Anabela Chipeio Muekalia nasceu em 1960 na província de Huambo, em Angola. Um ano depois, foram dados os primeiros tiros da guerra contra Portugal pela libertação. A violência podia ter terminado em 1975, com a proclamação da independência de Angola, e Anabela podia ter tido uma adolescência normal, junto dos pais e dos nove irmãos.
Mas a guerra civil entre o MPLA e a UNITA roubou-lhe para sempre a casa e a mãe, separou-a da família, afastou-a do sonho de estudar, levou-a para a guerra de guerrilha e quase lhe roubou a vida. Milhões de angolanos sofreram os mesmos horrores. Quando o Impossível se Torna Possível (Sextante Editora) é o relato autobiográfico de uma angolana que sobreviveu e que hoje sonha com um país sem corrupção.
“Ficaram más memórias mas também boas memórias”. O otimismo é uma constante no discurso de Anabela Chipeio Muekalia, notório não só em Quando o Impossível se Torna Possível, mas também na conversa que teve com o Observador em Lisboa, onde esteve este mês para promover aquele que é o seu livro de estreia.
“A força que tenho para enfrentar os problemas também é parte daquilo que eu passei nos períodos mais difíceis da minha vida”, disse. Hoje, não lhe faltam motivos para sorrir. Vive na capital norte-americana, Washington, com o marido, Jardo Muekalia, que ali foi representante da UNITA. Têm juntos uma empresa de consultoria e dão ambos aulas na University of Potomac.
Se há 40 anos lhe tivessem dito que um dia a sua vida seria assim, Anabela ter-se-ia rido. Em 1975 estava demasiado ocupada a fugir com a família do clima de violência, de vila em vila, de província em província. Mergulhar nestas memórias foi um desafio.
“Nos momentos difíceis da minha vida, quando me sentia muito só, escrevia. Sobretudo quando soube que a minha mãe tinha falecido. Sempre pensei que poderia sair dali um livro para ser publicado, mas não tinha uma data precisa, porque a vida foi muito dura e exigente para comigo”, contou.
Cada incursão ao passado era “tão dolorosa que preferia pôr de lado”. O marido – que em 2010 lançou o livro Angola – A Segunda Revolução – e os filhos deram o empurrão que faltava para que ela terminasse uma obra “que pode servir muito mais gente, como documento histórico”.
Nos primeiros anos do conflito, Anabela Chipeio Muekalia chegou a viver num campo de refugiados na Namíbia, mas em maio de 1978 decidiu regressar a Angola para se juntar à guerrilha da UNITA. Achava que assim se conseguiria deslocar pelo país e encontrar os pais, mas as dificuldades foram mais do que aquelas que tinha previsto.
Na base de Chisdombo, por exemplo, apanhou malária e quase morreu. Foi salva por Ana Savimbi, mulher do falecido líder da UNITA, Jonas Savimbi, que a levou para outra região com hospital. A autora ainda é filiada na UNITA, o maior partido de oposição ao MPLA (o vencedor da guerra civil), do presidente angolano José Eduardo dos Santos.
Na guerra, Anabela aprendeu a sentir “a causa”, isto é, o sentimento de que a luta “era justa” e que o futuro do país estava acima de tudo. “A causa” marcaria o resto da sua vida, mesmo depois de ter ido morar para os Estados Unidos, em 1986, onde Jardo Muekalia representava a UNITA.
Defensora da igualdade de género, acabou por ter de criar os três filhos muitas vezes sozinha, porque o marido era constantemente chamado para missões. Teve de adiar o sonho dos estudos superiores também por causa disso.
Mas não concorda com todas as opções que o partido tomou no passado. Em 1992, a UNITA contestou o resultado das primeiras eleições livres angolanas e a guerra prolongou-se por mais 10 anos.
“Naquele período devia ter-se encontrado uma forma mais passiva de resolver os problemas de Angola, tendo em conta que o país já tinha passado por muita guerra. E na guerra não se constrói nada, destrói-se tudo”, disse. “Ambas as partes que estiveram no conflito perderam muitos mais homens e destruiu-se muito mais o país do que se ganhou.
Os líderes deveriam ter a responsabilidade de velar pelos que menos têm e mais sofrem“, sublinha. O verbo é dito no tempo presente porque “‘a causa’ vai continuar a existir até que o nosso país se desenvolva“.
Depois de anos a lutar, e desgostosa por ver a desigualdade económica e social que existe no país onde nasceu, Anabela mantém-se positiva e sonha com o dia em que ouvirá dizer que “Angola é um país que dá mais-valias aos cidadãos”. Até deixa algumas ideias no livro.
No centro dos problemas, admite ao Observador, está a corrupção. “Gostaria que o meu país fosse isento desta prática. Se, como líderes, pudermos evitar a corrupção e pôr a fortuna de Angola onde é necessária, evolui o país e a população. Eu sou uma pessoa justa, por isso gostaria que os nossos líderes angolanos também fossem justos. E responsáveis nos lugares que ocupam”, disse. Pode esse desenvolvimento do país acontecer sob a liderança de José Eduardo dos Santos?
“O impossível pode tornar-se possível, não é?”, respondeu, diplomaticamente, a mulher de Jardo Muekalia, o homem que muitos apontam como um dos mais sérios candidatos à sucessão de Isaias Samakuva na liderança da UNITA.
Anabela faz questão de ir pelo menos duas vezes por ano a Angola e de acompanhar a atualidade nacional. “Ainda sou parte de Angola”, disse. Uma das ideias que dá no livro para o futuro é a diversificação da economia. E dá o “ouro negro” como exemplo. “O petróleo hoje está a baixar.
E Angola é um país tão rico, é até uma bênção em relação a outros países africanos, que têm muito menos riqueza natural, que podia diversificar a sua economia. Mas é preciso entender que mesmo para a diversificação da economia é preciso ter quadros capazes para entender os setores e poderem dar passos certos para cumprir os objetivos”, disse ao Observador.
É aqui que entra a outra causa de Anabela: a educação. A cada local por onde passou, a professora universitária fez sempre questão de estudar e de aprender o que pudesse, em honra do pai, cujo sonho era ver todos os filhos formados. Não fossem os estudos e dificilmente teria chegado tão longe.
É por isso que passou aos filhos, com 26, 25 e 24 anos, a paixão pela escola. Os três fazem parte de uma geração que viu a guerra terminar, em 2002. “Eu fui-lhes contando algumas histórias e eles chamam-me ‘a mãe herói‘ [risos]. Têm uma visão diferente da vida e uma forma diferente de encarar os problemas”, contou.
A educação, a par da saúde, eram as armas que Anabela gostaria de passar agora a todo o país. “São vitais para o engrandecimento do país e é preciso apostar nelas”, defendeu. “Pergunto-me o que vai acontecer com esta geração. É uma perdição, porque aquelas crianças serão o futuro do país.
E a falta de educação vai refletir-se nesse futuro”. Educados os filhos, a professora universitária gostava agora de regressar ao país onde nasceu e ajudar “não só os mais crescidos que estão nas faculdades, mas também os miúdos que estão nas ruas em vez de estarem na escola”.
Anabela já partilhou o seu desejo com o marido, que se mostrou recetivo à mudança. Até lá, ainda tem mais um sonho por cumprir. “Pensei que em janeiro poderia continuar a estudar e terminar o meu PhD [doutoramento], mas estou um pouco dividida. Queria aproveitar o tempo de vida que me sobra para poder ajudar mais em projetos sociais. Mas quem sabe? O impossível pode tornar-se possível”.
Sara Otto Coelho / Obs//13/8/2015