No melhor dos casos, aos olhos do Presidente Recep Tayyip Erdogan e de uma Turquia em fervor patriótico, os aliados ocidentais chumbaram o teste de lealdade pela maneira como responderam à tentativa de sublevação do Exército no mês passado. Condenaram-na, mas não tanto como por estes dias criticam as purgas de dezenas de milhares de funcionários públicos, académicos, professores e militares que Erdogan e os seus aliados acusam de pertencer ao suposto Estado-paralelo de Fethullah Gülen, o imã no exílio que dizem ser o grande orquestrador do golpe.
Está criado um fosso entre os tradicionais aliados da Turquia na Europa e Estados Unidos. Os primeiros ameaçam bloquear o processo de adesão à União Europeia em resposta às purgas. Os segundos, incriminados na imprensa turca por supostas ligações ao golpe, recusam-se a extraditar Gülen sem provas da sua culpa. E esta terça-feira, no maior indício do azedar das relações a Ocidente, Erdogan viajou pela primeira vez depois do golpe para se encontrar com Vladimir Putin e remendar os laços com a Rússia, deixando de lado os seus parceiros da NATO.
Moscovo comportou-se como o aliado ideal dos anos anteriores, condenando prontamente a tentativa de golpe sem se alongar mais tarde em comentários sobre detenções arbitrárias ou violações do Estado de Direito – pediu apenas que a situação se resolvesse sem violência e de acordo com a ordem constitucional. E isto num momento em que os dois países estavam ainda de costas voltadas pelo abate de um caça russo na fronteira com a Síria, em Novembro, algo pelo qual Erdogan pedira desculpas uns dias antes das operações falhadas do Exército turco.
O incidente ficou arrumado no encontro desta terça-feira em São Petersburgo. Erdogan voltou a agradecer a chamada que lhe fez Putin – “o meu querido amigo” – pouco depois da tentativa de golpe. O Presidente russo devolveu a cortesia, saudando a viagem da sua delegação num momento tão “complexo”. Concordaram ambos em restabelecer a meta de 100 mil milhões de dólares em trocas comerciais e regressar a dois mega-projectos: a construção da primeira central nuclear turca e de uma linha de abastecimento de gás natural russo para a Europa.
Os dois líderes têm muito a ganhar com a reaproximação. Principalmente Erdogan, que teve de enfrentar uma profunda crise no sector do turismo no último ano, causada em parte pelo surto de ataques terroristas do grupo Estado Islâmico, mas também porque menos 3,5 milhões de turistas russos visitaram o país do que o habitual. O impacto das sanções económicas a produtos e contratos de construção turcos foi também substancial. Esta terça-feira, responsáveis de ambos os governos prometeram regressar à cooperação económica ao longo de um ano.
Turquia e Rússia partilham um mercado de 25 mil milhões de dólares anuais que ambos querem retomar e fazer crescer. Os seus líderes partilham para além disso a imagem de chefes de Estado isolados: Erdogan pelo seu recente desvio autoritário; Putin pelas intervenções militares na Ucrânia e em nome do regime sírio. “Querem mostrar aos outros parceiros que não estão isolados, que têm opções e amigos não ocidentais com quem criar laços”, dizia do encontro desta terça-feira Vladimir Frolov, colunista no portal russo Slon.ru, citado pelo New York Times.
A conexão síria
Poucos acreditavam que esta terça-feira fosse dia de grandes compromissos. Mas as atenções voltavam-se na mesma para tudo o que os dois líderes dissessem sobre a guerra civil na Síria, onde se têm enfrentado indirectamente nos últimos cinco anos, a Turquia financiando e armando os rebeldes islamistas no Norte do país e a Rússia bombardeando-os. “Acredito que é possível encontrar uma abordagem comum, pelo menos porque queremos ambos que a crise acabe”, disse Vladimir Putin. “Usaremos isto como uma base para soluções comuns.”
Parece existir margem de manobra para isso. A Turquia quer reduzir o apoio de Moscovo aos grupos curdos instalados na sua fronteira, por onde também quer que passem menos refugiados sírios, algo que poderia conseguir-se com menos bombardeamentos russos em Alepo, onde por estes dias se travam alguns dos combates mais violentos em todo o conflito. Como moeda de troca, a Turquia pode cortar no seu próprio apoio aos rebeldes extremistas, impedindo a passagem de novos combatentes e armas que possam atingir a aviação russa.
O encontro desta terça-feira entre Putin e Erdogan pode ser uma indicação de novas convergências, mas o consenso é o de que Ancara está ainda muito longe de uma completa viragem para Leste. “A relação da Turquia com os seus aliados ocidentais criou laços económicos e estruturais que datam de há décadas”, argumenta Asli Aydintasbas no think-tank European Council on Foreign Relations. “Está demasiado entrelaçada nas economias ocidentais e na arquitectura transatlântica de segurança para uma inversão de marcha tão súbita.”
TPT com: AFP// SERGEI KARPUKHIN/REUTERS//Felix Ribeiro//Público// 10 de Agosto de 2016