O escândalo Watergate, que derrubou Richard Nixon, serve de exemplo ao homem que fez e faz tremer a classe política brasileira. Sergio Moro, o juiz candidato a “mocinho” ou a vilão anti-PT?
“Eu, sinceramente, tô assustado com a ‘República de Curitiba’. Porque a partir de um juiz de primeira instância, tudo pode acontecer nesse país“.
Lula da Silva disse-o, letra por letra, numa das muitas conversas escutadas (e entretanto divulgadas) entre o ex-Presidente do Brasil e Dilma Rousseff. O histórico líder petista referia-se, assim, a Sergio Moro, juiz federal da 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba e o principal responsável pela Operação Lava Jato.
As palavras de Lula da Silva mostram bem a influência (e o poder) de que goza Sergio Moro. Mas, afinal, quem é o homem que está a abalar o regime brasileiro? O quadro vai sendo pincelado com a ajuda de alguns testemunhos de quem mais de perto convive ou conviveu com Sergio Moro. Regra geral, as fontes preferem o anonimato – o superjuiz brasileiro que quer tramar Dilma e Lula da Silva pediu aos amigos e colegas que não falassem sobre ele. É uma regra de segurança que prefere não quebrar.
A edição brasileira do El País, no entanto, chegou a traçar-lhe um perfil. “Teimoso, reservado, técnico, frio (embora educado), extremamente competente, razoavelmente distante dos olhares da imprensa e sem medo de enfrentar figurões.”
O Gazeta do Povo, o principal jornal do estado do Paraná, onde está concentrada grande parte da investigação, acrescentava outros traços: “Um sujeito pacato que até há pouco tempo ia de bicicleta trabalhar”; o “professor que não se atrasa”; um “osso duro de roer”; “o são-paulino que gosta de vinho e charutos“; o “filho que saiu de casa cedo.”
Os brasileiros dividem-se. Para uns quantos milhões, Sergio Moro é a única esperança para pôr termo à corrupção. Um candidato a herói, o “mocinho” da telenovela que acaba sempre por salvar a donzela, sendo que a donzela, neste caso, é a corrupta e corruptível política brasileira. Para outros tantos milhões, Moro é um lobo em pele de cordeiro, um vilão ao serviço do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que quer destruir o Partido dos Trabalhadores (PT) de Dilma e de Lula.
É nesta complexa dicotomia que Sergio Moro mergulhou. O mesmo Lula, na mesmíssima escuta em que foi apanhado a denunciar a “República de Curitiba”, acusa o juiz de querer fazer um “espetáculo de pirotecnia” à custa da Operação Lava Jato. Ainda esta quinta-feira, na tomada de posse do seu novo chefe da Casa Civil, a Presidente Dilma Rousseff não só condenou as escutas – autorizadas e divulgadas por Moro -, como falou em “agressão à Constituição”. “Os golpes começam assim”, mas “a gritaria dos golpistas não me vai tirar do rumo”, prometeu Dilma.
Os ataques são cerrados. Nascido em 1972, na cidade paranaense de Maringá, onde estudou Direito, ainda antes de se mudar para Cambridge, onde completou a formação na prestigiada Universidade de Harvard, Sergio Moro é casado e pai de dois filhos. Filho de uma professora de português e de um professor de geografia, começou a carreira de juiz em 1996, mantendo em paralelo o cargo de professor universitário.
Já em março deste ano, em entrevista à Folha de São Paulo, Odete Starke Moro, a mãe de Sergio Moro, reagia assim depois de ter sido vaiada por manifestantes pró-Lula, num evento público: “As pessoas querem ligar o Sergio ao PSDB. Só que isso não existe. Eles não se conformam e procuram todas as formas ligar ele ao PSDB.”
Especializado em crimes de colarinho branco, inspirado pela operação italiana Mãos Limpas, Moro começou a dar nas vistas no caso Banestado – um processo judicial que levou à condenação de 97 pessoas por branqueamento de capitais públicos. Começava aí o caminho do juiz “justiceiro”, como escrevia a edição brasileira do El País.
O escândalo Banestado foi, de resto, o começo de tudo o que aconteceu a seguir – o “Mensalão”, o início do “Petrolão” e, agora, a “Operação Lava Jato”. Uma rede híper complexa, mas com três denominadores comuns: dinheiro, política e corrupção. Um cocktail explosivo.
Chegados aqui, há um nome a reter: Alberto Youssef, o “doleiro” – ou intermediador de contratos – e a peça central de todo o processo. Quando o caso rebentou, Youssef disse uma frase que se viria a revelar um prenúncio. “Caras, se eu falar, a República vai desmoronar”. E o “doleiro” falou.
Albert Yousseff acabaria por ser condenado no âmbito do caso “Mensalão”, depois de ter ajudado vários deputados, muitos do Partido dos Trabalhadores (PT), a lavar os subornos (pagos com dinheiro público) que recebiam a troco de votos favoráveis às intenções do Governo.
Lula da Silva escapou incólume ao processo – pelo menos politicamente. E defendeu-se, contra-atacando. “O tempo vai-se encarregar de provar que, no Mensalão, houve praticamente 80% de decisão política e 20% de decisão jurídica. Acho que não houve Mensalão. Essa história vai ser recontada, é uma questão de tempo, para se saber o que, na verdade, aconteceu. Esse processo foi um massacre para destruir o PT. E não conseguiram”, disse.
Albert Youssef acabaria condenado por lavagem de dinheiro, não apenas no “Mensalão”, mas também no âmbito da “Operação Lava Jato”. Youssef não se limitou a assumir a culpa: ajudou a Justiça brasileira e denunciou vários prevaricadores. E como ele, outras peixes pequenosapanhados na malha da justiça foram fazendo o mesmo para escapar a penas mais pesadas. Esta é a impressão digital de Sergio Moro: o juiz incentiva a delação premiada, a infiltração de agentes nos esquemas de corrupção e as quebras de sigilos. Tudo bem à maneira americana.
De resto, o super juiz fez uma referência ao caso que derrubou Richard Nixon – o Watergate – para justificar o recurso às escutas que apanharam Lula e Dilma em conversas, alegadamente, comprometedoras: “Nem mesmo o supremo mandatário da República tem um privilégio absoluto no resguardo de suas comunicações”, lembrou Sergio Moro.
A verdade é que a Operação Lava Jato – a maior investigação de corrupção da história do país e que envolve o poder político, troca de favores, luvas, lavagem de dinheiro, vários empresários e algumas das maiores construtoras do país – tem várias gargantas fundas.
Uma das personagens centrais da investigação, no entanto, é o senador petista Delcídio do Amaral, que depois de se ver envolvido no esquema de corrupção da Petrobras, decidiu colaborar com a Justiça e implicou Lula da Silva, Dilma Rousseff e José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça brasileira, entre outros. Tudo em troca de uma possível redução de pena.
É muito provável que as denúncias de Delcídio do Amaral tenham estado na origem da decisão do juiz Sergio Moro: a 4 de março, ao abrigo de um mandado assinado pelo superjuiz, a Polícia Federal brasileira realizou buscas na casa do ex-Presidente e levou Lula para depor.
Os acontecimentos precipitar-se-iam. Os brasileiros saiam à rua e as manifestações sucediam-se. A 13 de março, com o “povo brasileiro” na rua, Sergio Moro reagia assim: “Entre os diversos motivos, para protestar contra a corrupção que se entranhou em parte de nossas instituições e do mercado, fiquei tocado pelo apoio às investigações da assim denominada Operação Lava-jato. Não há futuro com a corrupção sistémica que destrói nossa democracia, nosso bem-estar económico e a nossa dignidade como país”.
Um homem com uma missão, que faz tremer a classe política do Brasil. Os outros jogadores no xadrez político-judiciário brasileiro parecem em choque e desorientados. Lula da Silva, na tal conversa que manteve com Dilma Rousseff, resumiria assim:
“Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, nós temos um Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado, um Parlamento totalmente acovardado (…) um Presidente da Câmara fodido, um presidente do Senado fodido, não sei quantos parlamentares ameaçados, e fica todo mundo no compasso de que vai acontecer um milagre e que vai todo mundo se salvar“.
Os próximos tempos dirão se o superjuiz vai ou não tramar os dois líderes políticos brasileiros mais amados dos últimos tempos.
Aprovada comissão para analisar destituição de Dilma Rousseff
A Câmara dos Deputados aprovou hoje a constituição da comissão especial responsável pelo andamento do processo de destituição (impeachment) da Presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Antes da votação, líderes dos 24 partidos com representantes na Câmara indicaram os nomes dos 65 deputados que vão participar nos trabalhos. A comissão foi eleita por 433 votos a favor e apenas 1 contra.
Os parlamentares devem reunir-se novamente hoje para tratar de detalhes dos procedimentos da comissão especial. Após essa reunião, a comissão estará oficialmente instalada. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, disse que a comissão especial também fará uma reunião hoje às 19h locais (22h, em Lisboa), quando acontecerá a eleição de presidente e relator da comissão.
A comissão especial funcionará por até quinze sessões do plenário da Câmara. Destas, dez sessões serão destinadas à apresentação da defesa de Dilma Rousseff e mais cinco para a votação do relatório. No processo de destituição, os parlamentares vão analisar se a Presidente Dilma Rousseff cometeu crimes de responsabilidade previstos na Constituição e na Lei de Responsabilidade Fiscal.
A Presidente é acusada principalmente de realizar “pedaladas fiscais” ao autorizar adiantamentos de dinheiro realizados por instituições financeiras, a Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil, como manobras para maquiar, momentaneamente, as contas públicas.
Na última quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o processo só poderia ser iniciado após a eleição de uma comissão única formada por nomes indicados pelos líderes dos partidos, eleita em voto aberto na Câmara. O órgão também reafirmou que o Senado pode arquivar o processo de destituição da Presidente depois de o receber, mesmo que ele tenha sido aprovado na Câmara. Dilma Rousseff só será afastada do cargo, pelo prazo de até 180 dias, se os senadores aceitarem a denúncia que chegar da Câmara.
Miguel Santos/Observador/ FERNANDO BIZERRA JR/EPA/TPT/ 19 de Março de 2016