Foi “um dia único”, como descreveu Marcelo Rebelo de Sousa esta segunda-feira, ao chegar ao edifício das Nações Unidas, em Nova Iorque, onde António Guterres se preparava para jurar a Carta da ONU. Um português ascendia ao topo do mundo, contra todas as probabilidades. O secretário-geral “designado”, que entrará em funções no início de janeiro, discursou pela primeira vez na Assembleia Geral das Nações Unidas, na qualidade de promotor da paz no mundo. Uma tarefa difícil. Na conferência de imprensa que se seguiu, o ex-primeiro-ministro português recordou que as guerras descritas nos livros de história que lia na juventude tinham sempre vencedores e vencidos. “Hoje as guerras não têm vencedores. Todos perdem”, disse Guterres. O mundo com que vai lidar é mais complexo, caótico e imprevisível.
A história não acabou e o mundo está mais imprevisível
O mundo melhorou nos últimos 20 anos em muitos dos indicadores sociais e de desenvolvimento tecnológico, mas tudo o resto mergulhou no caos: aprofundaram-se desigualdades, instalaram-se desconfianças e, sobretudo, criou-se um fosso entre representantes e representados. É este o retrato do mundo que António Guterres começou por fazer no discurso em que se dirigiu à Assembleia-geral das Nações Unidas. O secretário-geral indigitado não evitou falar de fenómenos políticos atuais — embora sem nomear o Brexit ou Donald Trump — como exemplos de consequências preocupantes do que aconteceu desde o fim da Guerra Fria.
Os últimos 20 anos viram um extraordinário progresso tecnológico, a economia global cresceu, os indicadores básicos sociais melhoraram, a proporção das pessoas a viverem em absoluta pobreza caiu dramaticamente. Mas a globalização e o progresso tecnológico também contribuíram para o aumento de desigualdades. Muita gente foi deixada para trás, mesmo nos países mais desenvolvidos, onde milhões de empregos desapareceram e os novos estão fora do alcance de muitas pessoas”.
Antes deste momento, Guterres tinha recordado o tempo em que tomou posse como primeiro-ministro de Portugal num “mundo cheio de otimismo” no final da Guerra Fria: “Alguns descreviam este momento como o fim da história (…) mas o fim da Guerra Fria não foi o fim da história. Pelo contrário, a história estava simplesmente congelada em alguns sítios“. E ela voltou quando “a ordem mundial derreteu”, disse Guterres, descrevendo o surgimento posterior de “contradições e tensões escondidas”, “novas guerras e falta de transparência”, “impunidade”, “imprevisibilidade”, “violações de direitos humanos”, “pessoas obrigadas a fugir das suas casas como não acontecia em décadas” e “terrorismo global”.
Acontecimentos que dominaram os últimos 20 anos e que, de acordo com a intervenção de Guterres, fizeram crescer a “instabilidade social, até a violência e o conflito. Um pouco por todo o lado, os eleitores não hesitaram em rejeitar o status quo e o que quer que os políticos levaram a referendo”, sublinhou o antigo alto-comissário da ONU para os refugiados. Mais tarde, na conferência de imprensa que se seguiu à intervenção, Guterres foi questionado, por duas vezes, sobre a postura que teria relativamente à nova administração dos EUA, chefiada por Donald Trump, mas nas respostas nunca saiu da linha pré-definida. Fará com Trump o mesmo que tenciona fazer com os outros líderes mundiais, ou seja, “dizer a verdade” (com que pretende “restaurar a confiança” entre instituições) e “estabelecer uma plataforma de cooperação baseada na vontade de reformar as Nações Unidas”.
Guterres optou por contornar um assunto sensível, e relativo a uma das maiores potências da ONU, mas na intervenção não deixou de manifestar preocupação com os “muitos” que “perderam confiança, não só nos seus governos, mas nas instituições internacionais, incluindo nas Nações Unidas”. Este novo quadro “aprofundou a divisão entre as pessoas e os políticos”, disse mesmo o secretário-geral indigitado sublinhando que “o medo está a conduzir as decisões de muitas pessoas no mundo”. Assim, neste campo, a prioridade de Guterres é “reconstruir as relações entre pessoas e os líderes nacionais e internacionais. É tempo para os líderes ouvirem e mostrarem que se preocupam com as pessoas, é tempo para a estabilidade global e a solidariedade de que todos dependemos. É tempo para as Nações Unidas identificarem falhas e reformarem a sua forma de atuar”.
Aqui, o primeiro ponto é melhorar uma das falhas que o novo secretário-geral identifica na comunidade internacional: “A incapacidade para prever crises”. Aliás, disse mesmo que a prevenção dos conflitos “não é um conceito novo”. Existe desde a fundação da ONU: “É o que os fundadores das Nações Unidas nos pediram para fazer e constitui o melhor meio de salvar vidas e aliviar o sofrimento humano”. Mencionando os mais graves conflitos mundiais, como “as crises agudas na Síria, Sudão Sul” ou as disputas de longa data “como o conflito israelo-palestiniano”, o secretário-geral designado afirmou que esses problemas “precisam de mediação, arbitragem e diplomacia criativa”. O próprio António Guterres garantiu que estaria empenhado nesses cenários, sem que os países envolvidos e com interesses nessas regiões pudessem desresponsabilizar-se: “Vou envolver-me pessoalmente através dos meus bons ofícios na resolução dos conflitos, mas constitui uma mais-valia reconhecer o papel primordial dos estados membros”.
A reforma da ONU: coordenar melhor as 38 entidades que lutam contra o terrorismo
O ex-primeiro-ministro português apontou três prioridades para a reforma que quer levar a cabo nas Nações Unidas: primeiro, “no trabalho a favor da paz”; segundo, no “apoio ao desenvolvimento sustentável”; terceiro, na “gestão interna” da organização.
As operações de paz, mereceram de Guterres um elogio, com uma referência aos “heróicos” elementos da ONU que colocam “em perigo as suas vidas” ao terem muitas vezes a “tarefa de manter uma paz que não existe”. No entanto, será preciso lançar as bases de “uma reforma urgente”:
Essa reforma deve incluir um exame do nosso trabalho no domínio da luta anti-terrorista, e um melhor mecanismo de coordenação entre as 38 entidades das Nações Unidas relacionadas com o tema”.
O futuro secretário-geral da ONU não passou por cima dos temas mais polémicos e embaraçosos para os capacetes azuis, como os abusos sexuais em países africanos, como na República Democrática do Congo. E foi duro nas palavras: “O sistema da ONU ainda não fez o suficiente para prevenir e responder a crimes de exploração sexual cometidos sob a bandeira das Nações Unidas sobre aqueles que supostamente devíamos proteger”.
No que parecia ser uma crítica ao antecessor (não era), Guterres disse que seria severo em relação a novos casos do mesmo tipo. Prometeu “tolerância zero” e a criação de “estruturas e legais e medidas operacionais” para que não se repetissem casos semelhantes, medidas pelas quais Ban-Ki Moon “combateu arduamente para serem uma realidade”. Objetivo: “Oferecer transparência, reponsabilização, proteção e compensações efetivas às vítimas”.
A “responsabilização” foi uma palavra muito repetida por António Guterres para se referir às estrutura. “Uma forte cultura de responsabilização, precisa de mecanismos de avaliação independentes e efetivos”, afirmou. A estrutura é tão pesada, que o novo secretário-geral foi aplaudido quando pediu mais “eficácia” e “menos burocracia” para a organização estar “mais focada nas pessoas” do que “nos processos”. E deu um exemplo: “Ninguém beneficia se demorarmos nove meses a destacar um membro do staff para o terreno”. Garantiu uma “cultura de responsabilidade” e de transparência e pediu “proteção efetiva para os whistleblowers” — a pessoas que denunciam os casos mais complicados.
As mulheres os jovens e um regresso às origens
Sobre o discurso de Guterres paira uma ideia que soa a contraditória em si mesma: é preciso mudar, voltando à raiz. Mudar porque o mundo que se defendia há 70 anos e o mundo a em que nos movemos estão desfasados. Por isso, é preciso voltar à raiz para fazer diferente daquilo que nos trouxe aqui.
É preciso, desde logo, prestar atenção aos jovens, esse “vazio” universal no trabalho das Nações Unidas e que explica, em grande medida, a distância entre os eleitos e os povos que os elegeram.
Durante demasiado tempo, os jovens viram-se excluídos da tomada de decisões que afetam o seu futuro”.
Tal como é preciso dar às mulheres um papel igual ao dos homens – nas imagens do juramento da Carta das Nações Unidas, entre os 15 homens que aplaudem Guterres no palco apenas se vislumbra um rosto feminino –, também é preciso “dar mais poder aos jovens e aumentar a sua participação na sociedade e o se acesso à educação, formação e emprego”. Porque se houver um futuro melhor para despontar amanhã, ele terá de ser construído pelos mais novos.
Elevar o papel das mulheres é a outra missão. O objetivo da ONU era alcançar a paridade entre homens e mulheres no ano 2000. Mas, “16 anos depois, estamos longe desse objetivo”, sublinhou Guterres. “Precisamos de um mapa claro com objetivos e com um calendário que nos permita alcançar a paridade por todo o sistema muito antes do objetivo de 2030” e o próximo secretário-geral – que venceu uma eleição onde a paridade era ponto de honra no início da corrida – jurou batalhar para que esse princípio embelezador de discursos passe da teoria à prática.
Guterres também se preparou para um mandato pela Paz. E isso obriga a um regresso às origens de uma organização que nasceu das trevas da II Guerra Mundial sustentada, além da paz entre os povos, também nos valores da tolerância, solidariedade, justiça, respeito e Direitos Humanos. É essa a carta de princípios orientadora do mandato de António Guterres para os próximos dez anos.
Só que o próximo secretário-geral sabe que esse caminho não se faz sozinho. Mesmo quando “sozinho” significa liderar uma instituição em que têm assento representantes de 193 países.
Eu sei que o secretário-geral não é o líder do mundo”, reconheceu Guterres na conferência de imprensa que deu a seguir ao seu juramento.
Guterres sabe que não pode tudo. Sem a vontade dos líderes políticos, Guterres não pode mesmo nada. “O papel do secretário-geral”, reconhece, “é para ser visto com um valor acrescentado” e um “apoio” a quem tem, de facto, poder na resolução dos conflitos: os líderes políticos de cada Estado.
“Acabar com esses conflitos” que saltaram fronteiras e que representam hoje uma ameaça global – terrorismo é o termo que melhor sintetiza essa realidade – obriga as Nações Unidas a contar com os outros. Porque “vivemos num mundo complexo” e porque “as Nações Unidas não conseguirão ter sucesso sozinhas”. É por isso que “as parcerias devem manter-se no centro” da estratégia da organização, para que se possa de novo acreditar que é possível alcançar essa ideia tão cliché, mas ao mesmo tempo tão atual: a paz.
Os seis trabalhos de Hércules que esperam por Guterres na ONU
Se fosse um país, António Guterres era como a Suíça: pragmático, diplomático, não-alinhado e reputado por ouvir as opiniões de toda a gente. “Talvez seja mais conhecido onde faz falta: nas linhas da frente dos conflitos armados e das maiores crises humanitárias mundiais”. Foi assim que Ban Ki-moon descreveu o homem que lhe vai suceder à frente das Nações Unidas, mas que até ter chegado à liderança do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), não fazia parte da constelação política mundial.
Distância do poder e proximidade às pessoas parece uma formulação simplista, mas poderá ser esta moderação que todos lhe reconhecem a criar um espaço de manobra para que António Guterres possa tentar resolver alguns dos conflitos que afetam o planeta. Foi eleito por unanimidade pelo mesmo Conselho de Segurança que, em outras considerações, se tem revelado uma engrenagem empedernida em velhos posicionamentos.
Será difícil reproduzir o mesmo entendimento em questões essenciais como o conflito na Síria, no qual os Estados Unidos e a Rússia não têm os mesmos objetivos nem forma de atuar. Desde os tempos da Guerra Fria que o fosso não estava tão visível: além das atrocidades cometidas na Síria, pelas quais as duas potências se culpam mutuamente, a CIA disse esta semana que piratas informáticos russos interferiram na contagem dos votos nas eleições presidenciais norte-americanas para favorecer Donald Trump.
Como lidar com o imprevisível Donald Trump?
“O desafio mais difícil será talvez a falta de previsibilidade das relações internacionais nos próximos anos, agora que Trump foi eleito. O balanço de poderes tem implicações, por exemplo, na resolução da guerra na Síria ou no peso e papel da NATO. As Nações Unidas não parecem ser a prioridade de Donald Trump”, diz ao Observador Inês Sofia de Oliveira, investigadora sénior do RUSI, um centro de análise geopolítica com sede em Londres.
Desde que soubemos da eleição de Guterres, uma peça essencial do puzzle mudou: Donald Trump é o Presidente-eleito dos Estados Unidos da América, um homem virado para dentro à frente de um país com uma influência enorme cá fora. Durante a campanha, Trump manifestou-se várias vezes contra o peso que a ajuda internacional e o financiamento da NATO têm no orçamento dos Estados Unidos e muitas vezes negou a visão do seu país como “polícia do mundo”.
“Conjugam-se aqui duas realidades perigosas”, diz Inês Sofia de Oliveira. “Primeiro, o processo de desresponsabilização dos Estados Unidos que, tendo em conta o que Donald Trump disse durante a sua campanha, afastando-se dos assuntos internacionais, se poderá iniciar em breve. Há tratados internacionais, dos quais os Acordos de Paris é o mais óbvio, que ainda não sabemos como serão implementados. Do outro lado há uma Rússia que não respeita o direito internacional, que acabou de se retirar do Tribunal Internacional de Justiça”, acrescenta a investigadora.
Há, porém, quem veja Trump com um pragmático, como é o caso de Andrê Corrêa d’Almeida, professor na School of International and Public Relations da Columbia University. Será alguém que, como António Guterres, dá mais importância à resolução de problemas do que à camisa de forças ideológica que atrofiou a geopolítica mundial durante quarenta anos de Guerra Fria.
“Há um conjunto de circunstâncias que se alinham para Guterres: é um político experimentando e, ao mesmo tempo, um pragmático e o pragmatismo é tudo. Pode haver possibilidade de sintonia com Donald Trump”, diz André Corrêa d’Almeida ao Observador. “Eu sei que esta posição é controversa, mas pode haver sintonia”.
“Trump tem sido inteligente, na minha opinião, na forma como está a tentar desdramatizar as relações com a Rússia, até a fomentar o respeito por Putin”, diz o professor da Columbia University. “António Guterres pode e deve utilizar este pragmatismo. A normalização das relações China-Rússia-Estados Unidos é a chave para tudo e Guterres, um homem tido por todos como imparcial e equidistante, poderá colocar estas potências em diálogo”, diz o investigador.
Na opinião de Corrêa d’Almeida, “as três potências são fundamentais tanto para o cumprimento dos objetivos ambientais, como para o financiamento dos órgãos da ONU, e para a resolução de alguns conflitos armados”.
Otimismo na Síria apesar da catástrofe humanitária
Apesar de existirem dezenas de focos de conflitos no mundo, a guerra na Síria tem prendido a atenção dos meios de comunicação; talvez pela violência das imagens, talvez por durar há uma incompreensível meia década, talvez pela intransigência demonstrada pelos intervenientes que poderiam colocar um ponto final nas mortes e abrir um corredor de ajuda humanitária, nem que fosse acordando momentaneamente um cessar fogo, e não o fazem.
Já não há hospitais em Alepo, a comida está permanentemente em vias de se esgotar, as pessoas estão sitiadas na sua própria cidade. As estimativas mais conservadoras, do Observatório Sírio para os Direitos Humanos, falam em 400 mil mortos. A ONU diz que há pelo menos 13,5 milhões de sírios que necessitam de ajuda humanitária urgente, seis milhões são refugiados internos e 4,8 milhões já terão sido acolhidos por outros países, um dos quais a Turquia, aquele que mais sírios tem recebido — mais de 2,7 milhões.
“A resolução do problema na Síria cai neste campo de fomento das relações entre as grandes potências. Guterres tem que utilizar o que tem de melhor: o caráter de mediador e negociador para construir pontes. Estou confiante que ele vai conseguir coisas muito importantes”, diz André Corrêa d’ Almeida.
Para o professor português, Guterres poderá mais “facilmente” alcançar algum sucesso na Síria do que, por exemplo, na resolução do conflito israelo-árabe: “O caso da Síria é chocante mas é, mesmo assim, mais fácil de resolver do que aqueles conflitos nos quais as forças que os alimentam são endógenas como é o caso do conflito israelo-árabe. Esse sim, é um conflito sobre o qual Guterres necessariamente se pronunciará mas que é extremamente difícil de resolver em dez anos. Na Síria não: existem forças exteriores que são membros da comunidade internacional e que poderão ser ‘movimentadas’ por fora”.
O problema dos outros refugiados
Nunca existirem tantos refugiados no mundo. É esta a conclusão expressa nas primeiras linhas do relatório da ONU sobre este desafio, que será um dos mais importantes de António Guterres. São 65,3 milhões de pessoas.
Quando Guterres chegou ao ACNUR eram metade e isso tem-lhe valido algumas das poucas críticas que lhe fizeram. Se formassem um país, seria o 24º mais populoso do mundo.
“A maior crise do nosso tempo é mesmo a questão dos refugiados”, diz Bill Frelick, diretor do Programa de Apoio a Refugiados da Human Rights Watch, ao telefone com o Observador a partir de Washington. “Não falo apenas dos que chegam à Europa, empurrados para fora das suas cidades pelos conflitos armados, mas também daqueles que estão há décadas em países onde não são bem-vindos”. O norte-americano refere que o caso dos refugiados afegãos no Paquistão “é terrível” e “há 400 mil pessoas a serem expulsas de onde sempre viveram”.
Exemplos como o dos afegãos no Paquistão multiplicam-se. “Este é apenas um dos cenários”, descreve Frelick. “Há campos de refugiados gigantescos na Jordânia, no Líbano, na Turquia, no Quénia e está cada vez mais difícil de os justificar, política e economicamente”, diz o responsável da ONG.
Alertando para a incerteza que domina o jogo geopolítico, Bill Frelick diz que “António Guterres tem que estar preparado para, eventualmente, a meio do caminho, ter que lidar com um corte de financiamento por exemplo por parte dos Estados Unidos, um dos mais importantes contribuintes, uma vez que não sabemos onde Trump irá cortar”.
Frelick já esteve com Guterres em diversos cenários de emergência e acredita que ele quer mesmo mudar as coisas: “Está a par das dificuldades dos refugiados como ninguém. Está preparado para construir pontes e não chegou aqui vindo da academia.Ele tem a parte política também, de gestão de gastos, de recursos, experiência de mediação. Ele entende as exigências e as pressões políticas a que muitos chefes de Estado estão sujeitos”.
Frelick fala também da importância de mudarmos de discurso sobre os refugiados, outra área que vai ao encontro daquilo que Guterres já disse querer fazer: prevenir e educar. “Espero que Guterres consiga colocar os olhos dos governantes na direção do investimento privado nos refugiados, que reconheçam as pessoas pelas suas qualidades, não apenas como um peso nas contas do estado”. Cita o exemplo dos iogurtes Chobani, um negócio indicado por Hamdi Ulukaya, um refugiados turco nos Estados Unidos que hoje emprega outros refugiados.
“O grande desafio de Guterres será lutar contra os possíveis cortes na ajuda internacional e lutar contra a mentalidade de construir paredes que se está a apoderar da Europa. Preocupa-me, e a ele creio que também, que as nossas sociedades estejam e caminhar para uma era onde os valores universais estão a sucumbir ao individualismo”, concluiu Frelick.
Agilizar um organismo pesado e polémico
Capacetes azuis no Congo, onde há investigações por abusos sexuais e onde a ONU foi acusada de não conseguir prevenir massacres.
Além da acusação de imobilismo na questão da Síria, e da inoperância em relação à anexação da Crimeia pela Rússia, o organismo tem sido acusado de negligência na atuação de soldados em missões de paz: o primeiro escândalo foi o dos 69 capacetes azuis, acusados de abuso sexual na República Centro-Africana e na República Democrática do Congo. Em agosto, após anos de pedidos de esclarecimentos, a ONU admitiu finalmente ter sido responsável por espalhar uma epidemia de cólera no Haiti, para onde enviou ajuda após o terrível terramoto de 2010.
A ONU é também acusada de ser um organismo demasiado pesado para a ginástica que lhe é exigida. A teoria é que se a estrutura encolhesse talvez se conseguissem libertar mais fundos para o que realmente importa. Também aqui António Guterres tem provas dadas, segundo André Corrêa d’Almeida: “À frente do Alto Comissariado para os Refugiados, Guterres baixou os custos com pessoal de 41% para 22% do orçamento. Além disso, reduziu de 13,7% para 6,5% o custo de manutenção da sede do ACNUR nos custos totais de gestão da ONU. Aumentou o número de parcerias com outras Organizações Não-Governamentais e Governos e a taxa de implementação dos programas de auxílio que desenvolveu está muito perto dos 90% por cento, raro para programas de ajuda humanitária”.
Inês Sofia de Oliveira foca a questão da paridade como uma das mudanças prioritárias: “Quanto à reestruturação interna da ONU, Guterres terá que se esforçar por incluir mais pessoas de nacionalidades diferentes e também mais mulheres. Não se lhe podem exigir impossíveis, a reformulação interna no Conselho de Segurança por exemplo é impossível”.
Regras mais apertadas na admissão de pessoal, para que o protecionismo e a influência dos países mais poderosos — já tão pesados na estrutura da organização — não se traduza em nepotismo, é também um objetivo referido pelos vários analistas.
A escalada da Rússia e a segurança da Europa
Também aqui a sua ação está “limitada” ao diálogo apesar de ninguém negar a capacidade que António Guterres possui em construir consensos em lugares onde antes existia só crispação.
Em 2014, a Crimeia foi anexada pela Rússia e o presidente russo Vladimir Putin tem apoiado os separatistas no Leste do país. O problema é que a Rússia não pare na Ucrânia. Se a NATO mostrar fraqueza, Putin pode continuar a movimentar-se para mais perto de países bálticos. André Corrêa d’Almeida lembra um recente viagem de Guterres que considera simbólica:
“Guterres visitou o Cazaquistão há 15 dias. É a maior prova de que está a tentar juntar à mesa não só o mundo árabe com também os russos”.
Num artigo para o Huffington Post, o académico explica melhor o potencial papel daquele país como plataforma entre a Europa, a Rússia e o mundo árabe: “A conceção que se tem do Cazaquistão é míope: inacessível, periférico, deserto, suspeito de ligações ao regime soviético, são tudo ideias que impedem o país de assumir um papel mais importante nas relações internacionais e são todas discutíveis”.
André Corrêa d´Almeida considera que “não há um risco de esvaziamento do poder do ocidente mas há um risco de esvaziamento do peso da Europa pela sua fragmentação. Não quer dizer que aconteça, mas há correntes antigas que estão de novo a ganhar força e também é por isso que é importante sentar todos os atores à mesa, incluindo os russos e os chineses”.
A temperatura aumenta: as alterações climáticas
A situação acima descrita assusta, mas se pensarmos que, em 2050, poderemos estar a somar ao atual número de refugiados mais 200 milhões de pessoas desalojadas por culpa das alterações climáticas, entendemos porque é que o aquecimento do planeta tem sido uma preocupação central de António Guterres durante o seu tempo à frente do ACNUR.
É o assunto que mais ramificações futuras pode ter, se não for combatido. Um dos mais sérios alertas chega de James Hansen, cientista climático na NASA que, no seu último estudo, comparou a taxa de aquecimento atual (0,2 graus por década) com aquela que se verificou no período Eemiano, uma era interglacial que terminou há 115 mil anos, quando o nível da água do mar estava nove metros acima do que está hoje — suficiente para colocar, por exemplo, todos os prédios da Rua Augusta debaixo de água.
Académicos da área revelam-se bastante confiantes na escolha de Guterres, não só pelas suas intervenções públicas, mas também pelo tempo que passou junto de populações que sofreram diretamente com as alterações climáticas como é o caso do Darfur.
Num relatório publicado pela divisão de Estudos Ambientais e de Segurança do Wilson Institute, Ruth Greenspan Bell e Sherri Goodman, dizem que “os maiores desafios de António Guterres são a crise de refugiados e a escassez de água que é a linha da frente das alterações climáticas. O incrível número de pessoas desalojadas mostra-nos como as alterações climáticas podem gerar conflitos, exacerbar os que já existem e ajudar na emergência de grupos radicais”, escrevem no relatório.
O estudo refere também que, apesar da sua experiência “no campo”, Guterres terá que pedir ajuda: “A ONU sozinha não será suficiente para desacelerar o aquecimento global. É preciso uma colaboração mais estreita entre setores público e privado. Não é trabalho para um único governo, nem apenas para o governo”, alertam os académicos.
Também aqui há razões para otimismo moderado. Não só Guterres cita a urgência da implementação dos Acordos de Paris na Carta de Intenções [pdf do original em inglês] que entregou quando se candidatou à posição de secretário-geral, como reconhece a necessidade de procurar parcerias com empresas e outras organizações que já estejam presentes nos cenários onde a ONU pode intervir.
Em novembro de 2011, Guterres apresentou um estudo no Conselho de Segurança – “Novos Desafios para a Paz Internacional e Prevenção de Conflitos” – que fica na memória como uma das suas mais apaixonadas intervenções pela defesa da proteção ambiental. “A luta contra as alterações climáticas é o desafio que define o nosso tempo.Um desafio que interage com e reforça outras correntes preocupantes como o crescimento populacional, urbanização, e a falta de segurança alimentar, energética e hídrica. É um problema que aumenta o número de refugiados e que tem implicações importantes na manutenção da paz e segurança internacionais”, disse Guterres chamando ainda à atenção para os potenciais conflitos que se podem gerar quando eles têm que competir por recursos como a água e terra arável.
Numa época em que o medo parece ser o farol que guia as decisões políticas do mundo ocidental, a investigadora diz que “o maior desafio talvez seja esse de procurar o equilíbrio entre questões de segurança e questões humanitárias. Há uma pressão junto dos políticos para que se foquem mais na segurança. Na Guerra Fria, os blocos estavam mais ou menos definidos, havia a cola da ideologia, hoje mais facilmente dizemos que ‘não queremos cá aquela pessoa’, porque o perigo se pulverizou”. António Guterres vai estar a partir desta segunda-feira no topo de um mundo onde a única certeza é o conjunto das incertezas.
Guterres, o homem certo num lugar incerto
Este é o trabalho mais impossível do Mundo, disse o primeiro secretário-geral da ONU, o norueguês Trygve Lie. Talvez, mas só talvez, possa Guterres tirar à palavra impossível o morfema gramatical “im”.
Não tem quase poder, senão o poder da influência a conquistar pela palavra.
Mas foi assim que António Guterres fez a maior parte da sua carreira política e internacional, falando, expondo, convencendo, persuadindo. Negociando.
Nas Nações Unidas, houve vários tipos de secretários-gerais:
Os dinâmicos e interventivos, dados a iniciativas independentes e até fora das previsões da Carta das Nações Unidas, como foi Dag Hammarskjold; os politicamente comprometidos, como terá sido U Thant, alinhado com as questões do desenvolvimento e em confronto com os grandes poderes ocidentais; os activos e reformistas, incluindo do funcionamento da organização, como Koffi Annan, crítico da intervenção americana no Iraque, prémio Nobel da Paz em 2001; os passivos e contemporizadores, dados à discrição, como o actual Ban Ki-Moon, a quem Guterres vai suceder.
Que lições a tirar, pelo secretário-geral português, das experiências dos seus ilustres antecessores? Talvez se resumam em três pontos-chave:
- Sendo o poder da palavra o mais importante, é pela palavra, e por uma palavra assertiva e clara, que o secretário-geral da ONU pode conquistar o poder da influência sobre um Mundo crescentemente instável e perigoso.
- O peso da “máquina” da organização interna é um problema persistente e que nenhum secretário-geral pode ignorar, sob pena de, para usar um coloquialismo comum, ser “engolido” por ela.
- Não é possível enfrentar os poderes do Mundo a partir da cadeira de Nova Iorque, ou pelo menos todos ao mesmo tempo, ou quiçá mais do que um de cada vez, sob pena de se ser por eles esmagado, mas também de pouco serve um secretário-geral amorfo e inactivo (ou melhor, serve para alimentar as vozes daqueles que consideram a ONU inútil).
António Guterres, o português – e quantas vezes estas palavras vão estar associadas no próximo-futuro, para nosso orgulho e contentamento -, conhecerá melhor do que ninguém esta trilogia. A sua experiência ao serviço da ONU preparou-o para as funções que agora vai exercer, a sua preparação para vencer as cinco rondas da competição ao cargo demonstrou sobretudo o profundo conhecimento sobre o que é preciso fazer como titular do cargo e sobrelevou apriorismos poderosos sobre quem devia ser… o titular do cargo.
É frágil o escasso poder do homem que depende do tesouro alheio para financiar as suas iniciativas e está preso numa teia impiedosa constituída por cinco poderes armados de veto, que o podem impedir de fazer seja o que for. É frágil e a um tempo imenso, o extraordinário poder do homem que, do 38º andar do edifício sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, vai ter uma visibilidade planetária, sabendo que as suas palavras e actos serão escrutinados profunda e permanentemente; do homem cujo rosto será o rosto do Mundo durante os próximos 5 anos, pelo menos.
São grandes as expectativas sobre a prestação de António Guterres, o português. Espera-se que ele reforme as Nações Unidas, como em certa medida fez como Alto-comissário para os refugiados no sector que chefiou durante dez anos. Espera-se que traga de novo prestígio e credibilidade à organização, abalada por décadas de impotência, braços de ferro com as potências do Conselho de Segurança e dramas e crises relativas aos Secretários-gerais, como Kurt Waldheim, Boutros Ghali (cujo segundo mandato foi vetado pelos EUA) e o próprio Koffi Annan, envolvido em controvérsia no final do seu mandato. Espera-se que esteja à altura do prestígio que o cargo ainda tem, como líder e porta-voz de uma organização que venceu o Nobel em 2001 (conjuntamente com o seu secretário-geral) e que tem como objectivos manter a paz internacional, estabelecer relações amistosas entre as nações com base no princípio da autodeterminação, estimular a cooperação para resolver os grandes problemas internacionais e ser um pólo congregador do esforço dos Estados em busca dos seus objectivos.
Espera-se de Guterres, no cumprimento desses objectivos, que contribua para a solução dos grandes problemas internacionais. E que problemas são! A lista é imponente:
Crise dos refugiados; guerras e conflitos em regiões como o Médio-Oriente e África sub-sahariana; ameaça do Daesh e de outros grupos radicais islâmicos; crescente desigualdade no Mundo, entre os que mais possuem e os que pouco têm; o concomitante aumento da exclusão; aquecimento global e tantos outros. Entre estes, os outros, os menores não serão decerto os relacionados com as novas tendências políticas em tantos países do Ocidente, a começar pelos Estados Unidos, onde cresce a onda do populismo e dos nacionalismos exacerbados e, com eles, a tentação do proteccionismo, dos muros, da exclusão do Outro.
Guterres sabe que conta com um Mundo mais avesso a soluções globais para os problemas comuns, de que a ONU é o mais óbvio e natural dos paradigmas. Mais do que nunca, mais do que boa parte dos seus predecessores, é pela palavra, com o poder que advém da sua autoridade moral e magistério de influência, mas também pela negociação e com uma habilidade que os portugueses bem lhe conhecem para negociar consensos e aproximar extremos, que o novo secretário-geral da ONU pode ter sucesso.
Que as esperanças da comunidade internacional podem ser confirmadas.
Que os pobres e desvalidos do Mundo podem receber alívio.
Quando se apresentou como candidato ao cargo que vai ocupar em Janeiro, António Guterres, o português, disse ao que vinha: “Estamos a gastar 70% dos nossos recursos em operações de manutenção de paz onde não há paz para manter. Face aos impactos das mudanças climáticas, dos problemas causados pela desigualdade e falta de inclusão, prevenir, focando nos pilares da actividade da ONU de uma forma holística, é claramente a minha prioridade pessoal”.
Prevenir: é com base nessa ideia, tendo em conta os objectivos e os princípios da Carta das Nações Unidas, que António Guterres, o português, se pode revelar um Homem do Mundo e para o Mundo. Uma excelente notícia para as Nações Unidas e para que as nações possam estar (mais) unidas do que nunca.
Este é o trabalho mais impossível do Mundo, disse há décadas o primeiro secretário-geral da ONU, o norueguês Trygve Lie. Talvez, mas só talvez, a pessoa que vai ocupar o lugar em Janeiro de 2017 seja a indicada para retirar da palavra impossível o morfema gramatical “im”: António Guterres, o português secretário-geral da ONU.
TPT com: AFP// Textos de Rita Tavares, Pedro Rainho e Vítor Matos//Ana França//Observador//Paulo de Almeida Sande//Observador// 12 de Dezembro de 2016