O Brasil é presidido por uma mulher. Mas na última semana o país foi confrontado com dois tradicionais estereótipos femininos: a potencial nova primeira dama, casta e reservada, e a mulher do ministro do Turismo, Miss Bumbum 2013.
A Câmara dos Deputados em Brasília tinha acabado de votar maioritariamente pelo afastamento da Presidente Dilma Rousseff quando o Brasil teve uma previsão da sua potencial nova primeira dama. Num artigo curto mas polémico, a revista semanal Veja traçou o perfil de Marcela Temer, a jovem mulher do não tão jovem vice-presidente Michel Temer, escalado para substituir Dilma na Presidência assim que o impeachment for votado pelo Senado, o que deverá ocorrer no próximo dia 11 de Maio.
Sob o título “Bela, recatada e do lar”, o artigo enaltecia um modelo feminino tradicional: a mulher casta (o vice-presidente foi o seu primeiro namorado) e reservada, cujos dias consistem em cuidar da casa e levar o filho à escola, e que vive na sombra do marido. A loira Marcela Temer, 32 anos, ou 43 anos mais nova do que o marido, é descrita pela Veja como “uma mulher de sorte”.
Nos dias seguintes, as redes sociais reagiram ao artigo com furor e ironia. Muitas mulheres – e homens – publicaram fotos suas no Facebook e no Instagram em poses mais ou menos atrevidas com o hashtag#belarecatadaedolar. Liliana Maiques, uma advogada de 42 anos, e quatro outras mulheres ligadas ao activismo feminista, decidiram criar um acto de protesto no centro do Rio de Janeiro a que chamaram, ironicamente, “Belas, Recatadas e do Lar”.
“A gente ficou muito indignada com a matéria da Veja sobre a esposa do vice-presidente. É uma matéria misógina, que quer recolocar a mulher no espaço privado, que é o lar, desprezando toda a mulher que não cabe nesse modelo”, disse Liliane na quarta-feira à tarde, durante a manifestação que juntou algumas centenas de mulheres de várias gerações. Em coro, percorrendo as ruas do centro do Rio, as mulheres gritaram slogans como “Nem recatada e nem do lar, eu estou na rua para lutar” ou “Se cuida seu machista, a América Latina vai ser toda feminista”.
Isabel Cristina Firmino, 51, técnica de enfermagem no Hospital Universitário António Pedro, viu as suas amigas deixarem a manifestação mais cedo – para cuidar dos filhos ou das famílias – mas continuou, levantando um cartaz bem acima da cabeça. Quando terminasse ali, ainda teria duas horas de comboio pela frente até chegar a casa. “Estou lutando contra a opressão. Sou mãe, sou negra, sou lésbica – tenho tudo para ser oprimida”, resumiu, num sorriso. O artigo da Veja, “uma revista que representa a elite do país”, é “uma afronta a nós mulheres trabalhadoras, batalhadoras”, disse. “Muitas de nós temos de criar as nossas famílias sozinhas, temos jornada dupla, jornada tripla [extensão de horas de trabalho por causa das tarefas domésticas]. Nós somos lutadoras, cara. Bela, para a gente, é a mulher que luta. A maioria das pessoas que estão aqui é isso.”
Jovens seguravam cartazes que diziam “Lugar da mulher é onde ela quiser”, o que poderia soar como uma reivindicação arcaica num país que elegeu uma mulher Presidente. O perfil de Marcela Temer na Veja não foi o único modelo feminino que emergiu de Brasília nos últimos dias. Na terça-feira, o Brasil conheceu a mulher do novo ministro do Turismo, vencedora do concurso Miss Bumbum em Miami em 2013. Voluptuosa e decotada, Milena Santos posou no novo gabinete do marido e publicou as fotografias no seu Facebook, descrevendo-se como a “primeira dama do Turismo”. As redes sociais e a imprensa também partilharam fotos de Milena Santos, feitas para o concurso Miss Bumbum, em que aparece quase nua posando frente ao Congresso Nacional, com uma faixa presidencial sobre o corpo.
Muitos dos críticos apontaram que a vulgaridade das fotos reforçava a percepção do Brasil como um destino de turismo sexual. Os sectores da direita ergueram Milena Santos a símbolo da mulher do PT [Partido dos Trabalhadores, à frente do Governo], por contraponto à “bela, recatada e do lar” Marcela Temer. Algumas mulheres lembraram que quem tinha criticado o perfil da revista Veja só podia defender Milena Santos, uma mulher que fez o que quis com o seu corpo. “Nós não somos moralistas. Mas a gente é contra a objectificação do corpo da mulher”, diz Liliana Maiques. “Se uma mulher quiser ser recatada e do lar, ela pode ser. A gente não é contra. A gente é contra uma revista dizer que essa mulher é que é boa. Porque está dizendo que todas as outras que não se enquadram nesse padrão não prestam. Daí que o nosso slogan aqui seja: ‘Lugar de mulher é onde ela quiser’. Inclusive nua, com uma faixa presidencial, se ela quiser.”
“Muitas pessoas criticaram dizendo que o Congresso não era o lugar para fazer aquelas fotos. Mas é um contrassenso: lá dentro é roubalheira, corrupção, todo o tipo de crime. As pessoas não têm o direito de santificar aquele lugar”, diz Isabel Firmino.
Há poucos meses o Brasil vivia o que chamou de “Primavera das Mulheres”, um movimento feminista que se impôs nas ruas e na Internet, chamando os machistas pelos seus nomes. Um dos mais expressivos e memoráveis protestos contra Eduardo Cunha, o mega-vilão da classe política brasileira, foi realizado por mulheres, em Novembro de 2015, por causa de um projecto-lei da autoria do Presidente da Câmara dos Deputados, o PL 659, que pretende penalizar e restringir ainda mais uma lei do aborto que já é severa e punitiva.
Mas Cunha não é mais alvo exclusivo do repúdio feminista. O deputado Jair Bolsonaro e o candidato favorito às eleições municipais de Outubro no Rio, Pedro Paulo, também foram incluídos nos protestos de quarta-feira. Bolsonaro, um evangélico ultra-conservador, foi o deputado que dedicou o seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais temidos torturadores da ditadura militar brasileira, que Dilma Rousseff conheceu quando esteve presa por causa das suas actividades de resistência. Na sua declaração, Bolsonaro descreveu Ustra como “o pavor de Dilma”. “Era um torturador que tinha técnicas específicas voltadas para as mulheres: introdução de ratos nas vaginas, violações, participação dos filhos pequenos nas sessões de tortura”, conta Liliana Maiques.
Quanto a Pedro Paulo, que também votou a favor do impeachment, é comum ver o seu nome em graffiti nos muros do Rio: “Pedro Paulo bate em mulher”. O candidato a presidente da Câmara do Rio agrediu a ex-mulher duas vezes, mas desvalorizou os episódios – e mantém-se na corrida eleitoral. “A nossa intenção é infernizar a vida dele”, diz Liliana.
TPT com: AFP/EVARISTO SA/ Kathleen Gomes/Pub// 8 de Maio de 2016