Padre Sousa Lara. O maior exorcista português era um menino da Linha e recusou um alto cargo na banca

Aprendeu com o exorcista oficial do Vaticano. Durante dez anos seguiu-o para toda a parte, em Roma. Desde 2008 faz exorcismos todas as sextas-feiras em Lamego e já lhe passaram pelas mãos mais de 200 casos graves, alguns enviados por psiquiatras.

 

 

 

Quando conseguiu encontrar-se com o exorcista oficial de Roma, encheu-se de coragem. “Não me pode ensinar?”, perguntou-lhe. O padre Gabriele Amorth, que é de poucas conversas, olhou-o com estranheza. “Ó rapaz, tu és seminarista. Para te ensinar terias de ser, no mínimo, diácono.” Duarte Sousa Lara, acabado de chegar para estudar Teologia na Universidade de Santa Croce, da Opus Dei, insistiu. “Posso então ir consigo ver um exorcismo?”

 

 

 
Amorth, o mais famoso exorcista do mundo e que atendia 12 casos graves por semana, consentiu. E foi assim que o seminarista se juntou ao grupo de leigos que o acompanhavam e apoiavam nas sessões de expulsão do demónio. Sousa Lara passou a segui-lo para toda a parte.

 

 

Sete anos depois, tornou-se padre e teve de pedir autorização ao bispo da diocese de Lamego – que o tinha mandado para Roma para se formar – para continuar a acompanhar o exorcista. O bispo concordou e, enquanto dava aulas na universidade e preparava a tese de doutoramento, ajudava Amorth nos exorcismos. Passaram dez anos juntos. “Ele simpatizou comigo, senão não me deixava ficar tanto tempo, mas a verdade é que não me dava muita conversa. Eu era um miúdo que estava ali.

 

 

De vez em quando, lá explicava uma coisa ou outra, do género ‘agora vamos ter um caso em que toda a família está mal’, e pouco mais”, recorda.

 

 

 

Em 2008, a diocese pediu-lhe que regressasse a Portugal para trabalhar em três paróquias, mas Sousa Lara queria mesmo era continuar a fazer exorcismos. O bispo aceitou nomeá-lo exorcista oficial da diocese, ainda que com uma condição: teria de assegurar, ao mesmo tempo, o trabalho nas três igrejas que lhe destinara inicialmente.

 

 

 

Nos últimos oito anos, o padre Sousa Lara atendeu, numa casa nas traseiras do Santuário de Lamego, mais de 200 possessões graves – casos em que foram precisas várias sessões de exorcismo. Desses, cerca de 150 já estão resolvidos e 60 continuam a dar trabalho. Todas as semanas recebe mais de 50 pedidos de ajuda, que chegam por carta e email, mas só atende os seis mais graves.

 

 

No entanto, ninguém fica sem resposta: há uma equipa de ajudantes que contacta todas as pessoas, se inteira dos casos, aconselha soluções e acompanha os progressos. A maioria dos problemas, garante o exorcista, ficam resolvidos com uma simples confissão, idas à missa, comunhão e orações diárias.

 

 

Padre Sousa Lara - O maior exorcista português2
Todas as semanas, Duarte Sousa Lara recebe mais de 50 pedidos de ajuda, por carta e email.

 

 

 
Já os casos graves precisam, sobretudo, de paciência. “Há situações que demoram anos a resolver, mesmo com várias sessões e missas diárias.” Entre cada exorcismo, é preciso fazer trabalho de casa: “Confissão uma vez por mês, comunhão e missa diárias, terço e oração de libertação também todos os dias. Isto é o mínimo que se tem de fazer entre cada sessão e, se as pessoas não cumprirem isto, não continuo os exorcismos”, avisa.

 

 

 
Quase todas as pessoas que lhe escrevem, desesperadas e com sintomas estranhos, são católicas não praticantes. E a maioria andou em bruxos, adivinhos e videntes. Outras foram vítimas de bruxarias. Para perceber a origem dos distúrbios, o exorcista começa por conversar com os exorcizados. Há quanto tempo começaram os sintomas? Alguma coisa mudou, nessa altura? As respostas não costumam variar: “As pessoas recuam no tempo e percebem que ou se zangaram com alguém ou mudaram de emprego, e isso suscitou inveja, ou se casaram contra a vontade de um sogro ou de uma sogra e, pelo meio, apareceu um sapo com a boca cozida à porta de casa. Ouço destas histórias às dezenas.”

 

 

 

Os sintomas da possessão Sousa Lara trabalha de perto com um psiquiatra e um psicólogo, com quem discute os casos. E que lhe enviam pacientes que não conseguem tratar. “Pessoas que, mesmo debaixo de medicação fortíssima, continuam a desmaiar ou a ter distúrbios muito graves”, conta. Com o avançar das sessões, os sintomas começam a desaparecer porque o demónio vai enfraquecendo, até decidir ir-se embora.

 

 

 

Os sintomas da influência e da possessão diabólica são, por vezes, difíceis de identificar: distúrbios fisiológicos e psicológicos que a medicina não consegue explicar. Muitas vezes, os possessos começam a adivinhar coisas, falam em línguas estranhas, desmaiam sem ter doenças diagnosticadas, têm alucinações. O demónio, conta Sousa Lara, “age muito sobre os sentidos”. São comuns os casos de pessoas que ouvem estalos e barulhos de noite, vêem vultos, sentem cheiros anormais e têm dores de cabeça persistentes e incapacitantes que não passam com nenhum tipo de medicação. Depois, há os distúrbios ligados à casa: ouvir o som de torneiras abertas sem que haja água a correr, electrodomésticos que se ligam e desligam sozinhos.

 

 

 
Atende os graves, mas ninguém fica sem resposta. A confissão resolve a maioria dos casos.

 

 

 

Nos casos mais graves, os exorcizados entram em transe e não se recordam de nada do que aconteceu ou do que disseram nas sessões. Há quem precise de ser amarrado (Sousa Lara tem uma cama de hospital para as situações mais delicadas) e que, mesmo assim, tenha de ser segurado por várias pessoas. “Ganham uma força inexplicável”, descreve. No exorcismo, é o diabo quem fala pela pessoa. Grita, ameaça, cospe, morde, goza. “Alguns até cantam.”

 

 

 
Há oito anos, quando começou a fazer os exorcismos, as freiras que vivem na parte de cima do edifício queixaram-se. Aquilo não podia continuar: todos os dias, um aparelho eléctrico diferente rebentava: ora era o microondas, ora a máquina de lavar. Até que o quadro eléctrico da casa pura e simplesmente ardeu. “Fui lá, rezei com elas e nunca mais voltou a haver problemas”, conta o exorcista.

 

 

 
Sousa Lara garante, aliás, que nunca teve questões de maior com o diabo. “O demónio é como aqueles cães muito pequeninos que ladram muito, mas depois fogem a correr”, garante. Uma vez, num exorcismo, foi ameaçado de morte: “Vou-te fazer cair da mota”, disse-lhe o demónio. Ignorou-o completamente e continuou a andar à vontade pelos montes em redor de Lamego: “Continuei a cair, como já tinha caído antes.” Nenhum católico praticante deve, aliás, ter medo. “O demónio tem muito receio das pessoas que andam com Deus”, garante o exorcista. Talvez por isso, Sousa Lara nunca passou por nenhum episódio digno de filme de terror fora dos exorcismos. “É muito cansativo. Isto suga, consome muitíssimo, como se fosse um desporto violento.”

 

 

 
De beto da Linha a padre Duarte Sousa Lara está prestes a fazer 40 anos e, até aos 20 e poucos, nunca tinha pensado em ser padre. Muito menos imaginava tornar-se exorcista. Era um menino da Linha de Cascais e o mais velho de cinco irmãos de uma família rica. Cresceu no Estoril, ao pé da praia, e quando acabou o curso de Gestão na Universidade Católica, o pai arranjou-lhe um lugar na administração de um grande banco. Por essa altura, pensava casar, queria ter dez filhos e comprar uma quinta com uma pista de motocrosse.

 

 

 

 

Nas férias entretinha-se com o bodyboard no Guincho, as namoradas e as motas. E enquanto os irmãos iam para acampamentos católicos, ele fazia-se à estrada rumo ao Alentejo, onde uns tios tinham um monte.

 

 

 

Desmontava peças da mota, voltava a montá-las, participava em provas de todo-o–terreno e não perdia uma edição da Baja Portalegre. Aos 19 anos, a irmã perguntou-lhe se queria ser animador num acampamento na zona de Santarém. Eram 60 miúdos, com idades entre os 14 e os 16, 15 monitores pouco mais velhos e católicos “à séria”, um padre e alguns casais.

 

 

Ele também ia à missa todos os domingos, mas os outros tinham uma caminhada “mais forte”: estavam, por exemplo, ligados a movimentos da Igreja. “Percebi que havia pessoas da minha idade para quem a fé era uma coisa muito importante.” Gostou da ideia e até com o padre – que foi de mota para o acampamento – simpatizou. Mas o clique deu-se em Fátima, visita obrigatória no acampamento.

 

 

 

A mensagem mariana mexeu com ele: o céu existe, o inferno também, é preciso rezar, muita gente vai para o inferno porque ninguém faz nada e a coisa não está famosa.

 

 

 

 

A partir desse Verão, começou a rezar o terço e a ir à missa todos os dias e passou por vários movimentos católicos. Meteu na cabeça que havia de ser santo, mas um santo moderno: havia de casar, ter os dez filhos e comprar a quinta com a pista de motocrosse. Sempre que ganhasse uma prova nas motas – o sonho era aparecer na revista favorita, a “Motojornal” –, falaria ao mundo sobre as coisas de Deus. Seria, portanto, um santo de mota que bebia Coca-Cola, comia gelados Santini e ia à praia do Guincho.

 

 

 

Ainda hoje pensa assim: “As pessoas têm uma imagem da santidade um bocado deformada. Pensa-se que ser santo é fazer penitência e rezar muitas horas, mas ser-se santo é amar em tudo o que se faz, a única coisa incompatível com o amor é o pecado. Quem ama não mata, não rouba, não mente. Tudo aquilo que é honesto é matéria–prima para me santificar e eu percebi que Deus precisava e precisa de santos normais no meio do mundo.”

 

 

 

O projecto de vida estava desenhado. Só não contava com o chamamento para o sacerdócio. “Fiquei muito triste quando senti a necessidade desse caminho porque, se eu fosse para padre, não poderia fazer nada do que tinha planeado para a minha vida. Quem é que iria ser santo a ganhar provas de mota? Quem iria ser santo a comer pastéis de Belém e a ir para o Guincho? Eu tinha construído um plano que achava perfeito.”

 

 

 
Nessa altura, estava a meio do curso de Gestão na Católica e começou a perder horas de sono, até porque a pressão intensificava-se. Quando abria a Bíblia ao acaso, calhava-lhe sempre a passagem do jovem rico – a história, repetida em três evangelhos, do rapaz rico que pergunta o que é preciso para ir para o céu. “Cumprir os mandamentos”, responde-lhe Jesus. “Mas isso eu já faço.” Jesus manda-o, então, desfazer-se todos os bens e segui-lo. Aquilo era um sinal: Duarte Sousa Lara era o jovem rico, mas dos tempos modernos.

 

 

 
Duarte Sousa Lara tem fama de austero e acorda todos os dias às seis da manhã. Meia hora depois, já está a rezar. Todos os dias reza quatro terços e celebra missa.

 

 

 

 

Decidiu que, quando acabasse o curso, experimentaria o seminário durante um ano. Com a esperança e a certeza de que não daria certo. Mas, assim, ficava de consciência tranquila. “Ninguém me podia culpar por não ter tentado: ia para o seminário, eles percebiam que eu não tinha jeito para aquilo, mandavam–me para casa e ficava tudo bem.” À medida que o curso ia chegando ao fim, a vontade de ser padre aumentou e, antes de embarcar para São Paulo, no Brasil, para estagiar num grande banco, já sabia que a carreira não passava por aquilo.

 

 

 

Num dia de anos, véspera de terminar a licenciatura, juntou a família. Na festa, antes de apagar as velas, fez o anúncio: “Amanhã acabo o curso e a seguir vou para o seminário.” O pai respondeu logo que não era nada que não se estivesse já a adivinhar, mas não gostou da ideia. Tinha outros projectos para o filho mais velho e arranjara-lhe até um lugar na administração de um grande banco.

 

 

 
Não demorou muito tempo até que Sousa Lara embarcasse num avião com destino a Roma: não queria estudar teologia em Portugal, porque achava que muitos professores não ensinavam o catecismo católico como ele realmente é. Como bom gestor, foi a Itália fazer um “estudo de mercado” sobre as universidades que havia. Enviado pela diocese de Lamego, acabou na Santa Croce, a universidade da Opus Dei. E um semestre depois de acabar o curso, já estava a dar aulas, ao mesmo tempo que acabava o doutoramento.

 

 

 

Cartas de um exorcista Três vezes por ano, nas férias da Páscoa, do Natal e no Verão, voltava a Lamego. Sempre que encontrava um caso de perturbação diabólica, tentava resolver o problema, mas o bispo tinha de autorizar os exorcismos um a um, porque Sousa Lara só tinha permissão para exorcizar em Roma. A 20 de Março de 2008, e pouco tempo depois de regressar definitivamente a Portugal, foi nomeado exorcista oficial da diocese de Lamego. Desde então, tem autonomia para fazer os rituais.

 

 

 

Os pedidos de socorro foram aumentando ao longo dos anos e Lamego passou a receber cada vez mais pessoas desesperadas e vindas de todas as partes do país. Sousa Lara ainda tentou tratar do assunto como mandam as regras: “Com a autorização do meu bispo, escrevia cartas aos bispos das dioceses das pessoas.

 

 

 
Explicava que estavam mal, que precisavam de ajuda e perguntava se seria possível que um padre as acompanhasse, de maneira a não terem de fazer tantos quilómetros até Lamego.” Alguns bispos lidaram mal com o pedido. Houve quem lhe escrevesse de volta a dizer que estava enganado e que as pessoas não precisavam de acompanhamento nenhum. Outros foram-se mesmo queixar ao bispo de Lamego. “Um dia, o meu bispo chamou-me e disse-me: ‘Não escrevas mais directamente aos bispos. Manda as cartas para mim, que eu depois entrego-as.’”

 

 

 

Apesar de a Igreja Católica continuar a defender, no catecismo, que o inferno e o demónio existem e que a oração do exorcismo é eficaz, muitos padres, especialmente os mais jovens, não acreditam. Por isso, há quem olhe para ele como se fosse um lunático – apesar de o Papa Francisco ter chamado a atenção, nos últimos dois anos, para a importância do combate ao demónio. Apesar de tudo, também houve reacções positivas por parte do clero português. Um bispo, depois de receber uma das cartas, decidiu nomear um exorcista oficial para a sua diocese.

 

 

 

A luta contra o demónio Os três exorcistas da Igreja portuguesa não têm mãos para tantos casos. E, em Lamego, o excesso de trabalho obriga a uma agenda disciplinada e planeada ao minuto. “Tento ter uma vida equilibrada. À segunda é o meu dia de retiro, à terça estudo para poder pregar, à quarta é o dia do correio e de ler os novos pedidos de ajuda, à quinta faço direcção espiritual e confissões e às sextas são os exorcismos”, conta Sousa Lara.

 

 

 

Tem fama de austero e acorda todos os dias às seis da manhã. Meia hora depois, já está a rezar. A oração dura até às oito da manhã. Antes do almoço, já está outra vez a rezar o terço – todos os dias reza um rosário (quatro terços). Ao final do dia celebra uma missa e reza as vésperas e, a seguir ao jantar, volta a rezar. Pelo meio, trabalha. A rotina é muito diferente da de alguns padres católicos, que não rezam tanto quanto deveriam. “O nosso equilíbrio espiritual está muito ligado à oração, que é fundamental para a união com Deus. É como num namoro: se dois namorados não se encontram e não falam, a relação não pode ter grande futuro”, explica.

 

 

 
Também ao contrário de muitos padres, Sousa Lara faz questão de andar sempre de batina preta – só a despe para dormir e andar de mota. “As pessoas não sabem, mas é obrigatório os padres andarem sempre identificados. O sacerdócio é um ministério público e temos de estar prontos e disponíveis para receber qualquer pessoa que precise de um padre, a qualquer hora e em qualquer lugar.” Culpa da batina, já confessou pessoas em todo o tipo de sítios. Até no aeroporto, enquanto esperava pelas malas. Até podia andar só com o cabeção, como a esmagadora maioria dos colegas, mas gosta de citar um amigo que uma vez lhe disse, em Roma: “Gosto que se veja à distância que sou padre.”

 

 

 

Com o sacerdócio e os exorcismos, a quinta, a pista de motocrosse, o casamento e os dez filhos ficaram para trás. Já depois de ser padre, aconteceu-lhe uma espécie de milagre: ganhou a Baja de Portalegre e apareceu em dois números da “Motojornal”, na capa. Falou de Deus, como tinha sonhado em miúdo.

 

 

 

 

Ricardo Castelo
Rosa Ramos

 

Jornal i

 

16/05/2015

 

 

 

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