O Governo venezualano restringiu o acesso à capital e montou apertado dispositivo de segurança, mas mesmo assim a oposição reclamou o sucesso da sua “tomada” da capital, com mais de um milhão de manifestantes a exigir a realização do referendo para afastar o Presidente.
A oposição ao regime chavista diz que foi a maior manifestação de sempre contra o Presidente Nicolás Maduro. Respondendo à convocatória da Mesa da Unidade Democrática (MUD) para a “tomada de Caracas”, pelo menos um milhão de pessoas marcharam pela capital do país para provar ao Governo – e às autoridades eleitorais que supervisionam o processo de convocação de um referendo para o afastamento do Presidente – que não deixarão as ruas enquanto não lhes for oferecida uma data para votar.
“A nossa marcha terminou em vitória e em paz, tal como nós garantimos, não como queria o Governo”, declarou Jesús Torrealba, secretário-geral da MUD, a coligação que reúne dezenas de partidos e movimentos anti-chavistas que agora domina a Assembleia Nacional da Venezuela e já foi reconhecida como a entidade promotora do chamado referendo revogatório do mandato de Nicolás Maduro.
Antes de declarar o sucesso da iniciativa, e de recomendar aos manifestantes para desmobilizar em segurança e com tranquilidade, o líder da MUD anunciou os próximos passos da “luta” para apressar o fim do Governo de Maduro. A mobilização prossegue no próximo dia 7, com concentrações à porta da sede e de todas as delegações do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), e uma semana depois, a 14 de Setembro, com novas iniciativas em todas as capitais (estaduais) do país, “logo depois de sermos informados das regras do referendo”, pressionou.
Esse é, agora, o principal motor da acção da oposição. A pressão será constante – mas “pacífica e democrática”, precisou Torrealba – até o CNE fixar a data para que se inicie a etapa final do processo referendário, que consiste na aprovação de uma nova petição que confirme a adesão do eleitorado à votação. São necessárias pelo menos 4 milhões de assinaturas válidas (correspondentes a 20% dos venezuelanos inscritos nos cadernos eleitorais) para que a consulta popular possa ser convocada. Será, estimou o secretário-geral da MUD, “a etapa definitiva para a mudança de regime na Venezuela”.
A posição da oposição saiu reforçada após a “tomada de Caracas”: indiferentes às barreiras militares e outros constrangimentos do regime, que montou um apertado dispositivo de segurança com a polícia e a Guarda Nacional, suspendeu a venda de bilhetes de transportes públicos e encerrou as estações de metropolitano do centro da capital, milhares de pessoas arriscaram a viagem até à capital, sem se deixarem impressionar pela ameaça do ex-presidente da Assembleia Nacional e número dois do chavismo, Diosdado Cabello. “Não nos provoquem. Não só vamos trancar Caracas para que ninguém entre, como vamos trancar Caracas para que ninguém saia”, lançou o vice-presidente do Partido Socialista Unido da Venezuela, levantando o espectro da violência que marcou os protestos de 2014 contra Maduro.
Como escreviam os repórteres estrangeiros, a MUD antecipou a reacção do Governo e preparou-se para garantir o acesso à capital. Transportes alternativos foram organizados para contrariar a ausência dos serviços colectivos.
As redes sociais serviram para informar os manifestantes das vias alternativas às estradas cortadas com barreiras da polícia – imagens publicadas pelos jornais venezuelanos mostravam as pistas das auto-estradas que conduziam às zonas de concentração de manifestantes, na zona leste de Caracas, totalmente tomadas por pessoas a pé, em direcção ao centro da cidade. “Ou saímos para marchar ou morremos de fome, o Governo já não nos assusta”, explicava à AFP Ana González, de 53 anos, que viajou 12 horas para protestar em Caracas.
“Aqui está a força da mudança, a ultrapassar barricadas e guaritas”, escreveu no Twitter o adversário eleitoral de Maduro e governador do estado de Miranda, Henrique Capriles, lamentando que o Governo tenha utilizado todos os meios à sua disposição para “sabotar uma acção pacífica e democrática”. “Pergunto-me onde estão estes agentes todos quando matam e roubam as pessoas”, criticou.
Os manifestantes foram também devidamente alertados para a necessidade imperiosa de manter a calma, não ceder a provocações e evitar exaltações. Em resultado, grande parte do caminho foi percorrido em silêncio, sem a repetição de palavras de ordem, apenas com a exibição de bandeiras venezuelanas e faixas com duas reivindicações simples: “Mudança” e “Revogatório”. “Tudo muito sóbrio”, escrevia o repórter do diário El País que acompanhava o protesto da oposição.
Apesar de terem sido reportadas algumas escaramuças entre manifestantes e autoridades, não houve registo de incidentes graves, violência ou detenções. A Guarda Nacional recorreu a disparos de gás lacrimogéneo para reprimir alguns manifestantes no bairro de Las Mercedes, escrevia o El Nacional, e alguns “colectivos” queimaram autocarros numa tentativa de impedir a viagem de manifestantes para a capital. Mas como resumia ao fim do dia a manchete do El Universal “oficialismo e oposição encheram as ruas em paz e com normalidade”.
Paralela à iniciativa da oposição, realizou-se uma manifestação de apoio ao Presidente Nicolás Maduro, que também reuniu milhares de pessoas vindas de vários pontos do país – em transportes que não tiveram problemas de acesso a Caracas. “Estamos aqui para responder ao nosso Presidente e defender a revolução”, explicava Carolina Aponte, de 37 anos. O regime não ofereceu um cálculo do tamanho do mar de gente vestida de vermelho que se concentrou na Avenida Bolívar, próximo do palácio presidencial, mas corrigiu a contabilidade da MUD, calculando que a marcha da oposição mobilizou entre 25 mil a 30 mil pessoas.
“A vitória é nossa: do povo, da paz e da revolução. Derrotamos uma intentona golpista que pretendia encher de violência as ruas de Caracas. Viva!”, festejou Maduro, que não deixou de enviar “uma saudação profundamente chavista de respeito, e um cumprimento fraterno a todos esses cidadãos que pensam diferente de nós”, mas também de avisar que nunca mais encherão as ruas do país.
O Presidente informou ainda que já tem pronto um novo decreto presidencial “para levantar a imunidade parlamentar” em todos os cargos públicos, uma protecção que explicou “foi feita para cumprir as leis e não para as violar”.
Venezuelanos em Portugal também participaram numa manifestação em Lisboa
Lisboa também mostrou solidariedade com a Tomada de Caracas. “É importante participar para o mundo entender o que está a acontecer e para as pessoas terem consciência de que isto afeta todos, que não é uma birra entre partidos políticos”, contou ao DN Desirée Picardi Pizani, antes do protesto que juntou cerca de cinco dezenas de pessoas na Avenida da Liberdade, junto à estátua de Simón Bolívar, o libertador da América. “Há um milhão e meio de portugueses que vivem lá e os que vieram para cá, pensando que podiam refugiar-se, não estão a receber as reformas.” Casada com um português, esta venezuelana está cá há cinco anos, mas já tinha vivido em Lisboa – a mãe foi diplomata no nosso país entre 1989 e 1992.
Desirée pertence à associação Venexos, que ajuda venezuelanos em Portugal e que há uns meses criou a iniciativa de enviar medicamentos em falta para a Venezuela. “As pessoas perguntam por que é que não há dinheiro para comprar medicamentos, tendo o país tanto petróleo, e não percebem o que está em causa”, contou. A Venexos organizou para amanhã outra manifestação, desta vez no Porto, às 15.00, frente ao consulado venezuelano.
O que é o referendo revogatório exigido pela oposição venezuelana?
Perguntas e respostas sobre o mecanismo que pode levar à saída de Maduro:
A Constituição venezuelana de 1999, aprovada no primeiro ano de Hugo Chávez na presidência, prevê que, a partir da metade do mandato de qualquer cargo eleito, possa ser convocado um referendo revogatório. Nicolás Maduro, eleito em 2013 após a morte de Chávez, atingiu a metade do mandato no final de abril.
Nessa altura, a oposição, que tinha conseguido a maioria absoluta na Assembleia nas eleições de 6 de dezembro, deu início ao processo.
Já passaram mais de quatro meses, em que ponto está o processo?
A oposição conseguiu passar a primeira parte do processo, tendo recolhido mais assinaturas do que aquelas de que precisava (1% dos eleitores, menos de 200 mil). Estas foram validadas pelo tribunal eleitoral, mas ainda não há luz verde para o próximo passo, que será a recolha, em três dias, da assinatura de 20% do eleitorado (quase quatro milhões). Estas terão de ser também validadas pelo tribunal e só depois poderá ser convocado o referendo. Neste, para afastar o presidente, a oposição tem de conseguir mais um voto do que os 7 587 579 com que Maduro foi eleito.
Qual é a razão do atraso nos procedimentos?
As autoridades eleitorais alegam que estão apenas a cumprir os prazos previstos na lei e que só no final de outubro deve começar a recolha das próximas assinaturas. Mas a oposição acusa as autoridades de atrasarem o processo de propósito, para impedir que o referendo revogatório possa ocorrer ainda neste ano.
Porque é que a oposição quer que o referendo ocorra ainda neste ano?
Se houver referendo até 10 de janeiro de 2017 e Maduro tiver o mandato revogado, será preciso convocar novas eleições. Contudo, se for só depois dessa data, quando ficam por cumprir dois anos do mandato de Maduro, assumirá o poder o vice-presidente, atualmente Aristóbulo Istúriz. Isso seria uma derrota para a oposição, porque implicaria a continuação do Partido Socialista Unido da Venezuela no poder.
TPT com: Carlos Garcia Rawlins//Reuters//Frederico Parra/AFP//El Universal//El Nacional//Rita Siza//Público//DN//Miguel Gutierrez//EPA//Nuno Fox// 2 de Setembro de 2016