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O muito querido fruto de uma gravidez não desejada, hostilizada e criticada

Quem ouve os comunistas é levado a crer que são eles os grandes obreiros da Constituição, quando ela é o resultado de uma Assembleia cujo papel o PCP menosprezou e cuja existência então questionou.

 

 

Desde 1976 o PCP tem sido um dos principais defensores da Constituição. Esta defesa tem sido particularmente notada durante processos de revisão constitucional e nos momentos em que se fazem balanços.

 

 

Quem nestas ocasiões ouve os comunistas é levado a crer que são eles os grandes obreiros da Constituição e que é a este partido que devemos a “mais progressista” lei fundamental.

 

 

Acontece que antes e durante a sua concepção, várias foram as tentativas levadas a cabo pelos comunistas portugueses para colocarem em causa o processo que, como avisadamente temiam, colocaria em causa o monopólio da legitimidade revolucionária e daria espaço, ainda que pequeno, à legitimidade eleitoral.

 

 

A primeira tentativa para desvirtuar o verdadeiro significado das eleições para a Assembleia Constituinte passou pela defesa da ideia da participação directa de representantes do MFA na Assembleia. O PCP, os partidos da extrema-esquerda e importantes sectores do MFA defendiam, no final de 1974, que aos militares deveriam ficar reservados entre 10% a 20% dos lugares a ocupar pelos constituintes.

 

 

É como resposta a este desejo, que os partidos à direita do PCP defendem a institucionalização do MFA. Esta era uma alternativa que, impedindo a participação directa do MFA na Assembleia Constituinte, garantiria a realização de eleições e a aplicação do Programa do MFA, através da celebração de um acordo prévio entre os militares e os partidos políticos.

 

 
Conseguida a ausência de constituintes fardados em S. Bento, o 11 de Março veio colocar novamente em causa a realização das eleições agendadas para o mês seguinte. Procurando não dar qualquer argumento àqueles que defendiam o adiamento ou mesmo o cancelamento das eleições, os partidos moderados aceitaram todas as alterações apresentadas pelo MFA no âmbito das negociações para a celebração do acordo que as viabilizaria.

 

 

O MFA já não queria apenas garantir a sua institucionalização e modelar o desenho da futura orgânica constitucional, mas passara a defender “a continuação da revolução política, económica e social iniciada em 25 de Abril de 1974”.

 

 

Caso os eleitores não reconhecessem em qualquer um dos partidos que se apresentava às eleições capacidade para empreender tal tarefa, elementos do MFA e mesmo do organismo encarregue de conduzir o processo eleitoral, a CNE, defendiam que o voto em branco tinha “sentido patriótico e significado revolucionário”.

 

 
Já o secretário-geral do PCP esclarecia que as eleições não iriam decidir tudo, que eram apenas uma “experiência”, que visava eleger uma Assembleia exclusivamente eleita para elaborar uma Constituição e que estas nada tinham a ver com a formação e a política do governo.

 

 

 

Apesar destas vicissitudes as eleições realizaram-se e nem os apelos ao voto em branco ensombraram a vitória dos partidos moderados. Duas semanas depois do acto eleitoral, Vasco Gonçalves defendia no Conselho da Revolução que as eleições não tinham favorecido o processo revolucionário.

 

Ainda nesse mês de Maio, também no Conselho da Revolução, Álvaro Cunhal, defendia que a dinâmica eleitoral estava a travar o processo revolucionário e a conduzir o país para um rumo que não era o que estava traçado.

 

 

 

Na mesma ocasião, o líder comunista questionou a continuidade da actividade da Assembleia Constituinte, uma vez que esta tinha sido eleita com base no Pacto MFA/Partidos, acordo esse que, em seu entender, estava a ser colocado em causa pelo PS com o anúncio da suspensão das actividades dos seus representantes no governo.

 

 

Cunhal voltou ainda a criticar a ausência de representantes do MFA na Assembleia Constituinte e sublinhou a necessidade de se evitar que o processo eleitoral contrariasse o processo revolucionário.

 

 

 

Paralelamente, em público, proclamava que em grande parte do território não se tinham verificado “condições de real liberdade” e que por isso a votação não podia ser interpretada “como uma manifestação livre da vontade popular à escala de todo o país”.

 

 

Nas semanas seguintes multiplicaram-se as acções a favor da formação imediata de um governo revolucionário e da dissolução da Constituinte. É neste período que dos meios militares brotam vários documentos programáticos onde se defende uma nova vaga revolucionária baseada em modelos de democracia directa:

 

o MFA divulga o Plano de Acção Política (PAP), que relegava para uma posição secundária a Assembleia Constituinte; Vasco Gonçalves apresenta outro onde se defendia a construção de uma via socialista apoiada por uma vanguarda política; e o Gabinete de Dinamização do Exército elabora um terceiro, denominado Documento-Guia de Aliança Povo-MFA que, ignorando completamente a recém-empossada Assembleia Constituinte, apresentava um conjunto de acções que tinha como objectivo final a instauração do poder popular, através do desmantelamento do aparelho de Estado e da criação de uma nova estrutura de poder, constituída na sua base por comissões de moradores e de trabalhadores e que teria no seu vértice a “Assembleia Popular Nacional”.

 

 

Este documento estipulava ainda que a partir do nível municipal, o MFA disporia de uma participação directa, através de representantes das Assembleias de Unidades dos três ramos das Forças Armadas.

 

 

 

Ao contrário dos partidos à sua direita, que não esconderam a sua oposição a estes documentos e projectos, o PCP, pela voz do seu secretário-geral em declarações ao jornal cubano Granma, admitia a possibilidade de uma intervenção dos militares “na aliança com o povo”, se fosse provado que em Portugal era impraticável uma coligação governamental, defendendo que “governo militar não significa necessariamente ditadura” e que os laços entre o “povo” e o MFA podiam “perfeitamente existir fora dos partidos políticos – através de organizações de trabalhadores ou de organizações e assembleias distritais”.

 

 
Dias mais tarde, na célebre entrevista a Oriana Falacci, Cunhal afirmaria que em Portugal a opção passava pela escolha de um “forte governo reaccionário ou uma forte democracia comunista”, já que em seu entender as eleições não tinham “qualquer importância”, não se podendo reduzir a questão “a percentagens de votos recebidos por um partido ou outro”.

 

 
E esclarecia: “se pensa que o Partido Socialista com os seus 40%, e o Partido Popular Democrático com os seus 27%, compõem a maioria, está a cometer um erro. Eles não têm a maioria”. No mesmo tom, o líder comunista afirmou: “A Assembleia Constituinte não será um órgão legislativo e certamente não será uma Câmara de deputados”.

 

 

 

Perante a aprovação pela Assembleia do MFA do Documento-Guia, e goradas as tentativas de afastamento de Vasco Gonçalves da liderança do governo promovidas pelo grupo de oficiais do MFA que se opunham ao modelo preconizado pelo Primeiro-ministro, os socialistas abandonaram o governo, sendo pouco depois seguidos pelos populares democratas.

 

 

É a partir desse momento que ambos os partidos passam a empenhar-se na realização de grandes manifestações contra o executivo, designadas por Álvaro Cunhal como marchas contra-revolucionárias.

 

 

Estavam reunidas as condições para uma aproximação entre os civis e os militares que se opunham aos esquemas de democracia directa assentes numa estrutura piramidal de assembleias mistas e votações de braço no ar.

 

 
É neste contexto que se dá o cerco à Constituinte, que com a introdução dos debates antes da ordem do dia tinha ganho no panorama político e mediático uma centralidade não desejada pelos adeptos da via revolucionária. Apresentado hoje por alguns como um mero protesto sindical, o cerco e sequestro dos deputados foi antes o reflexo de um confronto entre dois modelos distintos de organização política.

 

 

 

Deixando à extrema-esquerda o ónus do malogrado golpe de 25 de Novembro, os comunistas passaram a defender a Constituição que instituiu o regime representativo e pluralista que resultara de uma Assembleia cujo papel tinham menosprezado e cuja existência tinham questionado.

 

 

 
Aquela que é hoje descrita e apresentada como filha predilecta é pois o fruto de uma gravidez não desejada, hostilizada e criticada.

 

 

 
David Castaño

 

 

06/05/2015

 

 

 

 

Tudo como a mãe!

A exploração das mulheres trabalhadoras é uma realidade nos ambientes laborais em que a maternidade é encarada com hostilidade pelas entidades patronais.

 

 

À mesa estavam os três filhos adolescentes quando o pai os interrogou sobre os seus planos profissionais. Enquanto os rapazes se decidiram pelas profissões habituais naquelas idades – futebolista, astronauta, bombeiro, etc. – a única rapariga remeteu-se a um enigmático silêncio. Inquirida por segunda vez, a muito custo respondeu:

 
– Nada.

 
– Nada como?! Quando fores grande, não queres ter nenhuma profissão?!

 
– Quero não fazer nada, como a mãe!

 

 

Já lá vão os tempos em que algumas mulheres eram preparadas para serem, obrigatoriamente, as fadas do lar, como então se dizia, com sofrível gosto. Essa imagem mítica da tediosa dona de casa já deu o que tinha a dar e, felizmente, poucas serão as raparigas que hoje têm, para a sua vida, um tal objectivo. Mas nem sempre foi assim.

 

 

Sei de uma filha de um reitor da Universidade de Lisboa, que foi também presidente da Academia das Ciências e distinto matemático que, embora nascida em Lisboa a princípios do século XX, não logrou ir além da instrução básica, apesar da sua vontade e superior inteligência. Entendia-se então que, uma menina da sua condição, só devia aprender o que era conveniente para ser uma boa dona de casa. Tocar piano e falar francês correspondia, de facto, a um estereotipo da época. Até mesmo a educação dos filhos era, muitas vezes, relegada para amas de confiança, mademoiselles francesas, misses inglesas ou alguma fraulein alemã.

 

 

Nos campos e nas fábricas, pelo contrário, muitas mulheres trabalhavam de sol a sol com os seus maridos e, por vezes, também os filhos, logo que lhes fosse possível aguentar o pesado jugo do labor agrícola ou industrial. Por isso, um menor, embora fosse mais uma boca para alimentar, era também mais uma fonte de rendimento familiar. Como os peões só tinham a riqueza da respectiva prole, passaram à história como proletários.

 

 

Hoje em dia, a ociosa existência feminina das damas da burguesia e a quase escravatura das camponesas e operárias fabris desapareceu, felizmente. As mulheres actuais, quaisquer que sejam as suas condições económicas ou sociais, procuram ter uma vida profissional intensa, com todos os direitos políticos e cívicos inerentes à sua condição de cidadãs que são de pleno direito.

 

 

 

Talvez não haja já pais tiranos que, por preconceitos anacrónicos, não deixam as filhas realizarem-se académica e profissionalmente. Talvez também já não existam capitalistas selvagens que exploram a mão-de-obra feminina com horários desumanos e salários de miséria.

 

 

Mas a maternidade continua a ser vista com animosidade em alguns ambientes laborais, em que uma gravidez pode supor a rescisão do contrato de trabalho, ou a sua não renovação, o congelamento ou a regressão na carreira profissional.

 

 

A exploração das mulheres trabalhadoras é ainda, não obstante a legislação formalmente favorável à sua condição, uma lamentável realidade em muitas sociedades modernas, em que a maternidade é vista com desconfiança e hostilidade.

 

 

É cruel que a mulher tenha que prescindir, ou adiar, uma desejada maternidade, para assim garantir o seu posto de trabalho. A realização humana do trabalhador deveria ter prioridade sobre o seu rendimento laboral, porque o exercício responsável e livre da maternidade e da paternidade é sempre um nobilíssimo serviço à sociedade, sobretudo em países que, como Portugal, padecem um dramático decréscimo demográfico.

 

 

Por feliz coincidência, este ano o dia da mãe ocorreu na sequência quase imediata do dia de São José, operário. E será importante que, se alguém perguntar às filhas das actuais jovens, que serão as operárias e empresárias do futuro, o que querem ser, elas já possam dizer:

 

 

– Tudo como a mãe!

 

 

Padre Gonçalo Portocarrero de Almada

 
Sacerdote católico

 
09/05/2015

 

 

 

Votar para quê?

Então votar para quê? Por motivos altruístas, por vaidade, por interesse pessoal, para minimizar o arrependimento, porque aprendemos com os erros… Escolha um motivo, e não se esqueça de votar.

 

 

Esta semana o Reino Unido foi a votos. A eleição para a Câmara dos Comuns (a outra Câmara, dos Lordes, não é elegida) foi surpreendente em vários aspetos: a vitória expressiva dos Conservadores a nível nacional, apesar das sondagens apontarem para uma eleição renhida, a vitória esmagadora do Scottish National Party na Escócia, a derrota significativa dos Liberais Democratas que perderam mais de metade dos deputados.

 

 
O que não surpreendeu ninguém foi a abstenção, que chegou a perto de 34% dos eleitores e foi ligeiramente inferior à das eleições de 2010 (35%). O aumento tendencial da abstenção desde a Segunda Guerra Mundial em vários países ocidentais (França, Holanda, Alemanha, por exemplo) tem atraído muita atenção, bem como os esforços para combatê-la. Basta recordar o vídeo do Parlamento Dinamarquês realizado antes das eleições europeias de 2014 para incentivar a participação, onde um super-herói chamado Voteman utiliza técnicas pouco convencionais para reduzir a abstenção.

 

 
Em Portugal, excluindo os primeiros anos de democracia, em que praticamente não existia, a abstenção subiu de menos de 25,8%, em 1985, para 41,9%, em 2011.

 

 

 

As motivações para a abstenção nas democracias bem estabelecidas já foram amplamente estudadas e incluem a falta de qualificação, a idade dos eleitores (os jovens e os mais idosos votam menos), o sistema eleitoral (os sistemas maioritários favorecem um menor número de partidos, alienando assim uma parte do eleitorado potencial), ou a relativa importância da eleição aos olhos do eleitorado (por exemplo legislativas vs Europeia).

 

 

 

Todos estes factores são importantes para explicar a abstenção e mudá-los pode reverter a tendência dos últimos anos, mas na perspetiva de um economista, pode ser mais surpreendente o facto das pessoas escolherem votar de todo. Se olharmos estritamente para os custos e benefícios individuais de votar, a abstenção poderia ser muito maior (modelo de Downs, 1957).

 

 

Em espírito de serviço público, fui à paisana descobrir para que serve votar.

 

 

Por um lado, o benefício de votar, que é dado pelos ganhos que o potencial eleitor antecipa de o seu partido favorito ganhar multiplicado pela probabilidade de que o seu voto altere o resultado a favor do meu partido, é infinitamente pequeno. Por outro lado, o custo de ir votar (custo físico de transporte, o custo de oportunidade e o custo de aprendizagem sobre os potenciais candidatos), não sendo muito elevado, é certamente superior ao benefício. Assim, esta contabilidade simples entre custos e benefícios deveria levar muito mais gente à praia em domingo de eleições.

 

 

 

No entanto, a experiência mostra que, na maioria dos países com democracias estabelecidas há vários anos, mais de metade dos eleitores votam, pelo menos nas eleições legislativas, o que sugere que os benefícios antecipados são em média superiores aos custos.

 

 

 

Para explicar a realidade é preciso então modificar o modelo simples clássico para integrar outros potenciais benefícios das eleições (ver Geys, 2006). Alguns exemplos incluem:

 
• O próprio Downs, autor do modelo simples inicial, sugere que existe um benefício próprio de votar, por exemplo para a sobrevivência da própria democracia, por sentimento de dever cívico, etc. Nesse caso, o principal benefício de votar deixa de ser o resultado eleitoral. Recentemente, tem-se feito um esforço significativo em explicar melhor qual será o benefício intrínseco de votar. Para isso tem-se recorrido a modelos sociológicos e psicológicos tais como o desejo de afirmação pessoal e de afirmação face aos outros, investimento em reputação dentro de um grupo específico socioeconómico, aprendizagem sobre as vantagens de votar ao longo dos anos, etc.

 

 

• O benefício altruísta surge se os eleitores incorporarem nas suas preferências as preferências dos outros. Este altruísmo implica que ao votar, o eleitor beneficia também da felicidade dos outros por ganhar o seu partido.

 

 

• A minimização do arrependimento pode também entrar nas preferências. Assim, votar permite reduzir o arrependimento no caso de o partido preferido perder. É, por sinal, esta a essência do vídeo dinamarquês.

 

 

Então votar para quê? Por motivos altruístas, por vaidade, por interesse pessoal, para minimizar o arrependimento, porque aprendemos com os erros… Escolha um motivo, e não se esqueça de votar.

 

 

 
Inês Domingos

 
08/05/2015

 

 

 

Os filhos dos direitos adquiridos

Ambicionar que nas próximas décadas o país vai criar riqueza que consiga garantir aos que hoje estão “fora” os mesmos direitos dos que estão “dentro” é uma ilusão. Isso não vai acontecer.

 

 

 

O prenúncio mais evidente da crise que aí viria foi a anémica evolução da economia que experimentámos na primeira década deste século. A pronto ou a crédito, o dinheiro que atirámos para cima da economia durante anos a fio não teve, do outro lado da equação, uma correspondência compatível. Alimentámos a besta com fartura, mas ela não se mexeu. Engordou primeiro e definhou a seguir.

 

 

 

Pôr a economia a crescer é, por isso, um objectivo central. Mas não basta querer para acontecer. Primeiro é preciso ter a noção que nem todos os crescimentos económicos são iguais. Se não forem sustentados e resultado de um aumento da produtividade e competitividade, estaremos mais uma vez a iludir-nos no presente e a criar problemas para o futuro.

 

 

 

E depois é preciso ter a noção que o crescimento económico que realisticamente ambicionamos para o resto da década não vai chegar, nem de perto nem de longe, para resolver os problemas que acumulámos.

 

 

 

Esperar que é com mais uma décimas de PIB que baixamos o desemprego para níveis decentes, resolvemos o problema da segurança social, o sub-financiamento de algumas áreas do Estado e ainda sobra dinheiro para aumentar as prestações sociais para os mais carenciados é ter a ilusão que se tivermos três ovos em vez de dois já fazemos uma omelete que alimenta decentemente um regimento.

 

 

 

Os recursos são escassos e vão continuar a sê-lo. Mais do que esperar que o acréscimo de comida que vai chegar à mesa satisfaça toda a gente, importa saber quem e como a ela se pode sentar.

 

 

 
O país dual que construímos nas últimas décadas não se resume ao mercado de trabalho, onde uma parte mantém contratos sem termo e outra vai sobrevivendo como pode entre contratos a prazo e recibos verdes. Alguma coisa está mal numa economia quando é mais fácil e mais rápido despedir colectivamente de forma cega 50 trabalhadores num processo de reestruturação do que dispensar cinco funcionários que se manifestem incompetentes para as funções.

 

 

 

Pode não ser simpático de ouvir, mas a segurança laboral extrema dos que entraram há 15 ou 20 anos no mercado de trabalho não pode significar a extrema precariedade dos que querem entrar e são, muitas vezes, mais qualificados do que os que estão.

 

 

 

Isto resolve-se precarizando toda a gente? Claro que não. Mas algum equilíbrio há-de ser possível, mais justo do que o desequilíbrio actual.

 

 

 
Isto é apenas fruto da crise? É um logro pensar que os precários são filhos da troika ou da austeridade. As estatísticas desmentem essa visão a preto e branco. Há 20 anos, em 1994, havia 344 mil trabalhadores com contrato a termo. Em 2008, antes da crise financeira, tinham mais do que duplicado para 708 mil.

 

 

 

Nas duas últimas décadas, com mais crise ou menos crise, o peso do trabalho precário foi sempre aumentando.

 

 

 

A dualidade é também cada vez mais acentuada no acesso e direito às pensões. As fórmulas de cálculo generosas do passado – e nalguns casos escandalosas em instituições públicas ou privadas, garantindo reformas obscenamente elevadas a quem nunca descontou em montante e em tempo para a elas ter direito – coexistem hoje com direitos cada vez menores e, sobretudo, incertos.

 

 

 

Não sabemos qual vai ser o regime de reformas dos que entraram esta década no mercado de trabalho, mas uma coisa é certa: ele vai ser muito mais severo do que os regimes que vigoraram nas últimas décadas. Pior. Os que hoje estão a trabalhar descontam para pagar as reformas actuais com a certeza que daqui a 20 ou 30 anos não vão beneficiar sequer de uma sombra dos mesmos direitos.

 

 

 

A solidariedade intergeracional é um bom princípio social e um factor de coesão. Mas já não é de solidariedade que estamos a falar. Em causa está uma transferência de recursos entre gerações que fica na fronteira da legitimidade moral, podendo tornar-se ela própria um factor de atrito social.

 

 
O mundo das empresas também não escapou à sociedade dual que construímos. Grupos que foram feitos no conforto de mercados cativos, protegidos da concorrência e alimentados por rendas certas pagas por consumidores ou contribuintes coexistem com grandes, médias e micro empresas que diariamente têm que fazer pela vida, pelo negócio e pela rentabilidade.

 

 

 

Sem acesso a decisores políticos, sem influência no processo legislativo e sem lugar à mesa da despesa e do investimento público, o essencial do tecido empresarial tem que facturar para pagar impostos que são, muitas vezes, as receitas certas dos instalados.

 

 

E como é difícil rever os contratos das parcerias público-privadas, com modelos financeiros construídos por consultores e blindados juridicamente por gabinetes de advogados, ambos parte integrante do mesmo ecossistema. O mesmo se passa com rendas da energia e concessionárias várias de serviços públicos, para falar apenas dos casos mais notórios.

 

 

Em todos estes casos estamos a falar dos famosos direitos adquiridos, por todos invocados com maior ou menor legitimidade quando os sentem ameaçados.

 

 
Foram, de facto, todos eles atribuídos ao longo de décadas pelos decisores políticos. Umas vezes por legítima e nobre convicção sobre o modelo de desenvolvimento económico e social que defendiam para o país. Outras vezes por cálculos eleitorais de ocasião, que despertam quase sempre a generosidade que há num político. Outras ainda por trocas de favores e promiscuidades entre o mundo empresarial e a política.

 

 

 

Certo, certo é que muitos destes direitos foram adquiridos a crédito. A crédito de rendimentos e recursos futuros que, afinal, não aconteceram. Porque a economia não cresceu, porque a receita fiscal não chegou, porque os credores fecharam a torneira.

 

 
Ambicionar que nas próximas décadas o país vai criar riqueza que consiga garantir aos que hoje estão “fora” os mesmos direitos dos que estão “dentro” é uma ilusão. Isso não vai acontecer. Porque nada, neste momento, permite adivinhar a dinâmica económica necessária para que aconteça mas também porque as regras que alimentam esta dualidade são um lastro difícil de mover.

 

 
Mas o equilíbrio entre os de “dentro” e os de “fora” é absolutamente essencial, sobretudo se assentar mais no mérito do que no crédito. Há que dar espaço à mesa aos filhos dos direitos adquiridos e para isso todos terão que se ficar um pouco mais apertados.

 

 

 

 

 

Paulo Ferreira

 
Jornalista

 

08/05/2015

 

 

Medo não é sinónimo de respeito

No 1º de Maio, uma velhota russa segurava um cartaz dado pelos organizadores onde se lia: “Estados Unidos não nos roubes a reforma!”. Pois bem, as reformas vão para tanques, aviões e armamento militar

 

 

O Kremlin tenciona transformar as celebrações do 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial numa autêntica exposição de novos armamentos na Praça Vermelha, trazendo à memória as monumentais paradas do Exército Vermelho Soviético. Como é sabido, essas demonstrações de força não impediram a desintegração da União Soviética, pelo contrário, os gastos militares foram um dos principais factores da sua ruína.

 

 

O Ministério da Defesa da Rússia decidiu exibir, no próximo dia 9 de Maio, os novos tanques “Armata”, as peças de artilharia “Koalitzia-SV”, o complexo de defesa anti-aérea “Kurganetz-25”, etc., etc.

 

 

Segundo os militares russos, na parada que se irá realizar na Praça Vermelha participarão 16,5 mil soldados, 194 unidades blindadas, 143 helicópteros e aviões.

 

 

Não deverão ser muitos os que acreditam que Vladimir Putin, com toda esta exibição de músculos, pretenda realizar uma sincera homenagem àqueles que, durante a Segunda Guerra Mundial, salvaram o mundo do nazismo hitleriano, mais parecendo uma forma de repetir a velha política soviética de assustar todo o mundo com paradas militares.

 

 

Os dirigentes russos continuam a confundir “medo” com “respeito”, confusão compartilhada, infelizmente, por grande parte da população russa envenenada pela propaganda oficial. Ao fazer demonstrações militares não só na Praça Vermelha, mas também no território de alguns países vizinhos, o Kremlin quer incutir medo. Ora, isto é muito mais fácil do que fazer com que o mundo respeite a Rússia pelo seu grau de desenvolvimento económico, político e social.

 

 
A Rússia pode continuar a fabricar armas de destruição em massa cada vez mais sofisticadas, mas nas lojas continuamos a não encontrar computadores, telemóveis, televisores, electrodomésticos ou outros equipamentos “made in Russia”. E isto não se refere apenas a lojas no estrangeiro, mas na própria russa. São cada vez mais raros os cientistas russos nas listas dos prémios Nobel da Economia, Medicina, etc.

 

 
Se o Kremlin quisesse merecer o respeito das pessoas ter-se-ia preocupado mais com os veteranos da Segunda Guerra Mundial, muitos dos quais morreram e continuam a morrer de fome e no esquecimento na Rússia. Mas isso não faz aumentar “vertiginosamente” a popularidade do Presidente Putin.

 

 

Também não dá popularidade rápida os casos de pacientes russos com doenças oncológicas que se suicidam por não receberem assistência na fase terminal da doença. Porque é mais fácil fabricar mísseis, submarinos, etc. do que investir na descoberta e fabrico de medicamentos na Rússia.

 

 
A União Soviética já mostrou que este tipo de política conduz o país e a sociedade a um beco sem saída, mas a história volta a repetir-se, sem que os líderes consigam retirar o seu país do círculo vicioso em que se encontra.

 

 
Na manifestação de 1 de Maio em Moscovo, convocada pelos sindicatos oficiais que não defenderam os trabalhadores na era comunista, nem os defendem agora, uma velhota russa segurava um cartaz, entregue pelos organizadores, onde estava escrito: “Estados Unidos não nos roubes a reforma!”. Pois bem, as reformas vão para tanques, aviões e armamentos militares, por isso é escusado estar a culpar Obama pelos erros cometidos pelos seus próprios dirigentes.

 

 

 
José Milhazes

 
08/05/2015

 

 

 

Eleições inglesas: entre o Britexit e o Scotexit

Há o risco de ficar tudo imobilizado, a Rainha não fazer o discurso constitucionalmente obrigatório do dia 27 de Maio e o Reino Unido “belgificar-se”, sem governo para os tempos mais próximos.

 

 
São cada vez mais as vozes que apostam num longo período de paralisia política após as eleições de quinta-feira 7 de Maio. Todas as sondagens concordam: conservadores e trabalhistas estão virtualmente empatados. O resultado é imprevisível e o futuro imediato indefinido. Em causa está muito mais do que a tradicional eleição de representantes de um país, neste caso do Reino Unido, e a consequente escolha de um governo.

 

 

 

Na próxima quinta-feira, é o “english establishment” – o regime político inglês – que está em causa, escreve Robert Tombs no Newstatesmen, como nunca esteve desde que em 1640 os escoceses ameaçavam a coroa de Carlos I (e Portugal se livrava dos Filipes).

 

 

 

O que está em causa é Westminster e a tradicional partilha do poder entre “tories” e trabalhistas; é a hipótese de um parlamento paralisado, um governo sem maioria estável; é a legitimidade e autoridade da classe política, como em quase todo o mundo ocidental; é a manutenção dos actuais líderes; é o possível referendo à continuidade do Reino Unido na União Europeia (UE); é o peso damoclesiano de um partido escocês estruturalmente independentista, a ameaçar o “scotexit” (do Reino), e de um partido britânico independentista, somado à indecisão de David Cameron, a ameaçar o “britexit” (da UE); é a economia, entre a austeridade – e a suspeita de novos cortes dos tories – e a dúvida da capacidade dos trabalhistas em controlar despesas.

 

 

 

Na próxima quinta-feira está em causa o futuro do regime político inglês, a presença do Reino Unido na UE, a continuação do Reino unido, o futuro dos ingleses e dos europeus. Os jornais ingleses já escolheram: o Economist apoia Cameron, primeiro-ministro e líder dos “tories”, o Guardian escolhe o trabalhista Ed Miliband. O que pode então suceder?

 

 

 
O mais provável, apesar de tudo, parece ser a vitória conservadora por pequena diferença. São necessários 326 deputados para uma maioria nos Comuns e as sondagens mais recentes apontam para 265 a 275 eleitos por trabalhistas e conservadores (ligeira vantagem destes).

 

 

 

No caso de uma vitória conservadora curta, a solução de governo pode ser a renovação da coligação com os liberais-democratas de Nick Clegg (após a renúncia de Gordon Brown em 2010, Cameron e Clegg formaram o primeiro governo de coligação no Reino Unido desde a 2ª Guerra).

 

 

Mas a experiência aconselha cautela e não é certo que “tories” e liberais estejam dispostos a repeti-la. Opõem-se os mais conservadores entre os conservadores (caso do influente comité 1922, constituído sobretudo pelos chamados “backbenchers”) e há vozes discordantes entre os liberais, contra o referendo à continuidade do Reino Unido na UE, mantido em aberto por Clegg.

 

 

 

Sem esse acordo, David Cameron pode tentar governar em minoria, nem que seja para obter a repetição das eleições. A jogada é arriscada, mas Cameron joga neste escrutínio o seu futuro como líder do partido (o polémico Boris Johnson, mayor de Londres, está à espreita).

 

 

 
Se vencerem os trabalhistas, fica também longe de resolvido o problema. Ed Miliband pode receber o apoio dos liberais, pois Clegg afirma-se equidistante dos favoritos e disponível para negociar com o vencedor, ainda que a sua aposta principal pareça ser renovar a coligação com os “tories”.

 

 

Haveria ainda a possível aliança com o partido nacional escocês, agora de Nicola Sturgeon, polémica por colocar os independentistas no coração da governação britânica e com capacidade para influenciar os termos da devolução de poderes ou, até, futuras evoluções no sentido da independência; mas o pacto a que Cameron chamou “diabólico” por destruir a nação foi rejeitado publicamente há uma semana por Miliband. É carta fora do baralho (?).

 

 
Entre as muitas consequências das eleições de quinta-feira, dois assuntos predominam e merecem (deviam merecer) toda a atenção. Um é a continuidade do Reino Unido na União, a que chamarei por facilidade de linguagem referendo europeu, o outro a continuidade da Escócia no Reino Unido, o referendo escocês (os leitores talvez partilhem o meu espanto pelo pouco que se falou do primeiro na campanha).

 

 

Eis a leitura possível das consequências das várias alternativas, sem naturalmente presumir dos resultados dos referidos referendos:

 

 
Os conservadores vencem com minoria e coligam-se com os liberais (e talvez com o partido unionista do Ulster ou até o UKIP): o referendo europeu é certo, segue-se o referendo escocês. Ou os conservadores vencem e governam em minoria: prováveis, num prazo curto, novas eleições, com os “tories” a esperar obter maioria. Seriam essas as eleições decisivas, claro.

 

 
Vencem os trabalhistas e coligam-se com os liberais e/ou o SNP (improvável, podendo incluir os verdes): não há referendo europeu ou escocês, mas o grau de devolução de poderes seria importante (maior no caso de uma coligação exclusiva com o SNP). A longo prazo potenciaria o “scotexit”. Ou Miliband exclui um acordo com os parceiros potenciais e arrisca governar sozinho: grande instabilidade do executivo, que dificilmente completaria a legislatura.

 

 
Possível mas pouco viável é a hipótese do partido em segundo (sobretudo se for o trabalhista) vir a governar, caso apresente uma solução de governabilidade que o vencedor não assegure.

 

 

 

A única coisa certa é ninguém fazer ideia nenhuma do que se vai passar, escreve James Graham no Guardian: na manhã de 8 de Maio, afirma, muitos virão dizer que sabem alguma coisa, mas não é verdade, ninguém sabe nada… ainda que o próprio Graham escreva – ele sabe – que a 8 de Maio quem controlar a narrativa terá a chave do futuro do Reino Unido. Ganham os “tories” e governam com os lib-dem? Ganham os trabalhistas e governam com os lib-dem?

 

 

 

Ganham uns ou outros e governam sozinhos por algum, pouco, tempo, até novas eleições, muitos milhões de libras depois (e depois logo se vê)? Ou fica tudo imobilizado, a Rainha não faz o discurso constitucionalmente obrigatório do dia 27 de Maio e o Reino Unido “belgifica-se”, sem governo para os tempos mais próximos?

 

 
E há referendo e ganha a Europa e a união do Reino? Há referendo e perde a Europa e a união do Reino? Não há referendo e ganha a Europa e a união do Reino? Ou não havendo referendo perdem todos, europeus e britânicos?

 

 

 

Assim se joga, numas singelas eleições além-Mancha, o futuro de todos nós, europeus. Tempos estranhos, estes? Mas não foi sempre assim?

 

 

 

 
Paulo de Almeida Sande

 
Professor do Instituto de Estudos Políticos
da Universidade Católica Portuguesa

 
05/05/2015

 

 

 

Lições inglesas

Não admitir erros, negar os problemas, e prometer facilidades não é sempre uma receita de sucesso. Os Trabalhistas, que fizeram tudo isso, sofreram a sua maior derrota em trinta anos.

 

 

Ninguém o esperava. Faz lembrar 1992. Todos nesse ano também antecipavam um parlamento sem maioria absoluta de um partido. Os Conservadores no governo ganharam então, como ganharam agora. Uma coisa é o que isso diz para o Reino Unido, e outra o que diz para o resto da Europa, especialmente para os países que têm eleições marcadas para este ano, como Portugal ou a Espanha.

 

 

A primeira lição é que tomar o governo num país praticamente em bancarrota, e ser obrigado a equilibrar as contas, não tem de ser uma tarefa fatal. Os Conservadores no Reino Unido obtiveram a sua primeira maioria absoluta desde 1992.

 

 

Quando a recessão dá lugar ao crescimento e à criação de emprego, como acontece agora, o eleitorado compreende que o ajustamento foi difícil, mas não inútil, e pode não desejar correr mais riscos, sobretudo com aqueles que sempre se permitiram tratar a “austeridade”, apesar dos défices, como um simples capricho “ideológico”.

 

 

Mas há mais do que isso: tal como no resto da Europa, a recessão parece ter terminado no Reino Unido, mas a “crise” não, naquilo que diz respeito à viabilidade do Estado e à competitividade da economia. Ora, quem provou ser capaz até agora de reconhecer e enfrentar esses problemas, em vez de simplesmente os negar, talvez se encontre em vantagem no debate público.

 

 

A segunda lição é que é preciso esperar até ao fim. Os Conservadores de David Cameron andaram atrás dos Trabalhistas de Ed Miliband em todas as sondagens de opinião desde 2011, durante quatro anos. Só recuperaram nos últimos meses, e quase que só venceram nas últimas semanas, ou mesmo nos últimos dias. Nada está decidido antes de os votos serem contados.

 
A terceira lição é que não basta fazer: é preciso acreditar no que se está a fazer. O Partido Liberal-Democrata de Nick Clegg também esteve no governo com os Conservadores durante o processo de ajustamento no Reino Unido. Mas sempre a arrastar os pés e a denunciar os “cortes” dos Conservadores, como uma espécie de oposição interna no governo. Pelos vistos, não convenceu ninguém: nem aqueles que aceitaram o ajustamento, nem aqueles que o recusaram.

 

 
A quarta lição é que recusar admitir erros, negar os problemas, e prometer facilidades não é necessariamente uma receita de sucesso. O Partido Trabalhista, que fez tudo isso, sofreu a sua maior derrota deste 1983. O número dois do partido, Ed Balls, e o número três, Douglas Alexander, perderam mesmo os seus lugares de deputados. O Partido Trabalhista, em 2010, renegou a sua liderança “centrista” e virou “à esquerda”, como fez perante Thatcher no tempo de Michael Foot.

 

 

O seu manifesto eleitoral foi o mais “esquerdista” desde esses tempos. Prometeu perseguir os ricos, mais despesa, mais impostos. Ed Miliband procurou mesmo o abraço de Russell Brand, uma espécie de Syriza em dose individual. Ao contrário do que aconteceu na década de 1980, o Partido Trabalhista não se dividiu. Mas tal como então, perdeu a Inglaterra e agora também a Escócia.

 

 

Provavelmente, não faltará muito para voltar a admitir que a fórmula da “terceira via” ou do “centro reformista” de Tony Blair, repudiado pelos Trabalhistas na última década, foi muito mais eficaz para vencer eleições (todas as eleições ganhas pela esquerda em Inglaterra nos últimos 40 anos, depois de 1974, foram ganhas por Blair, em 1997, 2001 e 2005).

 

 
O “esquerdismo” ressuscitado pela crise financeira em versão urbana-universitária pode estar a gozar os seus últimos dias ao sol, sobretudo onde não se conseguiu ligar ao populismo nacionalista, como na Escócia ou na Grécia. O vento já abandonou as velas do Podemos em Espanha.

 

 

 

Quase de certeza, alguns continuarão a insistir que é o povo que está enganado, como o inevitável Paul Krugman. Mas a esquerda reformista terá talvez uma nova oportunidade, como aliás sugerem os governos da Itália com Renzi ou da França com o plano Macron.

 

 

 

A quinta lição diz respeito ao populismo nacionalista, que a recessão e a crise animaram em toda a Europa. Devido ao sistema eleitoral britânico, o UKIP com 12,6% dos votos no Reino Unido tem apenas um deputado, e o SNP (nacionalistas escoceses), com 4,8% dos votos, tem 56, quase todos os deputados eleitos na Escócia. Mas o UKIP acrescentou a sua votação e progrediu no norte de Inglaterra, onde em muitas circunscrições eleitorais surgiu como o segundo partido, atrás do Partido Trabalhista.

 

 

Ou seja, o SNP desalojou o Trabalhismo na Escócia, e o UKIP ameaça fazer o mesmo naquele que era o outro bastião eleitoral trabalhista, no norte de Inglaterra A direita conservadora, que aliás soube manipular o medo de um governo trabalhista dependente dos votos do nacionalismo escocês, resistiu melhor ao populismo nacionalista do que a esquerda trabalhista. Tal como em França, onde os gaullistas resistiram à Frente Nacional, a esquerda do arco da governação parece mais vulnerável aos populismos do que a direita.

 
O que não quer dizer que os populismos nacionalistas não sejam um problema para todos. No Reino Unido, colocarão provavelmente um problema constitucional. O Partido Conservador prometeu um referendo sobre a integração do Reino Unido na União Europeia, e o SNP levantará certamente a questão escocesa.

 

 

A solução será talvez ainda mais autonomia para a Escócia, sem separação monetária (que os nacionalistas escoceses não querem). O que quer dizer que os ingleses podem recusar o federalismo europeu, mas podem ter de se conformar com um federalismo britânico.

 

 

Ou seja, se eurocépticos ingleses e nacionalistas escoceses vencerem os debates, o Reino Unido sairá da União Europeia apenas para se tornar uma mini-União Europeia, com uma moeda comum. E a Escócia, um dia, talvez seja a sua Grécia. Pelo menos, já lá está uma espécie de Syriza.

 

 
Rui Ramos

 

 

08/05/2015

 

 

 

Politicamente correcto: perguntas feitas para intimidar

Em nossa era, a realidade virtual é mais importante para a maioria das pessoas do que a própria realidade.

 

 
O novelista inglês L.P. Hartley, autor de The Go-Between, satirizou a invejosa supressão da beleza (e, por consequência, todo e qualquer igualitarismo que não fosse restrito à igualdade perante a lei) em uma novela chamada Justiça Facial .

 

 
Há aquelas perguntas que são feitas com um genuíno espírito investigativo, com o intuito de obter respostas e conhecimento. Mas há também aquelas perguntas que são feitas com o claro propósito de intimidar, de irritar ou de coagir o inquirido, com o intuito de fazê-lo concordar com um determinado ponto de vista e, com isso, estabelecer a imaculada virtude das pessoas que fazem a pergunta.

 

 
Recebi recentemente uma pergunta desse tipo via email. Quem me enviou foi o The Lancet, um dos mais importantes jornais médicos do mundo. Dirigindo-se a mim pelo meu primeiro nome (já o suficiente para me irritar), perguntou: “Você se importa com a saúde do nosso planeta?”

 

 
Francamente, a resposta é não. Ao contrário de cachorros, planetas não são o tipo de coisa pela qual consigo sentir afeição ou interesse. Minha conta bancária ocupa na minha mente um espaço muito maior do que a saúde do planeta. Aliás, nem sequer estou certo de que planetas podem ser saudáveis ou doentios, assim como não estou muito certo de que eles podem ser sarcásticos ou discretos. Rotular um planeta de saudável é incorrer naquilo que os filósofos costumavam chamar de erro de categoria.

 

 

 

Isso, obviamente, não significa que deseje o mal à terra. Pelo contrário. Se uma prova de múltipla escolha me for oferecida, é bem provável que eu marque as respostas que desejem bem ao mundo, e não seu mal. Eu responderia assim nem que fosse motivado pelo simples desejo de ser aprovado.

 

 

 
Mas há algo de hipócrita e de insincero nesse tipo de pergunta. Como é bem típico de nossa era — em que a realidade virtual é mais importante para a maioria das pessoas do que a própria realidade —, a simples expressão de sentimentos altaneiros e benevolentes é hoje avaliada por muitos como sendo a própria expressão da virtude. A pessoa mais virtuosa é aquela que consegue expressar a mais abrangente benevolência recorrendo ao mais alto nível de abstração. É isso que hoje em dia se passa por bondade e preocupação.

 

 

 
Senti-me impelido a responder ao editor do Lancet (mas sei que ele não iria ler) dizendo que discordava de seu “planetismo” discriminatório; que eu só passaria a me importar com a saúde do universo, ou dos universos, se as especulações feitas pelos astrofísicos sobre a existência de outros universos se comprovassem verdadeiras.

 

 
“Você se importa com a saúde do nosso planeta?” é uma pergunta que, embora não esteja na mesma classe de “Você já parou de bater na sua mulher?”, está bem próxima. Como acabei descobrindo — ao ler mais atentamente o email —, a saúde do planeta na verdade se referia à saúde das pessoas deste planeta, acrescida de um pouco de misticismo sobre diversidade biológica (o novo paganismo).

 

 

 
“Nosso objetivo é responder às ameaças que enfrentamos: ameaças à saúde humana e ao bem-estar, ameaças à sustentabilidade de nossa civilização, e ameaças aos sistemas naturais e humanos que nos sustentam”. Esse editor santarrão se autoconcedeu uma visão, embora a tenha expressado na primeira pessoa do plural: “Nossa visão é a de um planeta que fomente e sustente a diversidade da vida com a qual nós co-existimos e da qual nós dependemos”. Levantem as mãos, portanto, todos aqueles pascácios que são a favor da máxima disseminação possível das ameaças ao bem-estar da humanidade e da eliminação de todas as formas de vida exceto a nossa.

 

 

 
Deve ser horrível levar uma vida tendo pensamentos tão enfadonhos — e não apenas ocasionalmente, mas sim corriqueiramente, se não constantemente — e se sentindo obrigado a expressá-los.

 

 
Mas estou divagando. Voltemos ao problema das perguntas intimidadoras e coercivas, às quais se espera que respondamos. Dentre estas perguntas, uma das mais onipresentes é aquela que emprega o slogan da nossa era: “Você é contra a igualdade de oportunidades?”

 

 

 

 

Como todos já devem saber, quem se diz contra a noção de igualdade de oportunidades é imediatamente classificado como sendo algum tipo de reacionário monstruoso e ultramontano, um Metternich ou um Nicolau I, alguém que quer, por meio de repressões, preservar o status quo no formol.

 

 

 

Sempre que profiro palestras, os membros mais jovens da plateia quase desmaiam de horror quando digo que não apenas não acredito em igualdade de oportunidades, como ainda considero tal ideia sinistra ao extremo, muito pior do que a mera igualdade de resultados. Atualmente, dizer a uma jovem plateia que igualdade de oportunidades é uma ideia completamente maléfica e depravada é o equivalente a gritar “Deus não existe e Maomé não foi seu profeta” a plenos pulmões em Meca.

 

 
O problema é sempre o mesmo: os defensores de determinadas ideias simplesmente não se dão ao trabalho intelectual de analisar as consequências práticas de sua implantação. Se a ideia da igualdade de oportunidades for realmente levada a sério, então seus proponentes terão de alterar toda a estrutura humana do planeta.

 

 

 

Para começar, as pessoas não nascem iguais. Essa é a premissa mais básica de toda a humanidade. As pessoas são intrinsecamente distintas uma das outras. Algumas pessoas são naturalmente mais inteligentes que outras. Algumas têm mais destrezas do que outras. Algumas têm mais aptidões físicas do que outras.

 

 
Adicionalmente, mesmo que duas crianças nascessem com exatamente o mesmo grau de preparo e inteligência (algo improvável), o próprio ambiente familiar em que cada uma crescer será essencial na sua formação. Algumas crianças nascem em famílias unidas e amorosas; outras nascem em famílias desestruturadas, com pais alcoólatras, drogados ou divorciados. Há crianças que nascem inteligentes e dotadas de várias aptidões naturais, e há crianças que nascem com baixo QI. Toda a diferença já começa no berço e, lamento informar, não há nenhum tipo de engenharia social que possa corrigir isso.

 

 
As influências genética e familiar sobre o destino das pessoas teriam de ser eliminadas à força, pois elas indubitavelmente afetam as oportunidades e fazem com que elas sejam desiguais.

 

 
No cruel mundo atual, pessoas feias não podem ser modelos; deformados não podem ser astros de futebol; retardados mentais não podem ser astrofísicos; baixinhos não podem ser boxeadores pesos-pesados. Não creio ser necessário prolongar a lista; qualquer um é capaz de pensar em milhares de exemplos.

 

 
É claro que pode ser possível nivelar um pouco a disputa criando leis que imponham a igualdade de resultado: por exemplo, insistindo que pessoas feias sejam empregadas como modelo de acordo com a proporção de seu predomínio na população. O novelista inglês L.P. Hartley, autor de The Go-Between, satirizou esta invejosa supressão da beleza (e, por consequência, todo e qualquer igualitarismo que não fosse restrito à igualdade perante a lei) em uma novela chamada Justiça Facial. Neste livro, Hartley contempla uma sociedade em que todos aspiram a uma face “mediana”, gerada por cirurgias plásticas que são feitas tanto nos anormalmente feios quanto nos anormalmente belos. Somente desta maneira pode a suposta injustiça da loteria genética ser corrigida.

 

 

 

 

Gracejos à parte, o mais curioso sobre essa questão da desigualdade de oportunidades é que os arranjos políticos necessários para reduzi-la ao máximo possível já existem na maioria dos países ocidentais. Há saúde gratuita, há educação gratuita, há creches gratuitas, há escolas técnicas gratuitas, e há programas gratuitos de curas de vícios. Ainda assim, todos continuam infelizes ou descontentes. Consequentemente, continuamos atribuindo nossa infelicidade à falta de igualdade de oportunidades simplesmente por medo de olharmos para outras direções à procura de explicações verdadeiras, inclusive para nós mesmos.

 

 

 
Políticos adoram idealizar a ideia de igualdade de oportunidade exatamente porque se trata de algo impossível de ser alcançado plenamente — exceto se forem implantados arranjos que fariam a Coreia do Norte parecer um paraíso libertário. E justamente por ser impossível, a igualdade de oportunidades se torna uma permanente garantia de emprego para esses políticos, à medida que eles seguem prometendo a quadratura do círculo ou a criação do moto-perpétuo. Tais promessas garantem a importância deles perante o eleitorado. E conseguir importância é provavelmente a mais poderosa motivação de todo político.

 

 
“Você é contra a igualdade de oportunidades?” Eu sou. Sou plenamente a favor da oportunidade, mas totalmente contra a igualdade. E não adianta tentar me oprimir com perguntas politicamente corretas e maliciosamente formuladas.

 

 

 

E você, já parou de bater na sua mulher? Responda apenas sim ou não.

 

 

 

Theodore Dalrymple é médico psiquiatra e escritor

 

 

Por Theodore Dalrymple, ILMB

 
15/05/2015

 

 

 

 

Politicamente correcto – A inquisição das coscuvilheiras

Politicamente correcto - A inquisição das coscuvilheiras8

 

 

 

Politicamente correcto - A inquisição das coscuvilheiras7

 

 

 

A praga do “politicamente correcto” está a atingir as raias da loucura. Não falta muito para que os ‘lobbies’ esquerdistas impeçam o pobre cidadão de respirar – não vá ele “ofender” alguma minoria protegida. É a inquisição das coscuvilheiras do século XXI.

 

 

 

Para os fanáticos do “politicamente correcto”, este artigo está condenado a ser “ofensivo”. Talvez seja ofensivo por não respeitar o “acordês”. Talvez seja ofensivo pelas imagens que o acompanham. Talvez seja ofensivo pelo tipo de letra escolhido pelos nossos paginadores.

 

 
Mesmo que esta página saísse em branco, o artigo não deixaria de ser ofensivo para esses fanáticos, pois o papel resulta de um cruel abate de árvores. E ainda que fosse divulgado em formato digital não deixaria de ser ofensivo, por consumir criminosamente electricidade. Aliás, para muitos destes loucos, que se auto-apregoam como paladinos da liberdade de expressão, até a mera existência deste jornal é ofensiva.

 

 
Não há como fugir a este fenómeno dos nossos dias, em que tudo acaba por ser ofensivo para um pequeno grupo de pessoas que contesta só por contestar, que nunca está feliz com nada e que dita os decretos do “politicamente correcto”. São uma praga. Nada produzem, nada inventam, nada criam. Pelo contrário, tentam activamente manietar quem quer fazê-lo.

 

 
Dizem-se progressistas, mas são rápidos a censurar e a condenar, usando métodos quase medievais de prova de culpa. Afirmam-se pela liberdade, mas adoram a censura. Querem fazer justiça pelas próprias mãos e denunciar tudo e todos, mas para eles não há lei ou código deontológico. Pelo meio, retiram protagonismo a quem verdadeiramente luta pela sociedade e trabalha para a melhorar. Os níveis de parvoíce chegaram a níveis extremos, e as crianças já começam a ser doutrinadas na loucura do “politicamente correcto”. Não falta muito para que seja proibido respirar.

 

 
QUEIMEM AS BANDEIRAS!

 

 
Em 2014, um aluno sueco foi arrastado da sua sala de aula para o escritório do director da escola. O crime de que o petiz era acusado? Vestia uma camisola com um símbolo “racista”: a bandeira nacional do seu país. É comum na Suécia, que já foi um dos países mais liberais do mundo e é hoje um dos mais afectados pelo “politicamente correcto”, as crianças serem castigadas por usarem o símbolo nacional, especialmente em locais onde haja grandes comunidades muçulmanas, visto que a bandeira apresenta a “cruz cristã”. Para espanto geral, as autoridades concordaram com a acusação feita pela escola, onde ainda hoje não se pode entrar com a bandeira do país que paga para a instituição continuar a funcionar.

 

 
Felizmente na Suíça houve mais juízo, e quando o ‘lobby’ do “politicamente correcto” fez o incrível pedido para que as autoridades retirassem a cruz da actual bandeira, alegando que “temos que nos questionar se o Estado quer continuar a apoiar um símbolo [a cruz] no qual muitas pessoas já não acreditam”, as autoridades mandaram-no à fava e os principais partidos políticos, da esquerda à direita, correram a afirmar que a ideia era uma imbecilidade.

 

 
Mas conciliar as culturas nacionais com as comunidades imigrantes tem-se revelado um problema – excepto, claro, para os militantes do “politicamente correcto”, que acham que o outro lado tem sempre razão. Agora, até o Natal querem banir: em muitas cidades norte-americanas já não se pode dizer “feliz Natal” a ninguém, mas sim apenas “felizes festas”, e nos países nórdicos a “árvore de Natal” deu lugar à “árvore das festas”. O presépio, obviamente, está banidíssimo.

 

 
TREZE VÍTIMAS

 

 
Tanto na Suíça como na Suécia a comunidade muçulmana representa entre cinco e dez por cento da população e já começou a exigir continuar a ter as mesmas práticas culturais que tinha nos seus países de origem. Práticas culturais que estão, em muitos casos, em infracção dos valores ocidentais mais básicos, como os direitos das mulheres. Mas quem tiver a coragem de discutir este problema, até mesmo para auxiliar na integração destas pessoas, é imediatamente acusado de racismo, xenofobia e outros “crimes” que nos relembram o chavão “fascista” dos tempos do PREC.

 

 

 

Nos Estados Unidos, o problema ganhou uma dimensão tal que já morreram pessoas por causa do medo do “politicamente correcto”. Em 2009, um muçulmano abriu fogo sobre um grupo de soldados numa base militar enquanto gritava “Deus é grande” em árabe, o mesmo grito usado pelos terroristas durante o 11 de Setembro. O indivíduo em causa estava sinalizado como (citamos a expressão usada pelas próprias autoridades federais) “um bomba relógio”. Até e-mails provando a sua ligação a imãs radicais estavam na posse da polícia, que há muito o trazia debaixo de olho. Mas, por incrível que pareça, nada foi feito. Segundo o inquérito final, os responsáveis pela investigação do caso tiveram medo de serem apelidados de racistas ou de islamofóbicos. Morreram treze pessoas por causa das pressões do “politicamente correcto”.

 

 
O “CRIME” DO PIROPO

 

 
O problema dos “revolucionários permanentes” é que apenas se consideram úteis enquanto estão a “revolucionar”, e no processo de revolucionar não se importam com quem atropelam. Em Portugal, o Bloco de Esquerda, o nosso partido político mais adepto do “politicamente correcto”, tentou, e ainda tenta, proibir o tradicional piropo. O caso só pode provocar hilaridade: quererão os esquerdistas do Bloco pôr a polícia a controlar, na rua, as galanterias que um cavalheiro possa dirigir a uma senhora que passa? Quererão instituir a videovigilância da fala ou um sistema de denúncia dos piropos? Se isto não é totalitarismo, que nome se poderá dar-lhe?

 

 
A via das denúncias tem corrido mal, e horrivelmente em muitos dos países mais atingidos pela praga do “politicamente correcto”. Ao ponto de os homens se terem quase tornado cidadãos de segunda categoria. Na Suécia, por exemplo, se uma mulher se zanga com um homem, basta-lhe gritar “violação”, que esse homem é imediatamente declarado culpado antes de provado inocente. A sua cara é divulgada nas redes sociais e nas televisões, é demitido, é ostracizado pela comunidade. E, no entanto, em 5.887 “denúncias” registadas em 2013, apenas 190 se provaram mesmo casos de violação.

 

 

 

Já nos EUA, em 2006, toda uma equipa universitária de Lacrosse (um desporto em expansão) foi suspensa da Faculdade quando a “stripper” Gail Mangum acusou os jogadores de a terem violado. Todos os jovens em causa eram brancos heterossexuais, o pior inimigo dos “politicamente correctos”, que encontraram um aliado no Procurador-Geral Mike Nifong. Em busca de protagonismo, este suposto agente da ordem declarou imediatamente a culpa dos jovens antes sequer de a polícia iniciar a investigação.

 

 

 
O processo foi de tal forma mal gerido pela brigada do “politicamente correcto” que a procuradoria tentou adulterar provas para conseguir a condenação. O nome dos jovens foi arrastado pela lama, e um grupo de 88 professores de esquerda chegou a fazer uma declaração de apoio à “vítima”, exigindo “castigo exemplar” para os “privilegiados”.

 

 

 

No fim, foi a imprensa livre e responsável que salvou o dia, quando um jornal conseguiu comprovar que a “stripper” tinha prestado, pelo menos, cinco declarações contraditórias, e que os testes de ADN atestavam que, embora tivesse havido actividade sexual, não tinha sido com nenhum elemento da equipa. Pior: veio-se a descobrir que uma câmara filmou um dos jovens a quilómetros do sítio onde supostamente tinha violado a “stripper”, algo que o procurador da esquerda radical tentou esconder. No final foi expulso da ordem, e a “stripper” veio a ser presa, embora por outros pequenos delitos, incluindo, ironicamente, abuso de menores.

 

 

 

Por causa da loucura do “politicamente correcto”, vários homens completamente inocentes tiveram durante dois anos a sua vida feita em pedaços.

 

 

 

INQUISIÇÃO

 

 

 

As acusações sem fundamento são tantas, que os procuradores e os polícias começam a desconfiar da veracidade de todos os casos, uma versão moderna do “Pedro e o Lobo”, arriscando-se a que verdadeiros violadores escapem ao braço da lei por falta de acção dos agentes da ordem.

 

 
No caso dos piropos que o Bloco de Esquerda pretende criminalizar, bastaria uma acusação leviana para um homem inocente ser conduzido aos calabouços. Não que isso incomode muito o bando de desocupados e desocupadas que se consideram “activistas”, uma horda de guerreiros do Facebook e do Twitter, que se julgam corajosos a invadir barbearias e a atirar papelinhos a Mário Draghi.

 

 

 

Seria curioso de se ver grupos como as Femen teriam coragem para protestar da forma como se protesta na Arábia Saudita, onde as mulheres são verdadeiramente oprimidas.

 

 
Mas o politicamente correcto está cheio de pequenas hipocrisias, geralmente ridículas mas nem por isso menos inquisitoriais. Nem a arte foge ao “politicamente correcto”. Na Austrália, por exemplo, uma companhia de teatro baniu a histórica peça de teatro “Carmen”, escrita há 140 anos, porque a personagem principal, uma rapariga cigana espanhola, vende cigarros em frente a uma fábrica de tabaco.

 

 

 

Os defensores desta censura alegam que a peça incentiva o consumo de tabaco, uma alegação que qualquer pessoa com o mínimo de senso comum e cultura geral imediatamente caracteriza como idiota. Mas o contexto histórico não importa para os loucos do “politicamente correcto”, e é por isso que o livro “Tintin no Congo” está prestes a ser banido e excluído das bibliotecas na União Europeia, apesar de ser uma obra desenhada em 1931, altura em que os valores culturais eram completamente diferentes dos da actualidade. Nada está a salvo.

 

 

 

COBARDIA POLÍTICA

 

 

 

Apesar de estar comummente associado à esquerda, o “politicamente correcto” não é um fenómeno político ou ideológico, mas sim uma forma de pensar e ganhar notoriedade. O filósofo Slavoj Žižek, por exemplo, acusa os defensores do “politicamente correcto” de terem um modo de pensar “totalitário”, pois dão a ilusão de escolha às pessoas, embora apenas acreditem que existe uma resposta correcta. E estão sempre dispostos a castigar quem “erra”.

 

 

 

Um pouco como o caso de uma professora portuguesa que perguntou aos alunos se eles eram contra ou a favor da pena de morte, apenas para depois considerar como respostas certas os “contra” e erradas os “a favor”. Os alunos foram castigados pela sua opinião, mas casos como este são incrivelmente comuns no nosso País, onde o sistema de ensino permite muito poucos desvios intelectuais àquilo que é considerado “oficial”.

 

 

 

A classe política, da esquerda à direita, submete-se geralmente aos desígnios dos tarados do “politicamente correcto”, com medo de perderem votos. O Partido Trabalhista britânico chegou a ter no seu programa eleitoral o cancelamento do programa televisivo de automóveis “Top Gear” (entretanto cancelado por outra causa).

 

 

Motivo desta censura a um dos programas mais populares da BBC: falar sobre automóveis, pelos vistos, incentiva “valores chauvinistas, pois a cultura automóvel está ligada a uma perspectiva antiquada da masculinidade”. E o pior é que um argumento tão caricato, uma autêntica purga estalinista, esteve quase a ser política oficial do governo do Reino Unido.

 

 

 

Em Portugal, os inocentes símbolos do nosso antigo império guardados, sob a forma vegetal, num jardim de Belém estiveram quase a ser apagados por decisão da Câmara de Lisboa, mais precisamente por obra do vereador Sá Fernandes, que considerou uma parte da história nacional como “ultrapassada” e “imperialista”.

 

 

 

Os nossos governantes precisam de acordar para o facto de que estas pessoas não têm qualquer ideologia, são apenas as coscuvilheiras de aldeia do século XXI. Seguem qualquer moda que lhes apareça à frente, sendo hoje “Charlie” e amanhã outra coisa, nunca tendo qualquer profundidade naquilo que defendem. A sua força deriva apenas do megafone das redes sociais, não tendo uma verdadeira base de apoio: apenas gritam mais alto. E é moda.

 

 
O “politicamente correcto” é uma doença da sociedade moderna. Se queremos que o bom senso regresse, temos urgentemente de deixar de dar atenção aos novos inquisidores. Eles não a merecem.

 

 
Duarte Branquinho

 

 
14/05/2015

 

 

 

 

 

 

Padre Sousa Lara. O maior exorcista português era um menino da Linha e recusou um alto cargo na banca

Aprendeu com o exorcista oficial do Vaticano. Durante dez anos seguiu-o para toda a parte, em Roma. Desde 2008 faz exorcismos todas as sextas-feiras em Lamego e já lhe passaram pelas mãos mais de 200 casos graves, alguns enviados por psiquiatras.

 

 

 

Quando conseguiu encontrar-se com o exorcista oficial de Roma, encheu-se de coragem. “Não me pode ensinar?”, perguntou-lhe. O padre Gabriele Amorth, que é de poucas conversas, olhou-o com estranheza. “Ó rapaz, tu és seminarista. Para te ensinar terias de ser, no mínimo, diácono.” Duarte Sousa Lara, acabado de chegar para estudar Teologia na Universidade de Santa Croce, da Opus Dei, insistiu. “Posso então ir consigo ver um exorcismo?”

 

 

 
Amorth, o mais famoso exorcista do mundo e que atendia 12 casos graves por semana, consentiu. E foi assim que o seminarista se juntou ao grupo de leigos que o acompanhavam e apoiavam nas sessões de expulsão do demónio. Sousa Lara passou a segui-lo para toda a parte.

 

 

Sete anos depois, tornou-se padre e teve de pedir autorização ao bispo da diocese de Lamego – que o tinha mandado para Roma para se formar – para continuar a acompanhar o exorcista. O bispo concordou e, enquanto dava aulas na universidade e preparava a tese de doutoramento, ajudava Amorth nos exorcismos. Passaram dez anos juntos. “Ele simpatizou comigo, senão não me deixava ficar tanto tempo, mas a verdade é que não me dava muita conversa. Eu era um miúdo que estava ali.

 

 

De vez em quando, lá explicava uma coisa ou outra, do género ‘agora vamos ter um caso em que toda a família está mal’, e pouco mais”, recorda.

 

 

 

Em 2008, a diocese pediu-lhe que regressasse a Portugal para trabalhar em três paróquias, mas Sousa Lara queria mesmo era continuar a fazer exorcismos. O bispo aceitou nomeá-lo exorcista oficial da diocese, ainda que com uma condição: teria de assegurar, ao mesmo tempo, o trabalho nas três igrejas que lhe destinara inicialmente.

 

 

 

Nos últimos oito anos, o padre Sousa Lara atendeu, numa casa nas traseiras do Santuário de Lamego, mais de 200 possessões graves – casos em que foram precisas várias sessões de exorcismo. Desses, cerca de 150 já estão resolvidos e 60 continuam a dar trabalho. Todas as semanas recebe mais de 50 pedidos de ajuda, que chegam por carta e email, mas só atende os seis mais graves.

 

 

No entanto, ninguém fica sem resposta: há uma equipa de ajudantes que contacta todas as pessoas, se inteira dos casos, aconselha soluções e acompanha os progressos. A maioria dos problemas, garante o exorcista, ficam resolvidos com uma simples confissão, idas à missa, comunhão e orações diárias.

 

 

Padre Sousa Lara - O maior exorcista português2
Todas as semanas, Duarte Sousa Lara recebe mais de 50 pedidos de ajuda, por carta e email.

 

 

 
Já os casos graves precisam, sobretudo, de paciência. “Há situações que demoram anos a resolver, mesmo com várias sessões e missas diárias.” Entre cada exorcismo, é preciso fazer trabalho de casa: “Confissão uma vez por mês, comunhão e missa diárias, terço e oração de libertação também todos os dias. Isto é o mínimo que se tem de fazer entre cada sessão e, se as pessoas não cumprirem isto, não continuo os exorcismos”, avisa.

 

 

 
Quase todas as pessoas que lhe escrevem, desesperadas e com sintomas estranhos, são católicas não praticantes. E a maioria andou em bruxos, adivinhos e videntes. Outras foram vítimas de bruxarias. Para perceber a origem dos distúrbios, o exorcista começa por conversar com os exorcizados. Há quanto tempo começaram os sintomas? Alguma coisa mudou, nessa altura? As respostas não costumam variar: “As pessoas recuam no tempo e percebem que ou se zangaram com alguém ou mudaram de emprego, e isso suscitou inveja, ou se casaram contra a vontade de um sogro ou de uma sogra e, pelo meio, apareceu um sapo com a boca cozida à porta de casa. Ouço destas histórias às dezenas.”

 

 

 

Os sintomas da possessão Sousa Lara trabalha de perto com um psiquiatra e um psicólogo, com quem discute os casos. E que lhe enviam pacientes que não conseguem tratar. “Pessoas que, mesmo debaixo de medicação fortíssima, continuam a desmaiar ou a ter distúrbios muito graves”, conta. Com o avançar das sessões, os sintomas começam a desaparecer porque o demónio vai enfraquecendo, até decidir ir-se embora.

 

 

 

Os sintomas da influência e da possessão diabólica são, por vezes, difíceis de identificar: distúrbios fisiológicos e psicológicos que a medicina não consegue explicar. Muitas vezes, os possessos começam a adivinhar coisas, falam em línguas estranhas, desmaiam sem ter doenças diagnosticadas, têm alucinações. O demónio, conta Sousa Lara, “age muito sobre os sentidos”. São comuns os casos de pessoas que ouvem estalos e barulhos de noite, vêem vultos, sentem cheiros anormais e têm dores de cabeça persistentes e incapacitantes que não passam com nenhum tipo de medicação. Depois, há os distúrbios ligados à casa: ouvir o som de torneiras abertas sem que haja água a correr, electrodomésticos que se ligam e desligam sozinhos.

 

 

 
Atende os graves, mas ninguém fica sem resposta. A confissão resolve a maioria dos casos.

 

 

 

Nos casos mais graves, os exorcizados entram em transe e não se recordam de nada do que aconteceu ou do que disseram nas sessões. Há quem precise de ser amarrado (Sousa Lara tem uma cama de hospital para as situações mais delicadas) e que, mesmo assim, tenha de ser segurado por várias pessoas. “Ganham uma força inexplicável”, descreve. No exorcismo, é o diabo quem fala pela pessoa. Grita, ameaça, cospe, morde, goza. “Alguns até cantam.”

 

 

 
Há oito anos, quando começou a fazer os exorcismos, as freiras que vivem na parte de cima do edifício queixaram-se. Aquilo não podia continuar: todos os dias, um aparelho eléctrico diferente rebentava: ora era o microondas, ora a máquina de lavar. Até que o quadro eléctrico da casa pura e simplesmente ardeu. “Fui lá, rezei com elas e nunca mais voltou a haver problemas”, conta o exorcista.

 

 

 
Sousa Lara garante, aliás, que nunca teve questões de maior com o diabo. “O demónio é como aqueles cães muito pequeninos que ladram muito, mas depois fogem a correr”, garante. Uma vez, num exorcismo, foi ameaçado de morte: “Vou-te fazer cair da mota”, disse-lhe o demónio. Ignorou-o completamente e continuou a andar à vontade pelos montes em redor de Lamego: “Continuei a cair, como já tinha caído antes.” Nenhum católico praticante deve, aliás, ter medo. “O demónio tem muito receio das pessoas que andam com Deus”, garante o exorcista. Talvez por isso, Sousa Lara nunca passou por nenhum episódio digno de filme de terror fora dos exorcismos. “É muito cansativo. Isto suga, consome muitíssimo, como se fosse um desporto violento.”

 

 

 
De beto da Linha a padre Duarte Sousa Lara está prestes a fazer 40 anos e, até aos 20 e poucos, nunca tinha pensado em ser padre. Muito menos imaginava tornar-se exorcista. Era um menino da Linha de Cascais e o mais velho de cinco irmãos de uma família rica. Cresceu no Estoril, ao pé da praia, e quando acabou o curso de Gestão na Universidade Católica, o pai arranjou-lhe um lugar na administração de um grande banco. Por essa altura, pensava casar, queria ter dez filhos e comprar uma quinta com uma pista de motocrosse.

 

 

 

 

Nas férias entretinha-se com o bodyboard no Guincho, as namoradas e as motas. E enquanto os irmãos iam para acampamentos católicos, ele fazia-se à estrada rumo ao Alentejo, onde uns tios tinham um monte.

 

 

 

Desmontava peças da mota, voltava a montá-las, participava em provas de todo-o–terreno e não perdia uma edição da Baja Portalegre. Aos 19 anos, a irmã perguntou-lhe se queria ser animador num acampamento na zona de Santarém. Eram 60 miúdos, com idades entre os 14 e os 16, 15 monitores pouco mais velhos e católicos “à séria”, um padre e alguns casais.

 

 

Ele também ia à missa todos os domingos, mas os outros tinham uma caminhada “mais forte”: estavam, por exemplo, ligados a movimentos da Igreja. “Percebi que havia pessoas da minha idade para quem a fé era uma coisa muito importante.” Gostou da ideia e até com o padre – que foi de mota para o acampamento – simpatizou. Mas o clique deu-se em Fátima, visita obrigatória no acampamento.

 

 

 

A mensagem mariana mexeu com ele: o céu existe, o inferno também, é preciso rezar, muita gente vai para o inferno porque ninguém faz nada e a coisa não está famosa.

 

 

 

 

A partir desse Verão, começou a rezar o terço e a ir à missa todos os dias e passou por vários movimentos católicos. Meteu na cabeça que havia de ser santo, mas um santo moderno: havia de casar, ter os dez filhos e comprar a quinta com a pista de motocrosse. Sempre que ganhasse uma prova nas motas – o sonho era aparecer na revista favorita, a “Motojornal” –, falaria ao mundo sobre as coisas de Deus. Seria, portanto, um santo de mota que bebia Coca-Cola, comia gelados Santini e ia à praia do Guincho.

 

 

 

Ainda hoje pensa assim: “As pessoas têm uma imagem da santidade um bocado deformada. Pensa-se que ser santo é fazer penitência e rezar muitas horas, mas ser-se santo é amar em tudo o que se faz, a única coisa incompatível com o amor é o pecado. Quem ama não mata, não rouba, não mente. Tudo aquilo que é honesto é matéria–prima para me santificar e eu percebi que Deus precisava e precisa de santos normais no meio do mundo.”

 

 

 

O projecto de vida estava desenhado. Só não contava com o chamamento para o sacerdócio. “Fiquei muito triste quando senti a necessidade desse caminho porque, se eu fosse para padre, não poderia fazer nada do que tinha planeado para a minha vida. Quem é que iria ser santo a ganhar provas de mota? Quem iria ser santo a comer pastéis de Belém e a ir para o Guincho? Eu tinha construído um plano que achava perfeito.”

 

 

 
Nessa altura, estava a meio do curso de Gestão na Católica e começou a perder horas de sono, até porque a pressão intensificava-se. Quando abria a Bíblia ao acaso, calhava-lhe sempre a passagem do jovem rico – a história, repetida em três evangelhos, do rapaz rico que pergunta o que é preciso para ir para o céu. “Cumprir os mandamentos”, responde-lhe Jesus. “Mas isso eu já faço.” Jesus manda-o, então, desfazer-se todos os bens e segui-lo. Aquilo era um sinal: Duarte Sousa Lara era o jovem rico, mas dos tempos modernos.

 

 

 
Duarte Sousa Lara tem fama de austero e acorda todos os dias às seis da manhã. Meia hora depois, já está a rezar. Todos os dias reza quatro terços e celebra missa.

 

 

 

 

Decidiu que, quando acabasse o curso, experimentaria o seminário durante um ano. Com a esperança e a certeza de que não daria certo. Mas, assim, ficava de consciência tranquila. “Ninguém me podia culpar por não ter tentado: ia para o seminário, eles percebiam que eu não tinha jeito para aquilo, mandavam–me para casa e ficava tudo bem.” À medida que o curso ia chegando ao fim, a vontade de ser padre aumentou e, antes de embarcar para São Paulo, no Brasil, para estagiar num grande banco, já sabia que a carreira não passava por aquilo.

 

 

 

Num dia de anos, véspera de terminar a licenciatura, juntou a família. Na festa, antes de apagar as velas, fez o anúncio: “Amanhã acabo o curso e a seguir vou para o seminário.” O pai respondeu logo que não era nada que não se estivesse já a adivinhar, mas não gostou da ideia. Tinha outros projectos para o filho mais velho e arranjara-lhe até um lugar na administração de um grande banco.

 

 

 
Não demorou muito tempo até que Sousa Lara embarcasse num avião com destino a Roma: não queria estudar teologia em Portugal, porque achava que muitos professores não ensinavam o catecismo católico como ele realmente é. Como bom gestor, foi a Itália fazer um “estudo de mercado” sobre as universidades que havia. Enviado pela diocese de Lamego, acabou na Santa Croce, a universidade da Opus Dei. E um semestre depois de acabar o curso, já estava a dar aulas, ao mesmo tempo que acabava o doutoramento.

 

 

 

Cartas de um exorcista Três vezes por ano, nas férias da Páscoa, do Natal e no Verão, voltava a Lamego. Sempre que encontrava um caso de perturbação diabólica, tentava resolver o problema, mas o bispo tinha de autorizar os exorcismos um a um, porque Sousa Lara só tinha permissão para exorcizar em Roma. A 20 de Março de 2008, e pouco tempo depois de regressar definitivamente a Portugal, foi nomeado exorcista oficial da diocese de Lamego. Desde então, tem autonomia para fazer os rituais.

 

 

 

Os pedidos de socorro foram aumentando ao longo dos anos e Lamego passou a receber cada vez mais pessoas desesperadas e vindas de todas as partes do país. Sousa Lara ainda tentou tratar do assunto como mandam as regras: “Com a autorização do meu bispo, escrevia cartas aos bispos das dioceses das pessoas.

 

 

 
Explicava que estavam mal, que precisavam de ajuda e perguntava se seria possível que um padre as acompanhasse, de maneira a não terem de fazer tantos quilómetros até Lamego.” Alguns bispos lidaram mal com o pedido. Houve quem lhe escrevesse de volta a dizer que estava enganado e que as pessoas não precisavam de acompanhamento nenhum. Outros foram-se mesmo queixar ao bispo de Lamego. “Um dia, o meu bispo chamou-me e disse-me: ‘Não escrevas mais directamente aos bispos. Manda as cartas para mim, que eu depois entrego-as.’”

 

 

 

Apesar de a Igreja Católica continuar a defender, no catecismo, que o inferno e o demónio existem e que a oração do exorcismo é eficaz, muitos padres, especialmente os mais jovens, não acreditam. Por isso, há quem olhe para ele como se fosse um lunático – apesar de o Papa Francisco ter chamado a atenção, nos últimos dois anos, para a importância do combate ao demónio. Apesar de tudo, também houve reacções positivas por parte do clero português. Um bispo, depois de receber uma das cartas, decidiu nomear um exorcista oficial para a sua diocese.

 

 

 

A luta contra o demónio Os três exorcistas da Igreja portuguesa não têm mãos para tantos casos. E, em Lamego, o excesso de trabalho obriga a uma agenda disciplinada e planeada ao minuto. “Tento ter uma vida equilibrada. À segunda é o meu dia de retiro, à terça estudo para poder pregar, à quarta é o dia do correio e de ler os novos pedidos de ajuda, à quinta faço direcção espiritual e confissões e às sextas são os exorcismos”, conta Sousa Lara.

 

 

 

Tem fama de austero e acorda todos os dias às seis da manhã. Meia hora depois, já está a rezar. A oração dura até às oito da manhã. Antes do almoço, já está outra vez a rezar o terço – todos os dias reza um rosário (quatro terços). Ao final do dia celebra uma missa e reza as vésperas e, a seguir ao jantar, volta a rezar. Pelo meio, trabalha. A rotina é muito diferente da de alguns padres católicos, que não rezam tanto quanto deveriam. “O nosso equilíbrio espiritual está muito ligado à oração, que é fundamental para a união com Deus. É como num namoro: se dois namorados não se encontram e não falam, a relação não pode ter grande futuro”, explica.

 

 

 
Também ao contrário de muitos padres, Sousa Lara faz questão de andar sempre de batina preta – só a despe para dormir e andar de mota. “As pessoas não sabem, mas é obrigatório os padres andarem sempre identificados. O sacerdócio é um ministério público e temos de estar prontos e disponíveis para receber qualquer pessoa que precise de um padre, a qualquer hora e em qualquer lugar.” Culpa da batina, já confessou pessoas em todo o tipo de sítios. Até no aeroporto, enquanto esperava pelas malas. Até podia andar só com o cabeção, como a esmagadora maioria dos colegas, mas gosta de citar um amigo que uma vez lhe disse, em Roma: “Gosto que se veja à distância que sou padre.”

 

 

 

Com o sacerdócio e os exorcismos, a quinta, a pista de motocrosse, o casamento e os dez filhos ficaram para trás. Já depois de ser padre, aconteceu-lhe uma espécie de milagre: ganhou a Baja de Portalegre e apareceu em dois números da “Motojornal”, na capa. Falou de Deus, como tinha sonhado em miúdo.

 

 

 

 

Ricardo Castelo
Rosa Ramos

 

Jornal i

 

16/05/2015