Numas eleições normais, qualquer adversário de Donald Trump já estaria a correr alegre e descontraidamente para a meta, deixando para trás um candidato republicano soterrado debaixo da sua avalanche de polémicas. “Mas é justo dizer que estas eleições não são normais”, como Barack Obama fez questão de referir num discurso da Convenção do Partido Democrata, em julho.
Um fator que contribui amplamente para a singularidade destas eleições é que, do outro lado de Donald Trump, está Hillary Clinton — uma mulher que, depois de mais de 30 anos na linha da frente da política norte-americana, conseguiu um currículo invejável e extenso. Só que, para lá das linhas onde aparecem cargos como “Senadora por Nova Iorque, 2001-2009” ou “Secretária de Estado, 2009-2013”, muitos veem inúmeras notas de rodapé que apontam para várias polémicas, das quais Hillary Clinton surge como uma candidata demasiado calculista, ambígua e desrespeitadora das regras.
A nota de rodapé mais recente no currículo de rodapé é da cortesia do site Wikileaks, do ativista australiano Julian Assange — que, acredita que o Departamento de Estado norte-americano poderá ter sido ajudado pela Rússia —, que tem divulgado a conta-gotas aquilo que diz ser um total de 50 mil emails que estavam na conta de e-mail de John Podesta, o chefe máximo da campanha da candidata democrata. Alguns mails contêm informações comprometedoras, outras dúbias e também há algumas que são inocentes e rotineiras. Os e-mails começam em 2000 e, para já, vão até março de 2016. Em baixo, conheça o que está em causa nalgumas das mensagens mais controversas.
Hillary Clinton já conhecia perguntas antes de debate
Num e-mail enviado a 12 março deste ano por Dona Brazile, à altura vice-presidente do Comité Nacional Democrata (meses depois, em julho, passou a ser presidente interina, depois de outro escândalo com e-mails ter levado à demissão da então presidente, acusada de favorecer Hillary Clinton em detrimento de Bernie Sanders nas primárias) para a diretora de comunicação da campanha, Jennifer Palmieri, surgia a seguinte frase no campo “Assunto” do e-mail: “De vez em quando, eu consigo ter as perguntas antes do tempo”.
O tema era o debate em formato de town hall, agendado para o dia seguinte e que era da responsabilidade da CNN. Dentro do e-mail, Dona Brazile, que também era comentadora residente na CNN, avisou a campanha de Hillary Clinton que lhe ia ser colocada uma questão sobre a pena de morte. Dona Brazile chegou a colocar o texto da pergunta no e-mail. No dia seguinte, um dos moderadores lançou uma pergunta a Hillary Clinton sobre esse tema, com um texto ligeiramente diferente mas inegavelmente idêntico ao disponibilizado por Dona Brazile.
Dona Brazile nega a acusação, tal como a CNN.
Equipa de Hillary Clinton quis mudar data de primárias no Illinois para prejudicar candidatos moderados do Partido Republicano
Em novembro de 2014, praticamente meio ano antes de Hillary Clinton anunciar a sua candidatura à Casa Branca, já havia quem preparasse o seu caminho na retaguarda. Robby Mook, também da equipa de Clinton, enviou um e-mail a John Podesta onde ensaiava a hipótese de, através de uma troca de favores, conseguir adiar as primárias no estado do Illinois de março para abril ou maio de 2016.
A ideia de Robby Mook era conseguir o aval do speaker do parlamento estatal do Illinois, o democrata Mike Madigan, para que a data fosse alterada. O processo de persuasão seria feito pelo chefe de staff de Obama na Casa Branca e um lobista do Illinois. Segundo a proposta de Robby Mook, aquele estado teria mais 10% de delegados a nível nacional se as primárias fossem mudadas para abril e mais 20% de as empurrassem até maio.
Segundo Robby Mook, esta seria uma maneira de controlar o tom da campanha republicana, que os democratas queriam que fosse o menos moderada possível. “O objetivo global é mudar as primárias no Illinois de meados de março, onde eles ainda têm apoio para candidatos republicanos moderados depois da maioritariamente sulista Super Tuesday [que ocorreu a 1 de março]”, escreveu. Se as primárias fossem adiadas até abril ou maio, a probabilidade de os candidatos mais moderados (naquela altura, John Kasich e Marco Rubio) perderem força até lá seria maior.
Apesar dos esforços da campanha de Clinton, as primárias no Illinois aconteceram a 15 de março. No final de contas, Hillary Clinton venceu com apenas mais 1,8% do que Bernie Sanders. Do outro lado, venceu Donald Trump — o mais radical entre os republicanos.
Equipa de Clinton preocupada com postura da candidata sobre escândalo do e-mail privado
Está visto que, quando o assunto é a troca de correspondência eletrónica e Hillary Clinton está envolvida, o mais certo é haver uma polémica. O primeiro capítulo desta coleção de histórias diz respeito aos tempos de Hillary Clinton como Secretária de Estado no primeiro mandato de Barack Obama, 2009-2013. Durante esse período, contra as regras e potencialmente colocando em perigo informações classificadas como top secret e confidential, Clinton usou uma conta de e-mail privada que estava alojada num servidor que tinha na garagem da sua casa, em Chappaqua, em Nova Iorque.
Em plena campanha, Hillary Clinton foi ilibada de qualquer acusação pela procuradora-geral, Loretta Lynch, depois de uma recomendação nesse sentido do diretor do FBI, James Comey.
Em agosto de 2015, uma das conselheiras da campanha, Neera Tanden, escrevia a John Podesta um e-mail titulado “os meus pensamentos” onde manifestava preocupações sobre a postura de Hillary Clinton perante este caso. “Eu sei que isto do e-mail não tem sido honesto. Eu sei muito que não. Mas eu temo que a incapacidade dela de dar uma entrevista e comunicar de forma genuína sentimentos de remorso e arrependimento está a tornar-se num problema de personalidade (ainda mais do que de honestidade)”, escreveu Neera Tanden.
“Ela precisa de fazer isto. Não vejo outra maneira de avançarmos até outubro”, concluiu.
Desde então, Hillary Clinton tem adotado uma postura de arrependimento sempre que este tema é referido em debates e nas (pouquíssimas) entrevistas e conferências de imprensa que tem dado.
Alguns jornalistas tinham relação próxima com equipa de Clinton
Pelo meio dos 50 mil e-mails da conta de John Podesta, alguns contam com a assinatura de jornalistas de política de alguns dos jornais mais conhecidos nos EUA. Nalgumas trocas de mensagens, pode ver-se como alguns jornalistas e a equipa de Hillary Clinton mantinham uma relação de proximidade, muitas vezes culminando no condicionamento do trabalho que saía a público.
Num e-mail escrito pelo jornalista Mark Leibovich, da revista do The New York Times, este entrega um conjunto de citações que retirou de uma entrevista que fez com Hillary Clinton, pedindo permissão para publicá-las à assessora de campanha Jennifer Palmieri. “Esta conversa foi bastante interessante… Adoraria ter a opção de usá-la”, escreveu o jornalista. No final, depois de uma troca de e-mails, a assessora limita o uso de algumas expressões e de citações inteiras. “Foi um prazer fazer negócios contigo!”, despediu-se Jennifer Palmieri.
Noutra ocasião, o jornalista Glenn Thrush, do site Politico, envia um e-mail a John Podesta com parágrafos que dizem diretamente respeito ao chefe de campanha de Hillary Clinton. A ideia do jornalista era ter aprovação para publicação daquelas partes em particular. “Por favor não partilhes ou digas a ninguém que eu fiz isto”, escreve o jornalista. “Diz-me se não f*di nada.”
Além do Wikileaks, também o site Intercept — fundado pelo jornalista Glenn Greenwald, conhecido por ter dado a conhecer os ficheiros de Edward Snowden — teve acesso a uma nota interna da campanha de Hillary Clinton escrita em janeiro de 2015, onde se dizia como “colocar uma história” num jornal por intermédio de um “jornalista amigável”. Em particular, é referido o exemplo de Maggie Haberman, do The New York Times. “Nós temos tido uma relação muito boa com Maggie Haberman do Politico [onde a jornalista trabalhou até fevereiro de 2015] durante o último ano”, lia-se naquela nota. “Ela já nos preparou algumas histórias no passado.”
Os discursos em Wall Street pagos a peso de ouro
Já durante as eleições primárias do Partido Democrata, Bernie Sanders insistiu várias vezes para que Hillary Clinton divulgasse as transcrições dos seus discursos pagos a peso de ouro em eventos privados de bancos de Wall Street e outras instituições financeiras — mais ou menos a mesma insistência que Hillary Clinton agora usa para exigir a Donald Trump que torne pública a sua declaração fiscal. De acordo com a CNN, Hillary e Bill Clinton fizeram 729 discursos pagos entre fevereiro de 2001 e maio de 2015. Em média, receberam 210 mil dólares por cada um.
Agora, as transcrições de três desses discursos foram tornadas públicos pela Wikileaks, que os encontrou nos e-mails de John Podesta. Nestas mensagens em particular, a equipa de Hillary Clinton destacou as partes que poderiam levar a interpretações negativas por parte dos seus adversários.
Num discurso de 2014, Hillary Clinton admitiu que está “algo distante” das preocupações da classe média. “Eu não estou a tomar posição em nenhuma medida, mas penso que há um sentimento crescente de ansiedade e até de raiva neste país por causa da ideia de que o jogo está combinado. E eu nunca senti isso quando era mais nova. Nunca”, disse.
Em 2013, referiu num discurso que “na política é preciso ter uma posição em público e outra em privado”. Esta citação tem sido usada contra Hillary Clinton pela campanha de Donald Trump, que estava a explicar à audiência os meandros da negociação política, recorrendo ao exemplo do filme “Lincoln” (2012), de Steven Spielberg, onde é demonstrado como o Presidente Abraham Lincoln conseguiu convencer várias congressistas a permitirem o fim da escravatura, consagrado na 13ª emenda da Constituição. “A política faz-se como as salsichas. É desagradável, sempre foi assim, mas no final de de contas por vezes chegamos onde temos de estar”, disse.
Noutra intervenção em 2014, Hillary Clinton disse que enquanto senadora pelo estado de Nova Iorque trabalhou “com muitas pessoas talentosas e com princípios que ganhavam a vida nas finanças”. De seguida, Hillary Clinton terá dito uma frase ambígua: “E embora eu os representasse [como senadora] e tivesse feito tudo o que pude para me assegurar de que eles continuavam a prosperar, eu apelei para que se fechassem alguns buracos legais e para que fosse tratada a questão do disparo dos salários dos diretores executivos”. Ora, aqui, se por um lado Hillary Clinton falou a favor de alguma regulação da banca, também é certo que não dá a ideia de ser a favor tanta quanto aquela que tem defendido desde o início das primárias e até aos dias de hoje.
Trump com ligações a rede internacional de lavagem de dinheiro
Um dos negócios do candidato republicano à Casa Branca, o multimilionário Donald Trump, tem múltiplas ligações a uma alegada rede internacional de lavagem de dinheiro, segundo uma investigação do diário Financial Times cujos resultados foram esta quarta-feira publicados.
Títulos de propriedade, registos bancários e correspondência mostram que uma família cazaque acusada de branquear centenas de milhões de dólares roubados comprou apartamentos de luxo numa torre de Manhattan parcialmente pertencente ao Sr. Trump e envolveu-se em grandes empreendimentos comerciais com um dos sócios do magnata”, noticiou esta quarta-feira o FT.
A juntar às provas encontradas pelo jornal internacional de língua inglesa está o facto conhecido de Trump, após ter sofrido uma série de falências que fizeram com os que os bancos não lhe quisessem emprestar mais dinheiro, andar em permanente busca de sócios dispostos a financiar os edifícios que ostentam o seu nome.
O FT refere que “ao longo dos anos, o candidato presidencial norte-americano reuniu uma coleção eclética de financiadores e colaboradores, alguns com passados duvidosos, com ligações ao crime organizado ou a esquemas fraudulentos“.
Mas talvez o maior risco para o complexo e por vezes opaco império empresarial do Sr. Trump era que fosse utilizado para um fim que as autoridades norte-americanas temem se tenha generalizado no setor imobiliário do país: a lavagem de dinheiro sujo” escreve o FT.
Num momento em que Trump é candidato à Casa Branca, estas revelações levantam questões sobre que medidas adotam as suas empresas para garantir que os fundos que por elas passam são limpos, sublinha-se no texto.
Em janeiro deste ano, a então diretora do Departamento de Combate a Crimes Financeiros norte-americano, Jennifer Shasky Calvery, alertara que “autoridades estrangeiras corruptas ou criminosos transnacionais poderiam estar a usar o setor imobiliário de topo norte-americano para investir secretamente milhões de dinheiro sujo”.
Um ex-diretor de uma construtora que trabalhou com Trump acusou-o de “esquecimento intencional” quanto a pormenores sobre os negócios dos seus sócios. Mas um porta-voz da Trump Organization veio declarar que efetuava “extensas” verificações de antecedentes dos seus parceiros, contratando inclusive, para tal, investigadores externos.
Um desses sócios, a Bayrock, já antes tinha sido fonte de controvérsia, mas agora os pormenores da sua associação à família de Viktor Khrapunov, um ex-ministro da Energia do Cazaquistão e ex-presidente da câmara da cidade de Almaty, mostram que a Bayrock estava envolvida num alegado esquema de lavagem de dinheiro ao mesmo tempo que colaborava com Trump.
Advogados de Almaty disseram num tribunal norte-americano em março que Khrapunov e a sua família:
Conspiraram para saquear sistematicamente centenas de milhões de dólares de ativos públicos e para branquear os seus ganhos ilícitos através de uma complexa rede de contas bancárias e empresas de fachada, particularmente nos Estados Unidos”.
Viktor Khrapunov, que agora vive na Suíça, diz que está a ser atacado por se opor ao homem para quem trabalhava, o Presidente Nursultan Nazarbayev, o dirigente autoritário do Cazaquistão desde 1989, e os seus defensores afirmam que a fortuna da família Khrapunov vem do êxito nos negócios, não de desvio de fundos.
Segundo os especialistas, as leis que regulam os negócios imobiliários nos Estados Unidos são insuficientes, e as disposições contra o financiamento do terrorismo da Patriot Act, aprovada na sequência dos atentados do 11 de setembro de 2001, obrigaram as entidades de crédito à habitação a realizar investigação do tipo “conheça o seu cliente”.
Mas quem lava dinheiro paga em dinheiro, e transações como as dos apartamentos Trump Soho passaram por essa brecha, que só foi parcialmente colmatada este ano”, refere o FT.
Em janeiro, os Estados Unidos lançaram um programa piloto concebido para identificar os reais proprietários das empresas fachada usadas para comprar imóveis de luxo em Manhattan e Miami e, em julho, as autoridades indicaram que as novas regras corroboravam as suspeitas de que “aquisições em dinheiro de imóveis de luxo para habitação por uma entidade legal são altamente vulneráveis a abusos para lavagem de dinheiro“.
TPT com: CNN//Reuters// Washington Post//Yana Paskova//Tannen Maury//EPA//Financial Times//João de Almeida Dias//Observador// 19 de Outubro de 2016