Marcelo Caetano demitiu-se por três vezes

Expresso – José Pedro Castanheira – 9 de Outubro de 2008

 

 

João Salgueiro no ciclo “Tempos de Transição’

 
Francisco Pinto Balsemão referiu-se às tentativas para evitar a reeleição de Américo Tomás como Presidente. Spínola e Kaúlza foram sondados, mas não aceitaram.

 

 

João Salgueiro foi o primeiro orador do colóquio ‘O Regime e a Ala Liberal’, realizado na quarta-feira e inserido no ciclo ‘Tempos de Transição’. O secretário de Estado do Planeamento de Caetano recordou a derradeira conversa que teve com o último Presidente do Conselho do Estado Novo: “A última vez que estive com ele foi na quarta-feira de cinzas de 1974, já depois do golpe das Caldas da Rainha. Marcelo Caetano disse-me: ‘Acabo de pedir a demissão [ao Presidente da República]. É a terceira vez que o faço e desta vez não volto atrás’. Mas depois voltou atrás. Foi pena”.

 

 

'Tempos de Transição'

O presidente da Associação Portuguesa de Bancos começou por saudar a iniciativa, mas não deixou de criticar os promotores, por não terem encontrado um espaço mais amplo.

 
Com efeito, e à semelhança da primeira conferência, realizada no Centro Nacional de Cultura, a biblioteca do Grémio Literário encheu-se por completo. “Isto não é caso para uma intervenção da ASAE, mas até poderia ter sido”, brincou Salgueiro.

 
Referindo-se ao quadro francamente optimista traçado na primeira conferência sobre a economia e as finanças do marcelismo, João Salgueiro fez notar que se tratava de “um sucesso insustentável”, na medida em que “não houve um ajustamento da vida política às mudanças operadas no país”. Mudanças que situou fundamentalmente “nas áreas da economia, do planeamento e até certo ponto na área social”.

 
Salgueiro disse que “aceitei o convite na convicção de que Marcelo Caetano era a pessoa indicada para liderar essas mudanças”. Durante dois anos contactou com o Presidente do Conselho quinzenalmente.
Os primeiros “arrepios no caminho” notaram-se logo em 1969. Aquando da formação das listas da União Nacional para as eleições, alguns dos convites a personalidades mais independentes e críticas já não foram aceites, designadamente em Lisboa. Aliás, 1969 foi um ano decisivo.

 
Lembrou a visita de Caetano a Angola, Moçambique e Guiné, que tanto o entusiasmou. E do resultado das eleições, que “alterou radicalmente o comportamento de Marcelo Caetano”. Sobretudo porque, ao contrário do que esperaria, os resultados da CDE foram largamente superiores aos da CEUD, a frente mais moderada, liderada pelos socialistas.

 
“O teste foi a remodelação governamental de 1970, que constituiu um passo atrás”. Viria a pedir a demissão do Governo no Verão de 1971.

 
Salgueiro historiou a constituição da SEDES, “uma ideia que germinou logo a seguir às eleições de 1969. Foi, ela própria, um teste. Pedimos autorização para a sua constituição em Fevereiro de 1970, mas ela só veio no final do ano…”

 
Foi numa iniciativa pública da SEDES, por exemplo, que o homem-forte da CUF, José Manuel de Mello, “defendeu uma evolução da situação colonial, bem como a não reeleição de Américo Tomás” para Presidente da República.

 
Balsemão: “Spínola e Kaúlza foram sondados”

 

 

Também Francisco Pinto Balsemão sublinhou que “estávamos convencidos que era possível fazer uma reforma e conduzir o país à democracia”. Quando Marcelo Caetano chegou ao poder, em 1968, “tinha o país na mão. Não precisava das eleições de 1969. E estava aberto a que fossem eleitos deputados da oposição”. A campanha, acentuou o ex-deputado liberal, “decorreu totalmente em liberdade”.
O proprietário do Expresso e da SIC contou que, nas suas conversas iniciais com Caetano, “ele defendeu para os territórios africanos um projecto confederal, do tipo da Commonwealth. Mais tarde, quando lhe voltei a falar do assunto, a resposta foi sintomática: “Aonde é que isso já vai!”

 
Enquanto deputado, Balsemão chegou a ir a Peniche, visitar alguns presos políticos, tentando interceder no sentido da respectiva libertação, uma vez cumpridas as respectivas penas. Explicou que foi uma das experiências “mais marcantes” da sua vida política. Tanto mais que, em 1975, na Assembleia Constituinte, cruzou-se com “José Magro, um dos presos que eu tinha visitado e que era, então, deputado comunista e vice-presidente da Assembleia. Fez de contas que nem me conhecia…”

 
Contou pormenores das suas relações com Sá Carneiro, “que era muito individualista” e que estava a seu lado no hemiciclo. Expôs as ligações exteriores da ala liberal – à Igreja, ao mundo empresarial, às embaixadas, ao Governo, à própria oposição, aos meios de comunicação social. Aqui, notou que “não me lembro de ter sido alguma vez entrevistado pela RTP ou até pela Rádio Renascença”.
Referindo-se à eleição presidencial de 1972 (por um colégio eleitoral de que fez parte), confirmou os contactos com o general Spínola. Num primeiro momento, disse, “tentámos que Américo Tomás não se voltasse a candidatar”. E confirmou que o próprio José Manuel de Mello apoiou essas diligências.
Numa segunda fase, “houve quem falasse com os generais Spínola e Kaúlza. Ambos foram sondados” para se candidatarem ao cargo”. “Ambos disseram que não” – lamentou.

 
Mota Amaral: solução colonial “estava fora de tempo”

 
Mota Amaral recordou a primeira reunião dos candidatos a deputados “com Marcelo Caetano no Palácio de São Bento, antes de iniciar a campanha. Foram marcados os parâmetros da nossa colaboração. Recordo que Marcelo admitia que pudesse haver deputados eleitos pela oposição” – o que, como se sabe, não aconteceu.

 
“O que nos movia?”, perguntou o ex-presidente da Assembleia da República. “Uma transição do regime para a democracia. O regime estava anquilosado e manifestamente não estava apto para enfrentar os problemas – entre eles a questão ultramarina, que viria a condicionar todos os demais”.

 
Referindo-se ao projecto de revisão constitucional apresentado pelos deputados liberais, que foi liminarmente chumbado pela maioria da Assembleia Nacional, o actual deputado do PSD sublinhou que só teve o apoio de três procuradores à Câmara Corporativa – Maria de Lurdes Pintasilgo, André Gonçalves Pereira e Diogo Freitas do Amaral.

 
Quanto à questão colonial e ao projecto de uma “autonomia progressiva e participada”, proposta por Caetano, reconheceu que “estava fora do tempo. Talvez fosse possível após a segunda Guerra Mundial”. Já não nos anos 70.

 
Rui Vilar duvida que tenha sido uma transição

 
A presidência do colóquio esteve a cargo de Rui Vilar. “Foi um tempo rico em experiências, de oportunidades e de frustrações. Mas tenho dúvidas que tenha sido um tempo de transição”.
E explicou: “se o tivesse sido, não teria havido a ruptura” do 25 de Abril. Preferiu falar de “alguma descompressão política”. Recorrendo à metáfora da lagarta e da borboleta, disse que, se houve projecto de transição, “rapidamente encasulou, sem que tenha havido metamorfose”.

 
O presidente da Fundação Gulbenkian contabilizou 20 deputados da ala liberal. No essencial, os que subscreveram o projecto de revisão constitucional de 1971, da autoria de Sá Carneiro, Pinto Balsemão e Mota Amaral. Nessa altura, já “o líder carismático do grupo”, José Pedro Pinto Leite, havia falecido.

 
Quanto a Melo e Castro, chamou-lhe “o deus ex machina” da “ala liberal”, que também morreu prematuramente. Rapidamente, porém, “a criatura evoluiu à revelia do criador”.

 
O grupo “não era homogéneo”. Ainda assim, Vilar assinalou alguns “traços comuns”. Eram relativamente jovens, politicamente inexperientes (ou quase), predominantemente juristas e ligados aos movimentos pós-conciliares da Igreja Católica. Umas das tribunas da ala liberal, foram o jornal Expresso e a SEDES.

 
Elmano Alves: “Fui eu que fechei a porta da ANP”

 

 
Elmano Alves, considerado o braço direito de Marcelo Caetano na ANP, historiou com detalhe como procurou “transformar aquela associação cívica”, como lhe chamou. Acusou o congresso da Oposição em Aveiro, em 1973, de ter sido “totalmente dominado pelo Partido Comunista”. A estratégia ali aprovada “resultou dos acordos celebrados em Moscovo entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, para apresentar uma frente única às eleições legislativas de 1973”. Detalhou em seguida a forma como decorreu o Congresso da ANP em Tomar, no mesmo ano.

 
Quanto à constituição das listas da ANP em 1973, “procurámos não repetir os mesmos erros”. Dos deputados liberais que haviam participado na anterior legislatura, “continuaram apenas dois”. Um deles foi Mota Amaral. “Foi o prof. Marcelo quem me pediu para falar com o dr. Mota Amaral, para lhe dizer que tinha muito gosto em que ele continuasse como deputado”.

 
Elmano Alves contou ainda as condições em que foi preso, duas vezes, depois do 25 de Abril. “No dia 26, ainda fui à sede da ANP. Fui o último homem a fechar a porta e a entregar a chave”.
Nogueira de Brito: revisão constitucional “foi uma desilusão”
Nogueira de Brito também não teve “nada a ver com a ala liberal”, a que chamou “espécie de ala dos namorados do prof. Marcelo Caetano”. Membro do Governo de Caetano até ao 25 de Abril, foi subsecretário de Estado do Trabalho e Previdência e, a partir de 1972, secretário de Estado do Urbanismo e Habitação. Só foi eleito deputado em 1973, “já como inscrito na ANP”.

 
Quando foi para o executivo, “aceitei sem grandes hesitações e até com algum entusiasmo”. O ex-deputado e dirigente do CDS reconheceu, porém, que teve várias aproximações com a ala liberal”, devido às alterações que promoveu na legislação sobre os sindicatos nacionais e a contratação colectiva, mas que viriam mais tarde a ser travadas.

 
“Foi uma desilusão para todos os que tinham responsabilidades no sector”. Também a revisão constitucional de 1971 “foi uma enorme desilusão”.

 

 

 

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