A cientista cardiovascular portuguesa Renata Gomes que vive fora de Portugal foi distinguida pelo Parlamento britânico

 Tem na carga genética o gosto pela aventura. Um avô emigrou para a Alemanha; a mãe viveu lá muito tempo; voltaram a Portugal, mas tornaram a sair – primeiro para França, depois para Inglaterra. Renata Gomes aplicou-se, estudou, chegou a Oxford, doutorou-se, tornou-se investigadora de elite na área cardiovascular e já foi premiada pelo Parlamento britânico. Em todo este percurso, o desembaraço é uma das armas favoritas.

 

 

A partir de quando quis ser médica?

 

 
“Desde que, aos três anos, fui operada pelo doutor Jardim, no hospital de Braga, a uma apendicite aguda. Sempre pensei nessa missão e aproveitava qualquer oportunidade que me surgisse. Além disso, a minha mãe e as minhas avós sempre me diziam: ‘Why reach for the moon when we can go for the stars?’ Já que estava no Reino Unido, não tendo o sonho de casar com um príncipe, chegar a Oxford ou Cambridge tornou-se um objectivo”.

 

 

Como tem reagido a família ao seu trabalho?

 

 
“Ficam todos babados com o trabalho, as nomeações e os prémios. Apoiam tudo o que faço, caso contrário era impossível. Dou um exemplo: em 2012, fui à China, voltei a Londres e, poucos dias depois, tinha de ir para a Austrália. A minha irmã que agora é advogada tinha malas diferentes para mim com roupa preparada e etiquetas a indicar para cada país servia – isso salvou-me naquela altura!”

 

 

Que desafios e lutas teve de ultrapassar no caminho para se tornar aquilo que é hoje?

 
“Não foi uma luta, para mim era uma missão, aliás, a minha vida é feita de missões. A minha família já andou pelo mundo inteiro e emigrar não foi um problema. Talvez seja cliché mas temos aquilo do ‘gene tuga’ de as pessoas serem desenrascadas – na minha bata tenho sempre uma chave de fendas e, embora isso não agrade aos engenheiros, se for preciso abrir uma máquina e eles não estiverem, não há problema.

 

Parlamento britânico distingue a cientista cardiovascular portuguesa Renata Gomes 2

A emigração nunca me assustou e às vezes bastaria mudar de norte para sul e ter mudanças drásticas. Tive de adaptar-me depressa. Lembro-me de ser criança e, de um mês para o outro, tornei-me fluente em francês. No fundo, era mais o desafio. Quando fomos para o Reino Unido, depois de ter tornado o francês quase na minha língua-mãe, a gramática do inglês era muito mais simples. Sempre gostei de aventuras e não é assustador, nem quero que digam: ‘Oh, coitadinha!’ Não, até tive muita sorte, porque consegui oportunidades. Nem devemos dizer que é um azar nascer em Portugal – temos essa sorte, pois fazemos parte da Europa, sendo um país desenvolvido e moderno com mentes abertas!”

 

 

Recebeu um prémio do Parlamento britânico: esse facto tão relevante implicou mudanças substanciais na sua vida?

 

 
“Não mudou, mas ajudou em muita coisa. Quando entrei no Parlamento já trabalhava 12 a 16 horas por dia, já dormia muito pouco, já a minha mãe dizia que, para falar comigo, era preciso marcar hora na agenda [risos]. No entanto, receber a medalha de prata da ciência na Biologia fez com que tivéssemos mais exposição perante o público e interessou-me estar em contacto com as pessoas a quem o meu trabalho diz mais directamente respeito. Isso implicou mais responsabilidade e envolvimento em mais projectos.”

 

 

No seu trajecto há pessoas que, além da família, têm sido contributos fundamentais para o sucesso. O que representam para si nomes como os de Oliver Smithies [ndr: Nobel da Medicina em 2007 ao lado de Mario R. Capecchi], Nobuyo Maeda [ndr: professora e investigadora na Universidade da Carolina do Norte e mulher de Smithies] ou Bruce Beutler [ndr: imunologista e geneticista norte-americano que foi prémio Nobel da Medicina em 2011 em conjunto com Jules A. Hoffmann]?

 

 
“Oliver Smithies e Nobuyo Maeda são aquele casal que, caso fosse possível, deveria viver para sempre! Foi uma sorte cruzar-me com eles, o Oliver tornou-se um mentor com quem tenho aprendido muito, é a soma de conhecimento, motivação e inspiração. Nobuyo merece uma admiração imensa, pois parte do meu trabalho na área cardiovascular e do colesterol só existe graças a um sistema que ela desenvolveu a partir de um modelo animal, mesmo tendo à volta toda a comunidade científica a dizer que seria impossível. É um exemplo de que nada é impossível! Já estivemos em Lisboa em 2013 e falava muito comigo sobre o seu percurso. Lembrou que, na sua juventude, era muito bonita e esse preconceito ainda existe, pensam que somos todos um bando de ‘nerds’, não lavamos os dentes ou temos cabelo oleoso! Com Bruce Beutler quero, um dia, fazer um programa, pois é fantástico! Quando acredita no potencial de alguém e esse alguém diz: ‘é para saltar’, ele pergunta: ‘How high?’ Tive muita felicidade de estar com eles e nunca imaginei que, um dia, estaríamos juntos no Santini, à meia-noite, com um prémio Nobel e a mulher, a comer gelados?! Ele tem 90 anos e trabalha todos os dias como se tivesse 40!”

 

 

Foi nomeada para os Óscares da Ciência com outras duas mulheres, não venceu, mas como é que recorda essa experiência?

 

 
“Pensei que era uma piada [risos]. A primeira vez que me telefonaram de Downing Street correu mal, pois às vezes há quem apanhe o nosso número de contacto e pregam-nos umas partidas [ndr: brinca e recupera em inglês o diálogo surrealista com a assistente de David Cameron até perceber que era a sério]. Dois minutos depois da conversa, quando recebi o e-mail de Downing Street, é que percebi ser verdade! Pior: quando lá fui a primeira vez, não sabia que tinham um gato e, sem querer, pisei-o. Fiquei tão atrapalhada que nem me apercebi que tinha de me mexer rapidamente!

 

Parlamento britânico distingue a cientista cardiovascular portuguesa Renata Gomes 3

A nomeação foi uma honra enorme, claro. Três mulheres cientistas nomeadas para a categoria de herói tornámo-nos inseparáveis e, convocando-nos quase sempre às três, passaram a chamar-nos Os Anjos de Charlie porque uma é morena, outra loura e outra ruiva. A Tara, que ganhou, foi promovida a directora de ciências biomédicas na Irlanda, a Ceri é britânica e trabalha em Exeter como espécie de David Attenborough da exploração do Ártico. Sou fã das duas, identificamo-nos de formas diferentes, somos muito unidas e ajudamo-nos em projectos: por exemplo, a Tara trabalha em regeneração ocular, mas também numa especialidade minha, a angiogénese, e trocamos informações. Por norma, aquela nomeação costuma ser para cientistas com carreira estabelecida e eu só comecei a minha investigação científica em 2007 ainda como estudante de doutoramento.”

 

 

Cuidou de assegurar ligações a organizações não governamentais e já apresentou três prémios Nobel numa delas, a Rede de Pequenos Cientistas. Como tem funcionado essa interligação?

 

 
“Juntei-me a esse programa quando já existia há cinco anos. Foi iniciado por três professoras da Escola Secundária de Barcelos que queriam expor os estudantes a mais práticas laboratoriais. Um dos pequenos cientistas é a Ana Ferraz. Há alguns anos, uma das suas frustrações era estar a estudar diferentes tipos de sangue nas aulas, pois queria era testá-los. Isso levou-a a um mestrado numa área em que tem quase concluído o doutoramento e também a um prémio de jovem inovadora.”

 

 

O que é mais fascinante para si no papel de investigadora médica?

 

 
“Mesmo sabendo tanto ainda sabemos tão pouco! Quero desvendar e perceber em maior detalhe esses pequenos mistérios que, ao serem percebidos, dão origem a grandes revoluções como a descoberta das vacinas. Perceber o porquê, não só na medicina e na investigação, mas também nos trabalhos mais recentes que envolvem diplomacia e alguma política. É uma cadeia de porquês mais objectivos, pois estou mais treinada no plano clínico e científico.”

 

 

Como interpreta os cortes no investimento em Ciência tão frequentes nos diversos governos?

 
“Gostava que me explicassem isso, porque é absolutamente ridículo. Educação e saúde devem ser as prioridades para o desenvolvimento. A riqueza a longo prazo de qualquer nação está no seu investimento na ciência. As desculpas são muitas, mas quase todas esfarrapadas.”

 

 

Já confessou sentir-se fascinada pelo coração, o seu músculo favorito, mas muito vulnerável a doenças. Pode dizer que a ciência está num plano desenvolvido do controlo das doenças de foro cardiovascular?

 

 
“Tenho o privilégio de trabalhar com o meu músculo favorito, corrigindo efeitos dos problemas cardiovasculares, mas quase 90% deles derivam da nossa indisciplina, trata-se de doenças dos países desenvolvidos onde prevenção e disciplina com obesidade, inactividade física ou fumar reduziriam a situação a metade. O colesterol é um assassino silencioso e mesmo pessoas com perfeito registo de índice de massa corporal podem ter colesterol elevado. Na área do coração, para o regenerar após acidentes vasculares, já desenvolvemos novas estratégias e descobrimos uma célula que anda por ali sem fazer alguma coisa até sentir um estímulo, libertando tudo e mais alguma coisa para evitar o acidente vascular. Em muitos casos a culpa é nossa, não se trata de um cancro.”

 

 

Estando a viver fora do País, como avalia os quatro anos de ajustamento em Portugal?

 

 
“Em geral foram tempos difíceis, mas, olhando a números e estatísticas, pois não vivo em Portugal, esses quatro anos foram necessários e talvez possam fazer bem ao País a longo prazo. Mas percebo que a austeridade ainda não acabou e vai obrigar a outros sacrifícios.”

 

 

 

TPT/AFP/com: Paulo Jorge Pereira/Económico/29/1/2016

 

 

 

 

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