António] Vitorino de Almeida… Depois há as maquetes, o nosso princípio. As maquetes aparecem neste disco estão muito próximas dos originais e isso revela uma coisa: a atitude já muito séria que já tínhamos perante a música, logo em 1980.
Era a mesma pessoa nesse tempo?
Era muito verdinho… Mas havia já uma coisa em mim, a vontade de fazer, a convicção. Quando oiço certas coisas do passado dá-me uma vontade de rir: os tiques, aqueles “uis e ais”. Muita ingenuidade à flor da pele.
A esta distância consegue dizer de onde vinham os tiques? De Jim Morrison?
Não, não… É meu, é tudo meu. Não sei de onde é que aquilo vinha, a música puxava-me para ali.
Paralelamente a este mergulho nos arquivos, houve o processo de reencontro do passado que resultou no livro que agora editou. Revelou as histórias todas ou ainda ficaram coisas para contar?
Ainda há muitas histórias para contar. Este livro tem muito mais do que apenas as 35 histórias que escrevi para a Antena 1, isso é só um terço do livro. O resto são histórias novas, algumas com grande densidade. E à medida que ia escrevendo coisas ia recordando outras. Mas a dada altura tive que fazer um ponto final e fechar o livro ou nunca mais o acabava.
Os UHF mantêm-se de pés firmes no presente, com repertório novo. Por teimosia?
Não. A teimosia é importante para se ter convicção e não se desistir à primeira. E nisso sou muito pouco português, não desisto com facilidade. Mas há mais do que isso, há uma altura em que eu percebo que há uma escrita para além de mim, ou seja, posso andar a leste do paraíso, ou a ler um livro sobre espiritualidade, com vontade de viver um Interstellar que ainda não fui ver e depois as canções tocam-me à porta, a qualquer hora… Hoje levantei-me às 7h30 da manha para escrever e depois voltei para a cama. Houve alturas da minha vida em que não conseguia separar a vida profissional da pessoal, que era muito desorganizada e tramava-me muitas vezes no lado profissional. Nessas épocas eu tinha grande composição, era grande e farta a escrita; agora não preciso de me envolver em situações difíceis de sofrimento, aquele auto-sofrimento que os escritores gostam muito de viver e pelo qual eu passei também. Agora não me chateio com isso, elas vêm ter comigo. Vêm frases, vêm momentos. Não tenho regras para escrever. Há um lado social e político que me absorve bastante normalmente tomo posições e escrevo. O “Vernáculo” [“manifesto” de 10 minutos incluído em A Minha Geração, de 2013] é apenas um exemplo, há outras coisas. Há um tempo em que te apercebes de outra coisa: que há pessoas à tua volta que querem as tuas canções.
“Vernáculo” ganhou vida própria…
Pois foi. Na Suíça, em dezembro passado, diz-me um jovem arquiteto do norte: “você sabe qual é o hino da Faculdade de Arquitetura do Porto?”. Neguei conhecimento, e ele acrescentou: “o “Vernáculo”, pois então!”. Há dias, telefonaram-me da plataforma sindical que se une sob o lema “Não TAP os olhos”, que o [cineasta] António-Pedro Vasconcelos pôs em marcha. Pediam-me autorização para ilustrar a luta no Facebook usando o “Vernáculo”: concedi. E depois, à saída do supermercado, alguém me disse: “tenho de lhe dar os parabéns por aquela do “Vernáculo”. Mas aqui para nós, já lhe devem ter feito a vida negra”.
Pensa que uma das razões para se ter agarrado ao presente se prende com o facto de a crítica ter negado um lugar na história mais relevante aos UHF?
Temos uma carreira sem parar, sempre a trabalhar em edições, em espetáculos, em digressões constantes, e este livro prova isso. Portanto, se a um certo tempo não deram esse benefício aos UHF isso é um problema dos outros, não é um problema nosso. Poderá perguntar-se se a nossa vida teria sido mais fácil se não tivéssemos abandonado a Valentim de Carvalho… Provavelmente sim, e será que teria sido tão profícua? Ou seja, eu seria o escritor que sou e o compositor que sou se tivesse tido a vida facilitada? Não sei, mas isto não tem nada a ver com masoquismo, tem a ver com a realidade. Em 1982, quando saímos da Valentim de Carvalho, contra a vontade das pessoas fazendo, enfim, uma birra, ficámos sem proteção, tiraram-nos o chapéu-de-chuva chamado Valentim de Carvalho que era o maior chapéu-de-chuva português. É evidente que aquela proteção deu-me uma atitude muito gira de vedeta, mas não me serviu para nada. Passado uns tempos tive de começar a trabalhar sem ser. a vedeta. Depois provei a mim próprio que era capaz de por coisas cá para fora sem nenhuma proteção, as canções começaram a valer por si, não porque tinham grandes campanhas de marketing.
Porque é que nunca regressou à Valentim de Carvalho?
Ainda passámos pela EMI em 2003. Em relação à Valentim, eu tentei, mas na altura e falo disso no meu livro havia um grupo à volta do Francisco Vasconcelos e também do David Ferreira, os mentores da Fundação Atlântica [Miguel Esteves Cardoso, Pedro Ayres Magalhães e Ricardo Camacho], que acabou por levar aquilo para um sitio desastroso. Eram pessoas que tinham umas ideias, mas que de indústria musical e de música não percebiam rigorosamente nada, não estávamos no mesmo barco.
Que se adivinha agora no horizonte dos UHF?
Tocar, tocar. Lá para outubro começamos a pensar em voltar a estúdio, ensaiar, mas sem nenhuma pressão. Para já vamos tocar ao vivo, temos um excelente mapa de trabalho que já está marcado até setembro, temos muitos concertos em todos os meses. É essa a nossa agenda, é aquilo que quero fazer neste momento.
Não gostaria de tocar nos grandes festivais de verão?
Acho que esses produtores de espetáculos nem sequer pensam em UHF ao vivo, já têm uma opinião formada. Não me apetece lutar, nem sequer discutir, porque estaria a dar muito tempo de antena a quem não merece. Há muita gente que tem uma opinião sobre os UHF, mas nunca nos viu ao vivo, ou nunca ouviu uma canção, nunca ouviu um disco…
E António Manuel Ribeiro com uma guitarra acústica por esse país fora? Nunca lhe apeteceu meter-se num comboio e fazer algo assim?
Às vezes faço. Tenho uma vida pessoal muito gira, que é a dos livros: sou muitas vezes convidado para semanas culturais, em bibliotecas ou em pequenos auditórios, coisinhas pequenas para 30 ou 40 pessoas, às vezes pouco mais, ou bastante menos. Já cheguei a tocar para 10 pessoas. Se me pedem levo a minha guitarra, e faço “dois em um”: falamos, proclamamos, abordamos um assunto qualquer pode ser sobre a matéria da semana cultural e depois canto. Tenho, aliás, planos para dois discos: um disco infantil que até já comecei a gravar e outro com versões como o “The One I Love”, dos R.E.M., ou “Dancing Barefoot”, da Patti Smith. São canções que eu toco sozinho…
Vai ver o concerto de Patti Smith, em junho, no festival NOS Primavera Sound?
Não vou porque estarei a trabalhar. Parece que só consigo ver a Patti Smith em Paris. Já fui algumas vezes vê-la a Paris, mas este concerto em Portugal não consigo, estarei a tocar na Suíça.
Os Rolling Stones podem ter feito a última digressão, os The Who estão a dizer adeus…
Pensa alguma vez na finitude da sua carreira de rocker? Não, essa ideia não me assombra, mas às vezes penso nisso e digo sempre para mim que se eu não conseguir ou não souber pisar um palco tenho que saber sair. Neste momento sinto-me muito bem e, aliás, os concertos são fantásticos. O crescimento, o amadurecimento dos nossos espetáculos e a forma como as pessoas se referem a eles tem sido muito gratificante, porque vale a pena. Essas digressões que referiu são o que chamamos opções de marketing: andamos aqui há 15 anos a dizer que os Stones vão acabar, que é a última digressão, e aí estão eles.
Capa e alinhamento de Uma História Secreta dos UHF contextualizado por António Manuel Ribeiro:
1. Modelo Fotográfico
É a maqueta mais antiga, gravada em 1979 no estúdio Musicorde. A letra acabaria por ser ligeiramente alterada o arranjo no álbum seria diferente. Porquê? Porque nós tocámos muito e as canções evoluíram.
2. Cavalos de Corrida
Essa é a maqueta original [de 1980]. Nem sequer o solo [de guitarra] está lá. Lembro-me perfeitamente que partíamos a cabeça ao [guitarrista] Renato Gomes e dizíamos que ele só fazia solos à Chuck Berry, porque queríamos uma coisa nossa e é isso que depois se vai perceber. O tema aceleraria por causa dos espetáculos ao vivo, onde foi ganhando força e popularidade.
3. Nove e Trinta
É a maqueta [também de 1980] de um tema que também entraria no À Flor da Pele e é curioso porque o original do disco não tem refrão cantado – há um refrão instrumental sem palavras -, mas eu na maqueta faço lá uns “la ra ra ra la” para acompanhar a melodia porque nem sequer tocava teclas.
4. Noite Dentro
“Noite Dentro” nesta versão [maqueta de 1980] está já muito próxima do original. Apareceu no single que foi oferecido com a primeira prensagem do À Flor da Pele, que tinha duas canções que não couberam no álbum.
5. Dança de Canibais
Uma preciosidade [de 1983]. Foi gravada ao vivo no Rock Rendez Vous para a Rádio Renascença. Nesta altura, o [baixista] Carlos Peres já não estava na banda. É o Francis, que tinha sido dos Xutos & Pontapés, que toca. Ele esteve um período breve connosco, mas era bancário e a nossa agenda carregada não era compatível com a vida profissional dele.
6. Sarajevo
Este é um momento único na minha vida, em que estou no palco a tocar com o maestro [António] Vitorino de Almeida ao piano. Desafiei o maestro, fizemos uns três ensaios, e um deles foi na Aula Magna, em 2008. Ele trabalhou o que lhe apeteceu da forma como lhe apeteceu.
7. Cavalos de Corrida
Foi gravada no mesmo concerto em que participou o maestro. E é especial porque está também o Renato Gomes a tocar guitarra ao lado do Tó [o filho de António Manuel Ribeiro, António Côrte-Real]. O passado e o presente dos UHF, perfeitamente encaixados, com respeito técnico.
8. Amores de Estudante
É aquela canção das tunas, que pertence muito à noite académica do Porto. Quando fizemos os concertos no CCB e na Casa da Música [em dezembro de 2013], convidei o autor, Aureliano Fonseca, que tem agora 100 anos. No fim do concerto, agarrou-se à minha mão e veio comigo até ao camarim e disse: “como é que você aguenta três horas a cantar?”. Eu disse-lhe: “olhe, bem-haja à água do Luso”.
9. Os Vampiros
Quando ouvi este tema a primeira vez, para aí em 1968 ou 1969, não sabia que era de José Afonso. No dia a seguir deu-me vontade de escrever uma letra. Lembrava-me de umas partes, andei a tarde toda a tentar escrever uma letra parecida, mas eu não sabia escrever letras nenhumas, nunca tinha escrito nenhuma… Mas isto [a vontade de cantá-la] ficou…
10. Um MMS Teu
É um inédito das sessões do A Minha Geração que eu guardei para mim, mas depois achei que valia a pena para fechar este disco. Por ser tão diferente: é acústica, uma canção de romance, uma canção destes tempos.
Uma História Secreta dos UHF está apenas disponível com a edição de março da BLITZ, já nas bancas.
Entrevista: Rui Miguel Abreu
Fotos: Rita Carmo/Espanta Espíritos