O dia 15 de novembro já foi feriado, há 90 anos. A razão foi o desaparecimento de Sacadura Cabral algures no Mar do Norte. Depois de fazer mais de oito mil quilómetros de Lisboa ao Rio de Janeiro, o aviador pioneiro não conseguiu completar o voo entre a cidade holandesa de Amesterdão e a capital portuguesa. Ainda hoje, não se sabe o que aconteceu ao companheiro de Gago Coutinho e tio-avô de Paulo Portas, a quem o Expresso pediu um sms.
A primeira notícia diz encontrar-se são e salvo, ao lado dos outros pilotos que foram à Holanda buscar três hidroaviões. “O aparelho pilotado pelo comandante Sacadura Cabral, segundo nos comunicam do Centro de Aviação Marítima, já está em Cherburgo”, lê-se no vespertino “A Capital” de 17 de novembro de 1924. Durante um mês, as novas serão menos precisas. Afinal, ninguém sabe, nem saberá, do aviador que dois anos antes fizera, com Gago Coutinho, a primeira travessia aérea do Atlântico, usando um revolucionário instrumento de navegação aérea.
Ou a informação do Centro de Aviação Marítima não está correta ou “A Capital” transformou a hipótese numa realidade. A Havas, a primeira agência de notícias do mundo, criada em 1835 e “avó” da France-Press, emitiu nesse dia 17 um telegrama dando apenas conta da amaragem forçada em Cherburgo, por “panne no motor” (como se traduzia na altura), do hidroavião pilotado pelo tenente Pedro Ferreira Rosado. Os jornais da manhã dessa segunda-feira acrescentavam à nota uma paragem normal da terceira aeronave, a do tenente Santos Mota, em Brest, na Bretanha, a paragem prevista antes da chegada a Lisboa.
O comandante de 43 anos, piloto com feitos sem igual, deslocara-se à cidade holandesa com cinco colegas da Marinha a fim de levantarem três dos cinco hidroaviões da Fokker – uma empresa pioneira fundada em 1919 e fechada ao fim de 77 anos – comprados por Portugal, através de subscrição pública, para proporcionar uma volta ao mundo aos dois heróis da travessia do Atlântico em 1922. Como todos os companheiros, Artur Sacadura Freire Cabral e o cabo artilheiro mecânico José Pinto Correia saíram de Amesterdão no sábado, dia 15, mas não chegaram à cidade da Normandia nem à da Bretanha, nem jamais ali pousarão.
A ligação entre Amesterdão e Lisboa não apresenta qualquer grau de dificuldade. Carlos Viegas Gago Coutinho, que conhecia muito bem o capitão-de-fragata Sacadura Cabral, dirá ao “Diário de Lisboa”, quatro dias depois do desaparecimento, que o voo era insignificante, “tanto assim que o único que chegou a Brest foi o Mota, exatamente o que tinha menos prática. O Rosado, aviador já experimentado, ficou em Cherburgo. E o Sacadura…” O contra-almirante não termina a frase, o jornalista pergunta-lhe o que pensa, vê-lhe “uma sombra no olhar”, o aviador acaba por dizer que “ainda há quem pense que esteja vivo”.
Nesta notícia escrita pela hora de almoço de quarta-feira 19 e que ocupa toda a primeira página do vespertino, diz-se ser impossível afirmar que o comandante e o mecânico morreram. “Cem postos de telegrafia sem fios não recolhem uma notícia, Gago Coutinho está abatido. O sr. ministro da Marinha diz ‘desgraça!'”. No outro vespertino, publica-se uma informação “fresca” vinda de Paris: “Dizem-nos particularmente de Ostende ter aparecido o cadáver do vosso glorioso aviador Sacadura Cabral”. Não se confirma, a verdade é que foram encontrados destroços do hidroavião nº 496, por uma chalupa, e o estado em que apareceram “levam a pensar que se tenha produzido uma explosão”, mas nada de corpos.
As notícias são contraditórias de dia para dia. Tanto se diz que apareceu o corpo do aviador como se desmente a informação. É possível que o comandante esteja vivo, que tenha sido recolhido por um barco que não possuísse Telegrafia Sem Fios (T.S.F.) para comunicar, como também referem os jornais e os amigos de Sacadura desejam que tenha acontecido. “Eu continuo a pedir a Deus que ele continue ainda com vida e esteja a bordo de algum barco veleiro e que nós possamos vê-lo ainda”, diz o aeronauta e inventor brasileiro Santos Dumont numa carta para Gago Coutinho, lamentando: “Porque não seguiu ele os meus conselhos de descansar depois de tão grande feito que foi a viagem Portugal-Brasil?”
A travessia até ao Brasil foi dura: mais de oito mil quilómetros percorridos, quase 80 dias de viagem, embora a voar tenha sido “pouco mais” de 60 horas. Nesta aventura, Sacadura aos comandos e Coutinho na navegação, com o instrumento que inventou, o Corrector, sofreram vários tormentos, entre eles uma espera por socorro no meio do Oceano, dentro do hidroavião a meter água e rodeado por dois tubarões… Parece que nada conseguia domar o espírito do pioneiro português, nem o facto de lhe terem detetado problemas oftalmológicos e aconselhado a deixar de pilotar aviões. O seu sonho era dar a volta ao mundo nos hidroaviões da Fokker.
Artur Sacadura Freire Cabral, nascido em Celorico da Beira, a 23 de maio de 1881, fez a escola politécnica e aos 16 anos tornou-se aspirante de Marinha. Três anos depois foi promovido a guarda-marinha, iniciando uma série de missões hidrográficas e geodésicas em África até passar a ser adjunto do comissário da missão portuguesa de limites de Angola e a ser nomeado subdiretor de agrimensura da, à época, colónia portuguesa. “É um africanista”, como diz o seu sobrinho-neto Paulo Portas. Só aos 35 anos se efetivará na aviação, ficando a depender do Ministério da Guerra, após arrancar um “Trés bon pilote” (Muito bom piloto) no curso de aeronáutica militar da Escola Militar de Chartres, em França.
Tem um espírito aventureiro, audaz, também solidário. Em 1902, o rei dom Carlos louva-o por escrito ao tomar conhecimento de que o marinheiro, quando navegava por Moçambique, se atirou ao mar para salvar um grumete que se afogava, desprezando o risco que corria. O seu companheiro de viagem, o cabo Correia, era igualmente um homem voluntarioso, valente, fora ele quem pedira para ir nesta missão; o piloto Santos Mota deve-lhe a vida, se não fosse Pinto Correia, que o arrastou a nado, teria morrido afogado daquela vez, em Aveiro, quando o hidroavião chocou com a água não dando qualquer hipótese ao piloto. O Ministério da Marinha irá promovê-lo a segundo sargento “como se tivesse sido morto em combate”.
“No seu caso, toda a vaidade era legítima e todo o orgulho era desculpável”, escreve Norberto Lopes, que foi ao Brasil cobrir para o “Diário de Lisboa” a chegada da equipa de heróis a 26 de outubro de 1922. O jornalista, na altura com 22 anos e a três décadas de se tornar o diretor do vespertino, diz que, perante este “homem mais baixo do que alto, de olhos difíceis de definir entre o azul e o verde”, se “justifica plenamente aquele dito de Pepino-o-Breve: os homens não se medem aos palmos”. E diz mais: “a sua fisionomia é a do homem que nasceu para mandar, que está habituado a mandar, que sabe mandar, serenamente, friamente, sem uma precipitação, sem um arrebatamento, sem um entusiasmo”.
“Alguém, que muito de perto privou com ele, dizia-me que o seu segredo, uma das razões porque estava destinado a andar sempre de automóvel, enquanto os outros andam a pé, é a maneira indiferente, fria e pouco expansiva como trata os homens e a excessiva delicadeza com que distingue as mulheres”, conta ainda Norberto Lopes sobre este pioneiro da aviação que é “um típico herói do amanhecer do seculo XX”, como refere o atual vice-primeiro-ministro. Sacadura é um homem charmoso, diz-se que só mostra o sorriso a mulheres, não será assim tão radical mas é de lembrar que uma das promessas que deixou por cumprir foi batizar um dos aviões que pilotasse com o nome de uma atriz com quem se cruzou em Inglaterra, Manora Thew, que lhe disse que o seu nome próprio significava boa sorte.
Nesta ida a Amesterdão, o ímpeto de Sacadura mantém-se, apesar da fase difícil que atravessa. A perícia do primeiro diretor do curso de aviadores em Portugal não está em causa. Os seus olhos, porém, é que já não veem o mesmo, sofrem de oftalmia. E o seu vício de fumar pode ter contribuído para o desastre, como algumas vozes fizeram circular. São muitas as dúvidas sobre o sucedido. “Qualquer viagem aérea é um ponto de interrogação”, dizia Sacadura (leia uma entrevista dada pelo comandante em 1922, no nº 2 da coleção do Expresso “Grandes Entrevistas da História”). Pedro Rosado contaria mais tarde que “estava um nevoeiro denso que se pegava com o mar”. E, defensor da tese do acidente, pormenorizou: “Voei sempre baixo, por vezes a dez metros da água, que estava tranquila, sem carneirada, um mar que se confundia com o nevoeiro”.
O sucedido nessa manhã de sábado de intenso nevoeiro entrará para o rol dos mistérios, levando o nome deste homem à galeria dos heróis desaparecidos tragicamente, sem explicação. A Fokker disse que fora um choque violento do hidroavião com a água, mas, tendo em conta a pane da máquina de Pedro Rosado, havia quem defendesse que o avião saíra avariado da fábrica. Quem contribuiu para alarmar ainda mais os espíritos foi António Ferro, o futuro secretário da Propaganda do Estado Novo. Na altura com 29 anos e jornalista do “Diário de Notícias”, foi enviado a Ostende e de lá escreveu que um engenheiro da empresa holandesa tinha guardado três parafusos dos destroços, que pareciam ter sido cortados à tesoura, dando assim lastro à tese da explosão.
Ainda a 27 de novembro, na “Capital”, dizia-se que se continuava a ignorar o que sucedera ao aviador, mas lamentava-se a “perda irreparável”. Nessa mesma notícia, revelavam-se planos pessoais para o futuro: o casamento com uma jovem recém-viúva de um escritor que também era oficial da marinha. Mas a 2 de dezembro, as esperanças perdiam-se e a notícia é que o Governo aguardava que se completassem 30 dias sobre o acidente para declarar a morte da tripulação do Fokker.
“O desaparecimento de Sacadura Cabral e do seu bravo companheiro nas brumas do Passo de Calais, sem uma testemunha, quasi sem um vestígio, tem o sabor heroico de uma lenda de glória”, escreve-se em “A Capital” de 15 dezembro, o dia decretado de luto nacional e feriado oficial e em que o Governo autorizou a “abertura dos créditos necessários para esse fim, bem como a fornecer o bronze necessário ao monumento a erigir, por subscrição pública, em Lisboa”.
* O texto da mensagem de Paulo Portas transcrito acima está em “linguagem sms”. Fica aqui a “tradução”:
“O meu tio-avô era um típico herói do amanhecer do século XX: altivo na confiança que tinha nele próprio, arrojado quanto aos feitos por fazer e arejado pelo mundo que conhecia. A ideia familiar que tenho dele e que não só não tinha medo como não tinha medo de ter medo, o que é uma qualidade pouco frequente. Era também de um patriotismo irrepreensível mas vivido a meias com a consciência da nossa exiguidade continental. Parece-me que morreu a fazer aquilo que adorava: voar e de preferência voar até mais além.” Paulo Portas
FOKKER T.3 – Foi num hidroavião semelhante que Sacadura Cabral e Correia Pinto se despenharam no Mar do Norte.
Anabela Natário
14/02/2014