Com todos os olhos virados para Itália, é também neste domingo que os austríacos escolhem um Presidente. Há boas probabilidades de Hofer ser o primeiro chefe de Estado de extrema-direita na zona euro.
Na próxima segunda-feira, 5 de dezembro, a União Europeia pode acordar com um pântano político em Itália, se os eleitores rejeitarem as alterações constitucionais pedidas por Matteo Renzi e o primeiro-ministro, por essa razão, se demitir. Adivinha-se uma manhã comparável às de 24 de junho, com o Brexit, e de 9 novembro, com a eleição de Trump — e, no meio de uma agitação que o Banco Central Europeu irá tentar acalmar, pode escapar à atenção de muitos a eleição do primeiro chefe de Estado de extrema-direita na zona euro, na Áustria.
As sondagens, essa bola de cristal que tantas vezes se tem revelado avariada nos últimos anos, apontam para um eleitorado tão dividido que é impossível prever quem será eleito como próximo Presidente da Áustria. Os candidatos apoiados pelos partidos históricos do centro já ficaram pelo caminho – a corrida é entre um veterano moderado apoiado pelos Verdes, Alexander Van der Bellen, e o candidato apoiado pela extrema-direita do Partido da Liberdade, Norbert Hofer.
Alexander Van der Bellen e Norbert Hofer voltam a disputar a Presidência austríaca, depois de uma campanha longa, atribulada e controversa
A eleição presidencial na Áustria deste domingo é uma segunda tentativa de encontrar um novo chefe de Estado, depois de as eleições de 22 de maio terem sido anuladas devido a irregularidades “graves” na recolha de votos. Na realidade, é a terceira tentativa, porque a nova votação devia ter ocorrido em outubro mas não foi possível devido a um problema com a cola dos envelopes.
Nessa primeira votação, contudo, o candidato dos Verdes tinha vencido por 0,6% dos votos, uma vantagem muito menor do que as sondagens indicavam. Um photo finish que, recorde-se, aconteceu em maio — antes de o Reino Unido votar pelo Brexit e de os EUA escolherem Donald Trump para a Casa Branca. A maioria das sondagens dá uma vantagem ligeira ao candidato da direita, mas o resultado é muito incerto, como explicou ao Observador Marcelo Jenny, professor da Universidade de Viena e especialista em eleições e estudos de opinião.
“Ninguém sabe quem vai vencer. É impossível antecipar. As empresas de sondagens estão a coibir-se de dizer como se distribui, neste momento, o eleitorado. Foram queimados ao enganarem-se na primeira volta [onde se apuraram Van der Bellen e Hofer] e a votação foi muito renhida na segunda volta [em maio, os tais 0,6%]”, explica o académico, a partir de Viena de Áustria.
O fator decisivo, diz Marcelo Jenny, é a participação (e a abstenção). “Qual será o lado mais capaz de voltar a mobilizar o eleitorado para ir às urnas mais uma vez?”, pergunta.
“Não, não sou um nazi. Não sou uma pessoa perigosa”
Norbert Hofer é o candidato do Partido da Liberdade
A Áustria tem uma economia robusta mas o ritmo de crescimento abrandou nos últimos anos, o que estará a fomentar um sentimento anti-imigração que está a ser aproveitado por Norbert Hofer. Apesar de a taxa de desemprego rondar os 6%, muito abaixo da média europeia, a Áustria é um país com muito a perder, acredita boa parte do eleitorado.
A quantidade de refugiados a entrar no país está a aumentar e já surgem na imprensa várias notícias de comportamentos criminosos por parte de migrantes, em especial crimes sexuais. É, então, aqui que aparece o carismático Norbert Hofer, com um slogan que parecerá familiar a quem acompanhou a campanha do referendo britânico: “Queremos recuperar o controlo do nosso país“.
Quem é Norbert Hofer?
Engenheiro aeronáutico de formação, Hofer tem 45 anos, quatro filhos e um talento nato para lidar com as câmaras e com a exposição pública. Consigo leva, normalmente, uma bengala (consequência de um aparatoso acidente de parapente) e uma pistola Glock. Defende o direito à posse de armas e diz que não estranha que estejam a subir os pedidos de licença para porte, na Áustria, “dadas as incertezas recentes”. O seu ídolo na política é a falecida ex-primeira-ministra Margaret Thatcher.
“Temos de decidir se queremos um Estado Social ou um Estado para os imigrantes“. Esta foi uma das ideias-chave desta campanha, sobretudo nos últimos meses. No último debate entre os dois candidatos, Hofer fez fortes críticas à chanceler alemã Angela Merkel por ter “deixado entrar terroristas na Europa“.
Na campanha para as eleições de maio, Hofer disse que demitiria o governo centrista caso este “não fizesse o trabalho que tem de fazer” nas fronteiras. Mas o candidato recusa a ideia de que tem posições extremistas e, respondendo a uma acusação de ser um nazi, Hofer garantiu: “Não, não sou um nazi, não sou uma pessoa perigosa, de todo”. Mas deixa claro que “o islamismo não tem lugar na Áustria”.
O manifesto do Partido da Liberdade defende que o futuro da Áustria deverá passar, um dia, por um regresso à moeda nacional e a saída do euro e, mesmo, da União Europeia. Mas Norbert Hofer recusa que isso esteja na agenda — o candidato presidencial apenas defenderia um referendo à permanência caso houvesse sinais claros de uma União Europeia cada vez mais centralizadora de poderes ou, em alternativa, se for concedida a entrada à Turquia.
“O professor” que se diz “filho de refugiados”
Alexander Van der Bellen é o candidato apoiado pelos Verdes
Os 45 anos e o charme fácil de Norbert Hofer concorrem com os 72 anos e a afabilidade de Alexander Van der Bellen, um professor de Economia reformado que foi deputado pelos Verdes durante 18 anos e é o candidato apoiado pelo partido ecologista. Chamam-lhe “o professor”, não só pela carreira profissional mas, também, pela sua postura serena e austera.
Muito alto e um pouco desengonçado, tem o apoio do chanceler Christian Kern, mas tem dificuldades em conquistar votos entre os conservadores porque é visto como demasiado permeável às faixas mais esquerdistas da política austríaca. É, também, visto por muitos como empertigado e próximo de uma aristocracia elitista de esquerda que repugna muito eleitorado de classe trabalhadora.
Quem é Alexander Van der Bellen?
Tem ascendência russa — daí a outra alcunha que tem, o “Sascha” — e não tem qualquer problema em dizer que é “filho de refugiados” (o pai nasceu na Rússia, apesar de ser de uma família holandesa, e a mãe nasceu na Estónia). Divorciado, voltou a casar recentemente e tem dois filhos da primeira mulher. É um defensor dos direitos LGBT e do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Depois dos 18 anos no parlamento, passou para o poder local e para a Câmara de Viena. Fumador inveterado, chegou a estar quatro meses sem pegar no cigarro mas desistiu — “com esta idade, de que me vale torturar-me com isto?”.
Van der Bellen foi muito criticado, a certa altura, por ter dito que se for eleito Presidente não dará posse a um eventual governo liderado pelo Partido da Liberdade, da direita. Há eleições legislativas em 2018 e Van der Bellen garantiu que só dará posse a um governo que se comprometa com a continuidade no euro e na União Europeia.
O candidato já recuou, entretanto, dessa declaração, depois de ser acusado de parcialidade e pouco respeito pela democracia. Norbert Hofer não perdeu a oportunidade para chamar a Van der Bellen, nessa altura, “ditador fascista de esquerda“.
Marcelo Jenny, professor da Universidade de Viena, diz que “se houver uma maioria parlamentar de direita, entre os nacionalistas do FPÖ e os sociais-democratas do ÖVP, Van der Bellen não terá alternativa e terá de aceitar”. “No máximo, poderá fazer como o Presidente Klestil, em 2000, e tentar extrair uma vitória simbólica como obrigá-los a fazer uma declaração pública de apoio à União Europeia”.
São candidatos, em muita coisa, opostos, os que se apresentam a esta eleição potencialmente histórica para a Áustria e para a Europa
O que é que um Presidente pode fazer?
A Áustria não tem um sistema presidencialista, como França, por exemplo. Os poderes do Presidente podem ser, com as devidas especificidades, comparados com o sistema português. Na Áustria, o verdadeiro poder está com o chanceler e com o parlamento (o chamado Conselho Nacional).
Mas o candidato da extrema-direita afirmou, a dada altura, que as pessoas “ficariam surpreendidas com aquilo que o Presidente tem poder para fazer“. Foi uma das declarações mais polémicas da campanha e Hofer tem procurado desvalorizar a tirada.
O Presidente, eleito para mandatos de seis anos, não é apenas um símbolo com funções representativas e cerimoniais, apesar de nos últimos anos ter sido pouco mais do que isso, na prática. O Partido da Liberdade quer um papel mais interventivo para o Presidente e Norbert Hofer sugeriu que deve ser o Presidente a representar o país nas cimeiras europeias, em vez de ser o chanceler (ou, pelo menos, ao lado do chanceler).
Além disso, tal como sucede em Portugal, o Presidente pode ser importante em tempos de instabilidade política porque é ele que convida o chanceler a formar governo e porque tem o poder de dissolução da poderosa câmara baixa do parlamento. Cabe ao Presidente, também, nomear figuras importantes como juízes e líderes militares, e tem poderes para vetar leis, afirmando-se como um curador da Constituição.
Um abalo para o projeto europeu e para a moeda única?
Mesmo que Hofer vença as presidenciais e surja, também, um governo liderado pelo seu partido nas legislativas de 2018, não é expectável que haja uma pressão imediata para a saída do euro. Contudo, uma viragem para a extrema-direita na Áustria “poderá aumentar as tensões entre os países do euro, o que pode levar a alterações importantes da política europeia”, escreve o economista Ralph Solveen, do Commerzbank, em nota de antecipação destas eleições.
“Uma coisa é certa”, escreve Ralph Solveen. “Uma eleição de Norbert Hofer seria mais uma prova de que a coesão na moeda única está mais em risco por via dos países do centro da Europa e não da periferia“.
Porquê? “Um país da periferia que saia do euro iria sofrer uma depreciação dramática da sua moeda, o que levaria a uma crise na balança de pagamentos e a uma bancarrota do Estado. Já se for um país do centro a sair do euro, o mais provável é que a sua moeda se valorizasse, o que levaria a um abrandamento da economia mas, de resto, consequências muito menos graves do que para um país da periferia“.
TPT com: Reuters//AFP//AEP//Observador// 2 de Dezembro de 2016