Uma sentença esperada. Ao fim de mais de quatro meses de julgamento, os 17 ativistas angolanos foram condenados por associação criminosa. As penas foram conhecidas esta segunda-feira e vão desde os dois anos e três meses a oito anos e seis meses de prisão, com Domingos da Cruz, considerado o líder do grupo, a enfrentar a pena mais pesada. O rapper luso-angolano Luaty Beirão foi condenado a cinco anos e seis meses de cadeia. Mas para muitas organizações de Direitos Humanos e especialistas em assuntos africanos, a história deste julgamento está longe do fim.
Começou a 20 de junho de 2015 a história de um processo que viria a colocar holofotes sobre o regime de José Eduardo dos Santos. A polícia angolana acabava de deter um grupo de jovens que alegadamente preparava atos de rebelião contra o regime de José Eduardo dos Santos.
Na base destas suspeitas, o livro de Domingos da Cruz que os jovens se propunham a ler e a discutir: “Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura — Filosofia Política da Libertação para Angola”.
Luta pacífica, luta paciente
Publicada em vários capítulos, o académico angolano foi influenciado pelo filósofo norte-americano Gene Sharp e a sua aclamada obra “Da Ditadura Para a Democracia” (1993), que também viria a inspirar o movimento conhecido como Primavera Árabe. O livro de Domingos da Cruz adaptava as teorias e pensamento de Sharp à realidade angolana.
Na obra, Domingos da Cruz defendia o uso de “ações pacíficas” contra o totalitarismo. No manuscrito, publicano no ano passado pelo jornalista Rafael Marques e pelo portal Maka Angola, apela-se à via pacífica e “resistência civilizada” ao regime vigente. Um processo lento, onde se exigiria muita paciência e inteligência para destruir a ditadura paulatinamente. “Ao estilo de Mahatma Ghandi”, acrescenta o ativista, agora condenado a oito anos e seis meses de prisão.
“Pegar em armas levaria a ditadura a agradecer, na medida em que teria legitimidade tanto interna quanto externa para exterminar. (…) Usar armas demonstra que somos igualmente selvagens como o ditador e perderíamos autoridade moral e legitimidade democrática”, pode ler-se num ponto introdutório do texto.
O livro em causa, com 138 páginas, nunca chegou a ser editado. Era publicado em fascículos, à medida que o grupo de ativistas se ia reunindo para o discutir. Ao sétimo capítulo, onde é definida uma estratégia de planeamento para a luta democrática e resistência no longo prazo, os ativistas foram detidos.
Durante os quatro meses do julgamento, desde 16 de novembro do ano passado, “Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura — Filosofia Política da Libertação para Angola” seria lido na íntegra pelos juízes.
“Um dia greve de fome por cada ano de ditadura”
O caso só chegaria às bocas do mundo alguns meses depois. Detido em prisão preventiva desde junho, Luaty Beirão inicia a 21 de setembro uma greve de fome que dura até 27 de outubro.
Da primeira à última data vão 36 dias que deram dimensão ao caso e levaram os media internacionais até Luanda. Com o passar dos dias, o estado de saúde e condição de Luaty Beirão, músico e engenheiro informático de profissão, agravava-se. Temiam-se danos “irreversíveis” na saúde. O ativista chegou mesmo a prescindir de cuidados médicos caso entrasse em coma.
As primeiras notícias chegaram com especial impacto a Portugal. A ligação histórica entre os dois países, o passado colonial e o facto de se tratar de um luso-angolano acabaria por atear momentos de tensão entre os dois países. De um lado, os editoriais dos jornais portugueses, que apontavam o dedo ao regime repressivo de José Eduardo dos Santos. Os partidos, sobretudo PS e Bloco de Esquerda, exigiam mão pesada ao Executivo de Pedro Passos Coelho. Do outro, os editoriais do Jornal de Angola, que versava as intromissões dos media e do Governo português em assuntos de natureza interna.
José Marcos Barrica, embaixador de Angola em Portugal, chegou mesmo a comunicar o “desagrado” pela aprovação de um voto de solidariedade para com os 15 ativistas detidos ao Ministério português dos Negócios Estrangeiros. Estava instalado o conflito diplomático.
Mas a situação dos ativistas detidos em Luanda mobilizou o público e juntou centenas de pessoas em manifestações, em Lisboa.
Outros ativistas detidos seguiram os passos de Luaty Beirão e iniciaram também eles greves de fome contra as detenções, que consideravam “arbitrárias”. De relembrar que estes ativistas estavam detidos desde junho e nenhum tribunal tinha ordenado a prorrogação da prisão preventiva.
Com o ato de protesto, pretendiam mais atenção mediática e a marcação de uma data para o início do julgamento. De certa forma, alcançaram os dois objetivos da ação de protesto. Mas mesmo com início do julgamento já prometido, com data marcada entre 16 e 23 de novembro, Luaty prosseguiu com a greve de fome.
Só mesmo os apelos da família demoveram o ativista. A carta emocionada da mulher, Mónica Almeida, pedia a Luaty Beirão que terminasse a greve de fome pela filha de dois anos.
A 27 de outubro, o rapper faz publicar uma “Carta aos meus companheiros de prisão”, no jornal Rede Angola. Era o fim da greve de fome.
Na missiva enviada aos colegas, Luaty Beirão denuncia e expõe a situação dos 15 ativistas detidos: “Junho vai longe. Passámos muitos dias presos em solitárias, alguns sem comer, com muitas saudades de quem nos é próximo. Pelo caminho sentimos a solidariedade da maioria dos prisioneiros e funcionários. Tivemos apoio de família e amigos.”
Como o próprio sublinha, muita coisa mudou durante a greve de fome. Organizações, personalidades, instituições e anónimos exigiam a libertação dos jovens detidos.
“O Luaty, rebelde como sempre, terminou os 36 dias que significam também os 36 anos de poder do Presidente da República. É simbólico e é também uma declaração, uma prova de resistência do Luaty. Foi um dia de greve por cada ano no poder do Presidente José Eduardo dos Santos”, analisava o jornalista Rafael Marques no dia em que Luaty pôs fim ao protesto.
Opinião partilhada por José Eduardo Agualusa: “O objetivo a que se propunha não foi conseguido, que era o de esperar em liberdade pelo julgamento. Mas, na realidade, aquilo que mais importava, que era chamar a atenção para os presos políticos, foi conseguido completamente. Gerou-se um movimento de solidariedade dentro e fora do país, que gerou uma dimensão que ninguém estava à espera. Aí ele triunfou completamente”, frisava na altura o escritor angolano.
Julgamento atribulado
O julgamento dos 17 ativistas começava a 16 de novembro de 2016, com forte presença dos media internacionais. A Angola interessava mostrar imparcialidade de um caso de justiça sem contornos políticos. Mas os quatro meses do processo ficaram marcados por vários episódios que levantaram suspeitas sobre os tribunais de Luanda.
Durante as várias sessões, os jovens acusados garantiram sempre que os encontros semanais eram organizados apenas com o objetivo de discutir política e não qualquer ação contra o Governo ou rebelião.
Os ativistas foram acusados de orquestrar um plano para destituir os órgãos de soberania e colocar no poder um “Governo de Salvação Nacional”. O Executivo imaginário a que o Tribunal se refere na sentença remete para um post no Facebook onde é discutido um Governo hipotético para Angola. Uma das poucas provas apresentadas pela acusação durante o julgamento.
A publicação na rede social partiu de Albano Pedro, advogado e professor de Direito na capital angolana. Surgem então várias sugestões para os orgãos de soberania. Para o juiz envolvido no processo, esta discussão seria um “complot para destituir e substituir por pessoas da conveniência do grupo”.
Dos 17 acusados, 15 aguardaram sentença em prisão preventiva até 18 de dezembro. As medidas de coação foram revistas e estes detidos, entre eles Luaty Beirão e Domingos da Cruz, passaram a aguardar decisão em prisão domiciliária.
Há ainda os casos de Manuel Chivonde, um estudante universitário de apenas 19 anos que foi condenado a seis meses de prisão efetiva por injúrias em tribunal, e ainda de Nuno Dala, um professor universitário que se recusou a comparecer no julgamento, que regressou também à prisão. Doente e alegando falta de tratamento médico na prisão, iniciou uma greve de fome a 10 de março, uma ação de protesto que já leva 19 dias e estará a agravar o seu débil estado de saúde.
O julgamento ficou também marcado pela decisão do juiz Januário Domingos, que ordenou a leitura integral da obra de Domingos da Cruz, na origem de todo o processo, durante dois dias. Nas ruas, à porta do tribunal onde decorreram as sessões, registaram-se vários protestos – a favor e contra os ativistas.
Os próprios ativistas assumiram o protagonismo. Apareciam descalços, com mensagens e frases de protesto escritas na roupa; chegaram a ser expulsos pelo juiz numa das sessões.
Uma decisão esperada
Perante todos estes incidentes e posição assumida pela Justiça ao longo do julgamento, os ativistas mostravam-se preparados para qualquer decisão: “Vai acontecer o que o José Eduardo decidir. Tudo aqui é um teatro, a gente conhece e sabe bem como funciona. Por mais argumentos que se esgrimam aqui e por mais que fique difícil de provar esta fantochada, se assim se decidir seremos condenados”, disse Luaty Beirão em declarações à Agência Lusa antes da leitura da sentença.
Condenados por “associação de malfeitores”, com pena adicional pela falsificação de documentos, os 17 homens e mulheres conheceram esta segunda-feira as penas a que são condenados pelo Tribunal Provincial de Luanda. Tal como havia sido pedido pelo Ministério Público, dada a ausência de provas, os arguidos foram todos absolvidos do crime de atos preparatórios para um atentado ao Presidente da República e ao Governo de Angola.
Nuno Dala, Sedrick de Carvalho, Nito Alves, Inocêncio de Brito, Laurinda Gouveia, Fernando António Tomás “Nicola”, Afonso Matias “Mbanza Hamza”, Osvaldo Caholo, Arante Kivuvu, Albano Evaristo Bingo-Bingo, Nelson Dibango, Hitler Jessy Chivonde e José Gomes Hata foram condenados a quatro anos e meio de prisão. Domingos da Cruz vai cumprir pena de oito anos e seis meses e Luaty Beirão cinco anos e seis meses. Todos os ativistas foram já encaminhados para a cadeia de Viana, segundo o jornal Rede Angola.
Processo longe de estar terminado
Para alguns, o processo está longe do fim. Tanto os advogados de defesa e como o Ministério Público angolano anunciaram já que vão recorrer da decisão.
José Gonçalves, especialista em política angolana e comentador da RDP África, acredita que a decisão conhecida hoje vai levar a várias manifestações e protestos.
Para José Gonçalves, esta sentença deixa uma imagem “repressiva” do Governo de Luanda, numa decisão que reprime e tenta silenciar uma força política que até era “insignificante”.
Várias organizações de Direitos Humanos deixaram a completa rejeição face à sentença. A Human Rights Watch fala de condenação “extremamente ridícula” e promete manter a pressão sobre o regime de Luanda.
Já a Amnistia Internacional em Portugal refere-se aos ativistas como “prisioneiros de consciência” num julgamento “de faz de conta”. A decisão anunciada esta segunda-feira foi alvo de um protesto nas ruas de Lisboa, onde os manifestantes exigiral a libertação dos angolanos agora condenados.
Reação do MNE português
O Ministério de Augusto Santos Silva reagiu ao fim da tarde à leitura da sentença, afirmando tomar “boa nota” da decisão comunicada pela defesa dos ativistas em interpor recurso judicial, perante a “gravidade e dimensão” das penas.
“Confiamos que a tramitação do processo, nos termos previstos na legislação angolana, obedeça aos princípios fundadores do Estado de Direito, incluindo o direito de oposição por meios pacíficos às autoridades constituídas”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros numa nota enviada à Agência Lusa.
O MNE assegura ainda que “o Governo português acompanhou pelos canais diplomáticos adequados (…) o processo judicial conduzido, em Luanda, pelas autoridades competentes, relativamente às ações de 17 cidadãos angolanos, um dos quais detém também nacionalidade portuguesa”.
TPT com: Andreia Martins/RTP/João Relvas/Lusa/7 de Abril de 2016