Algumas redações começaram recentemente a ‘contratar’ robôs para escrever as suas notícias. Estes não são mais que softwares, construídos com base em algoritmos, capazes de produzir mais de dois mil artigos por segundo. Na batalha pela produtividade, a robótica começa a emergir. O que podem esperar os jornalistas? E para onde caminha o jornalismo?
Quando Spike Jonze realizou o filme “Her” (2013), projetou um mundo onde a robótica não substitui os humanos, antes os complementa. De tal forma que Theodore Twombly, um homem divorciado e solitário, acabaria por apaixonar-se pelo seu sistema operativo, Samantha. Este não é mais do que um sistema avançado de inteligência artificial controlado através da voz, que funciona como assistente pessoal no computador e telemóvel, organizando os seus contactos, emails e, aos poucos, a sua vida. À medida que interage com Theodore, e vai recebendo cada vez mais informação sobre ele, Samantha torna-se mais inteligente.
O que acaba de ler pode parecer (e é, na verdade) saído de um filme de ficção científica. Pode parecer distante, com lugar apenas num futuro longínquo. Mas Spike Jonze coloca a linha do tempo num futuro próximo. E alguns desses elementos já existem, com maior ou menor expressão, no mundo em que vivemos. Talvez não falte muito até que possam ser uma presença constante no nosso dia-a-dia. Já existe o Siri, da Apple, que permite utilizar a voz para escrever mensagens, o Google Now, que responde a perguntas e faz recomendações em função dos hábitos de navegação de um utilizador na internet – e também há o Cortana, da Microsoft, na linha da Siri e do Google Now.
Recentemente, e ainda no universo dos sistemas informáticos inteligentes, as notícias são outras. Algumas redações começam, aos poucos, a introduzir verdadeiros robôs-jornalistas, que nunca descansam, nunca dormem, não param de escrever. E escrevem artigos a uma rapidez alucinante – alguns deles são até capazes de produzir mais de dois mil por segundo –, muitas vezes sem a intervenção humana.
Mas, afinal, como é isso possível? A resposta é mais simples que a execução prática: programando softwares, através de algoritmos, para agirem como jornalistas. “Os robôs-jornalistas são um software capaz de extrair automaticamente informação de tabelas ou de bases de dados e, a partir deles, ‘escrevê-los’ em forma de notícia”, explica o jornalista António Granado, que integrou o projeto de jornalismo computacional REACTION, apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Referindo-se ao à tecnologia PLN (Processamento de Linguagem Natural), utilizada por estas plataformas, Granado explica que esta acrescenta “palavras no meio dos dados que recolhe, palavras essas que lhe foram ‘ensinadas’ previamente” e programadas e, muitas vezes, com capacidade de escolher ângulos noticiosos.
Apesar de parecer retirada de um filme futurista, “esta tecnologia não é nova de forma nenhuma”, explica o professor de Engenharia Informática do Instituto Superior Técnico Mário Gaspar da Silva, investigador principal do REACTION. “Quem vai a uma estação de comboios da CP ouve as ‘notícias’ das chegadas de comboios, proveniência e destino, quanto tempo de atraso, etc. São programas simples que, a partir da informação tabular relativa ao tráfego, sintetizam textos que podem a seguir, inclusive, ser passados a sintetizadores de voz que fazem a sua leitura.”
NA LUTA PELA PRODUTIVIDADE, QUEM GANHA SÃO OS ROBÔS
Há um ano, em março de 2014, um tremor de terra na Califórnia foi noticiado pelo “Los Angeles Times” antes de todos os outros jornais. A notícia – que parecia, à primeira vista, tirada de uma agência noticiosa – foi elaborada sem qualquer intervenção humana. O robô (ou software) recebeu dados de vários sismógrafos, selecionou a informação relevante e escreveu o artigo em inglês.
Imediatamente, os olhos do mundo viraram-se para Los Angeles, em particular para este jornal, que nos últimos anos tem despedido alguns dos seus jornalistas. A associação entre os despedimentos e o robô que deu a notícia do terramoto em primeira mão fez tremer algumas pessoas, levantando novas questões. Irá o homem, nas redações, ser progressivamente substituído por robôs? “Não me parece [que os robôs possam tirar lugar aos jornalistas]”, realça António Granado. “A não ser que os editores achem que as máquinas podem substituir o juízo humano sobre um determinado acontecimento. Ou que achem que é possível alimentar sites noticiosos apenas com informação de última hora, sem qualquer citação de fontes humanas ou reportagem no local dos acontecimentos”, precisa.
Apesar de estas ferramentas poderem ser um fim em si mesmas – assumindo o papel dos jornalistas na seleção e produção de informação –, também são utilizadas como assistentes de pesquisa, ajudando a simplificar dados por vezes complexos. O objetivo não é serem uma alternativa aos jornalistas, diz James Kotecki, diretor do departamento de relações públicas da Automated Insights, que comercializa o Wordsmith.
Softwares como este, o Quill da Narrative Science ou a solução da empresa francesa Yseop – que têm a capacidade de “escrever como um especialista humano a uma rapidez que o homem não alcança” – servem para produzir conteúdo que os humanos não conseguem, libertando-os para “trabalhos mais interessantes”, acrescenta Kotecki. Só em 2013, o Wordsmith originou mais de 300 milhões de histórias personalizadas na área do desporto, consumo, negócios e análise de sites.
A diferença entre o jornalismo tradicional e o computacional não está tanto no seu objetivo, mas essencialmente nas técnicas utilizadas para recolha de informação e identificação da matéria noticiosa, explica Mário Gaspar da Silva. “As técnicas de jornalismo computacional permitem recolher grandes quantidades de informação, que pode depois ser sintetizada de forma a elaborar uma notícia. É a quantidade, complexidade e rapidez com que se trata essa informação” que diferenciam os dois.
PALAVRAS, INFOGRAFIAS E ALGORITMOS
A relação entre jornalismo e computação não é uma novidade total. No início, o jornalismo começou a servir-se de ferramentas informáticas de extração de dados que poderiam, através dos humanos, ser traduzidos em palavras – e em artigos. Falamos no jornalismo assistido por computador. É em 1952, e não agora, que se identifica o primeiro caso deste tipo, com uma análise da CBS das presidenciais norte-americanas. E, em 1999, o prémio Pulitzer de Serviço Público era atribuído ao “Washington Post” pelos seus trabalhos neste ramo sobre a elevada taxa de utilização de armas de fogo pelos polícias de Washington.
Já o jornalismo de dados, enquanto conceito, surgiria dez anos depois, colocando a tónica na construção de infografias que sintetizam a informação – ainda que antes já marcasse presença, de forma mais ou menos tosca, nas redações.
São vários fenómenos que podem ser explicados por outro mais moderno e abrangente, o jornalismo computacional, que envolve esta realidade ainda em gestação da criação de algoritmos capazes de escrever, selecionar informação e escrever notícias. Apesar de ainda ser um bebé no universo do jornalismo (utilizado apenas em alguns meios, como a Associated Press e a Forbes, entre outros), já é algo utilizado em muitas circunstâncias do nosso quotidiano.
“Nós nem nos apercebemos, mas já estamos rodeados desta tecnologia para nos dar informação no dia-a-dia”, realça Mário Gaspar da Silva. “Os sistemas de navegação por satélite fazem isso, no fundo. Primeiro criam uma representação de um trajeto (a sua necessidade de informação), que depois é convertida numa sequência de indicações que lhe vão sendo lidas ao chegar a pontos de referência.”
Mário Gaspar da Silva considera, assim, “natural” que estes “assistentes se tornem cada vez mais parte do nosso dia-a-dia”, encontrando uma aplicação direta no jornalismo. A síntese do boletim meteorológico, as cotações da bolsa ou a tabulação de eventos desportivos ou resultados de colocação de professores podem ser áreas onde estes robôs-jornalistas – cuja expectativa é que sejam, no futuro, cada vez mais sofisticados – podem encontrar aplicação.
Esse futuro, para Gaspar da Silva, pode ser animador, com a geração de noticiários microlocalizados, “reportando sobre eventos como assaltos, fecho e abertura de estabelecimentos, estradas interrompidas, etc., a partir de dados de sensores e bases de informação à população de uma rua”. Isto só será possível com esta tecnologia, porque “seria proibitivamente caro” ter um jornalista dedicado a cada rua.
Com a tónica no complemento e não na substituição, os robôs-jornalistas podem trazer mais vantagens do que inconvenientes para o universo dos media, segundo estas opiniões. Quererá isto dizer que não existe qualquer motivo de apreensão?
Há cuidados a ter e questões éticas que se levantam. A credibilidade e confiança nas instituições jornalísticas podem, por vezes, sair abaladas deste novo quadro, pelo que a introdução destes robôs no jornalismo não deve ser feita sem se levantar algumas questões. “Se um robô repete o que lê noutros locais sem confirmar nada, então a tarefa de autenticação que atribuímos aos jornalistas desaparece”, sublinha Granado. “E se alguém entrar na base de dados onde os robôs vão ler as informações e as modificar? De quem é a culpa de difusão de informação errada?”
Foto: John Macdougall/Afp/Getty Images
Por: Maria João Bourbon
15/03/2015