Os filhos dos direitos adquiridos

Ambicionar que nas próximas décadas o país vai criar riqueza que consiga garantir aos que hoje estão “fora” os mesmos direitos dos que estão “dentro” é uma ilusão. Isso não vai acontecer.

 

 

 

O prenúncio mais evidente da crise que aí viria foi a anémica evolução da economia que experimentámos na primeira década deste século. A pronto ou a crédito, o dinheiro que atirámos para cima da economia durante anos a fio não teve, do outro lado da equação, uma correspondência compatível. Alimentámos a besta com fartura, mas ela não se mexeu. Engordou primeiro e definhou a seguir.

 

 

 

Pôr a economia a crescer é, por isso, um objectivo central. Mas não basta querer para acontecer. Primeiro é preciso ter a noção que nem todos os crescimentos económicos são iguais. Se não forem sustentados e resultado de um aumento da produtividade e competitividade, estaremos mais uma vez a iludir-nos no presente e a criar problemas para o futuro.

 

 

 

E depois é preciso ter a noção que o crescimento económico que realisticamente ambicionamos para o resto da década não vai chegar, nem de perto nem de longe, para resolver os problemas que acumulámos.

 

 

 

Esperar que é com mais uma décimas de PIB que baixamos o desemprego para níveis decentes, resolvemos o problema da segurança social, o sub-financiamento de algumas áreas do Estado e ainda sobra dinheiro para aumentar as prestações sociais para os mais carenciados é ter a ilusão que se tivermos três ovos em vez de dois já fazemos uma omelete que alimenta decentemente um regimento.

 

 

 

Os recursos são escassos e vão continuar a sê-lo. Mais do que esperar que o acréscimo de comida que vai chegar à mesa satisfaça toda a gente, importa saber quem e como a ela se pode sentar.

 

 

 
O país dual que construímos nas últimas décadas não se resume ao mercado de trabalho, onde uma parte mantém contratos sem termo e outra vai sobrevivendo como pode entre contratos a prazo e recibos verdes. Alguma coisa está mal numa economia quando é mais fácil e mais rápido despedir colectivamente de forma cega 50 trabalhadores num processo de reestruturação do que dispensar cinco funcionários que se manifestem incompetentes para as funções.

 

 

 

Pode não ser simpático de ouvir, mas a segurança laboral extrema dos que entraram há 15 ou 20 anos no mercado de trabalho não pode significar a extrema precariedade dos que querem entrar e são, muitas vezes, mais qualificados do que os que estão.

 

 

 

Isto resolve-se precarizando toda a gente? Claro que não. Mas algum equilíbrio há-de ser possível, mais justo do que o desequilíbrio actual.

 

 

 
Isto é apenas fruto da crise? É um logro pensar que os precários são filhos da troika ou da austeridade. As estatísticas desmentem essa visão a preto e branco. Há 20 anos, em 1994, havia 344 mil trabalhadores com contrato a termo. Em 2008, antes da crise financeira, tinham mais do que duplicado para 708 mil.

 

 

 

Nas duas últimas décadas, com mais crise ou menos crise, o peso do trabalho precário foi sempre aumentando.

 

 

 

A dualidade é também cada vez mais acentuada no acesso e direito às pensões. As fórmulas de cálculo generosas do passado – e nalguns casos escandalosas em instituições públicas ou privadas, garantindo reformas obscenamente elevadas a quem nunca descontou em montante e em tempo para a elas ter direito – coexistem hoje com direitos cada vez menores e, sobretudo, incertos.

 

 

 

Não sabemos qual vai ser o regime de reformas dos que entraram esta década no mercado de trabalho, mas uma coisa é certa: ele vai ser muito mais severo do que os regimes que vigoraram nas últimas décadas. Pior. Os que hoje estão a trabalhar descontam para pagar as reformas actuais com a certeza que daqui a 20 ou 30 anos não vão beneficiar sequer de uma sombra dos mesmos direitos.

 

 

 

A solidariedade intergeracional é um bom princípio social e um factor de coesão. Mas já não é de solidariedade que estamos a falar. Em causa está uma transferência de recursos entre gerações que fica na fronteira da legitimidade moral, podendo tornar-se ela própria um factor de atrito social.

 

 
O mundo das empresas também não escapou à sociedade dual que construímos. Grupos que foram feitos no conforto de mercados cativos, protegidos da concorrência e alimentados por rendas certas pagas por consumidores ou contribuintes coexistem com grandes, médias e micro empresas que diariamente têm que fazer pela vida, pelo negócio e pela rentabilidade.

 

 

 

Sem acesso a decisores políticos, sem influência no processo legislativo e sem lugar à mesa da despesa e do investimento público, o essencial do tecido empresarial tem que facturar para pagar impostos que são, muitas vezes, as receitas certas dos instalados.

 

 

E como é difícil rever os contratos das parcerias público-privadas, com modelos financeiros construídos por consultores e blindados juridicamente por gabinetes de advogados, ambos parte integrante do mesmo ecossistema. O mesmo se passa com rendas da energia e concessionárias várias de serviços públicos, para falar apenas dos casos mais notórios.

 

 

Em todos estes casos estamos a falar dos famosos direitos adquiridos, por todos invocados com maior ou menor legitimidade quando os sentem ameaçados.

 

 
Foram, de facto, todos eles atribuídos ao longo de décadas pelos decisores políticos. Umas vezes por legítima e nobre convicção sobre o modelo de desenvolvimento económico e social que defendiam para o país. Outras vezes por cálculos eleitorais de ocasião, que despertam quase sempre a generosidade que há num político. Outras ainda por trocas de favores e promiscuidades entre o mundo empresarial e a política.

 

 

 

Certo, certo é que muitos destes direitos foram adquiridos a crédito. A crédito de rendimentos e recursos futuros que, afinal, não aconteceram. Porque a economia não cresceu, porque a receita fiscal não chegou, porque os credores fecharam a torneira.

 

 
Ambicionar que nas próximas décadas o país vai criar riqueza que consiga garantir aos que hoje estão “fora” os mesmos direitos dos que estão “dentro” é uma ilusão. Isso não vai acontecer. Porque nada, neste momento, permite adivinhar a dinâmica económica necessária para que aconteça mas também porque as regras que alimentam esta dualidade são um lastro difícil de mover.

 

 
Mas o equilíbrio entre os de “dentro” e os de “fora” é absolutamente essencial, sobretudo se assentar mais no mérito do que no crédito. Há que dar espaço à mesa aos filhos dos direitos adquiridos e para isso todos terão que se ficar um pouco mais apertados.

 

 

 

 

 

Paulo Ferreira

 
Jornalista

 

08/05/2015

 

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