Encalhado. O Endurance, preso no gelo da Antártida, em 1915.
Há 100 anos, 28 homens partiram a bordo de um navio rumo à Antártida para procurar um feito único: atravessar o continente a pé. O que aconteceu depois de encalharem num banco de gelo é uma das mais extraordinárias histórias de sobrevivência de sempre.
Com extremo cuidado, o Endurance avançava lentamente contornando enormes icebergues no mar de Weddell, na Antártida. A tempestade da véspera – que detivera o navio numa espessa placa de gelo – amainara o suficiente para permitir à tripulação içar as velas e navegar por entre densas massas de picos gelados. Aproveitando um longo canal de água que se abrira junto à base de um glaciar, o navio conseguiu percorrer 38 quilómetros até encalhar de novo.
Nessa noite, os 28 tripulantes deitaram-se com a esperança de que o amanhecer trouxesse melhores condições para prosseguir viagem até à baía de Vhasel, a menos de um dia de distância. Nenhum imaginava que o Endurance já não sairia dali, afundando-se dez meses depois, esmagado pelo gelo, e deixando-os entregues à sua sorte. Estávamos a 18 de janeiro de 1915.
Meses antes, em agosto, o Endurance zarpara do porto de Plymouth, no Reino Unido, numa expedição à Antártida liderada por Ernest Shackleton, um dos mais conceituados exploradores polares da época.
Depois de Roald Amundsen ter conquistado o Polo Sul, em 1911, Shackleton perseguia o último grande prémio ainda não reclamado da exploração antártica: a travessia a pé do continente. Chamou-lhe Expedição Transantártica Imperial e seria o último sopro da Idade Heróica da Exploração da Antártida.
“Do ponto de vista sentimental, é a última grande viagem polar que resta fazer. (…) a maior e mais extraordinária de todas as viagens: a travessia do continente”, escreveu Shackleton no prospeto da expedição.
O navio seguira em direção a sul, passando pela Madeira, Montevideu e Buenos Aires, onde Shackleton se juntaria à tripulação, juntamente com 69 cães de trenó canadianos. A paragem seguinte, onze dias depois, seria nas remotas estações baleeiras da ilha da Geórgia do Sul, situada às portas do Círculo Polar Antártico.
Ficam um mês em terra, à espera que o verão austral derreta algum gelo no mar. Em vão. Quando retomam viagem, o Endurance progride despedaçando grandes blocos de gelo. “Sentimos uma grande admiração pelo nosso pequeno e robusto barquito”, escreve Frank Hurley, o fotógrafo da expedição, no seu diário de viagem, citado no livro “O Endurance – Encurralados no Gelo”, de Caroline Alexander, que acaba de chegar ao mercado português.
ENCURRALADOS NO GELO
Com bravura, percorrem em seis semanas mais de 1600 quilómetros de bancos de gelo até ao fatídico dia. Dessa vez, o gelo comprime de tal forma que aprisiona o navio. Durante dias, semanas, meses, a tripulação desespera para poder seguir viagem. Em julho, Shackleton antecipa o pior: “Está quase a chegar o fim… O navio não vai aguentar mais. (…) O que o gelo agarra, o gelo não larga”. A 21 de setembro, 10 meses depois de terem encalhado, os 28 homens observam impotentes o Endurance a afundar-se. Estavam entregues à sua sorte, sem possibilidade de resgate.
Durante os dez meses em que o navio esteve aprisionado, a tripulação organizou jogos de futebol para fintar o tédio, equipa de bombordo contra a de estibordo. Ao domingo, as sessões de canto eram um acontecimento. As noites eram animadas por Leonard Hussey, o popular meteorologista e exímio tocador de banjo. Quando, em maio, o sol desaparece por completo por quatro meses, uns refugiam-se no xadrez, outros preferem as cartas e as damas, e outros ainda os livros ou jogos de adivinhas. Focas e pinguins tornam-se alimentos de eleição.
“É quase impossível de conceber, mesmo para nós, que estamos em cima de uma jangada de gelo colossal, com apenas 1,5 metros de gelo a separar-nos de um oceano com 2 mil braças de profundidade”, escreve Hurley no diário.
O banco à deriva deslocava-se por vezes três quilómetros num dia. A 7 de abril, já depois dos últimos cães terem sido abatidos para alimentar o grupo, os picos da ilha Elefante surgem no horizonte. Dois dias depois, o gelo quebra o suficiente para os homens se lançarem finalmente à água, num bote salva-vidas do Endurance que tinham conseguido salvar. A terra estava à vista mas a sua provação apenas começara.
POR FIM TERRA
Depois de 13 meses presos no gelo, e mais seis dias num mar agitado e com correntes imprevisíveis, pisavam finalmente terra firme, pela primeira vez em 497 dias. Os homens estavam maltratados, extenuados e tensos. Havia quem não dormisse há 90 horas. Alguns, mal pisaram a areia da praia, vaguearam em ziguezague, como se estivessem alcoolizados. Outros pareciam ter ensandecido. Um dos marinheiros pegou num machado e só parou depois de matar 10 focas.
A ilha era um local inóspito, afastado de qualquer rota marítima. Por isso, oito dias depois do desembarque, Shackleton toma uma decisão que viria a ser decisiva para o resgate do grupo: ele e cinco outros homens navegariam no maior dos botes, o James Caird, rumo à Geórgia do Sul, e aí pediriam ajuda para resgatar o resto do grupo. Poucos acreditavam no sucesso da missão: a ilha estava a 1300 quilómetros de distância, dez vezes mais do que haviam acabado de percorrer. Em pleno inverno, num barco aberto de 7 metros de comprimento, teriam que enfrentar ventos de 130 km/h, vagas de 20 metros e navegar às cegas num mar hostil. Antes de partir, Shackleton deixa uma carta a Frank Wild, que fica responsável pelo grupo da ilha Elefante:
“Caro Senhor
Na eventualidade de eu não sobreviver à viagem de barco até à ilha da Geórgia do Sul, deverá fazer o melhor que puder para salvar resto do grupo. (…) Transmita o meu amor a todos os meus e diga-lhes que dei o meu melhor”
Ernest Schackelton
Os seis homens chegam sãos e salvos à Geórgia do Sul. Tinham enfrentado as condições mais adversas que um marinheiro pode encontrar e completado uma das grandes viagens marítimas de todos os tempos. Mas ainda era cedo para cantarem vitória.
Em mais uma prova de resistência, Shackleton e dois tripulantes ainda têm que caminhar durante 36 horas sem descanso por um território gelado e adverso, que não conheciam, para chegar à estação baleeira mais próxima. No seu livro “South”, o explorador resumiria assim essa travessia: “Tínhamos sofrido, passado fome e triunfado, tínhamos sido humilhados mas vislumbrámos a glória (…). Tínhamos visto Deus no Seu Esplendor e ouvido a voz da Natureza. Tínhamos alcançado a alma nua do homem”.
Estávamos em maio de 1916. No final de agosto, mais de ano e meio depois de ter ficado presa no gelo, a restante tripulação do Endurance seria resgatada na ilha Elefante por um pequeno rebocador disponibilizado pelo governo do Chile, depois da recusa do almirantado britânico em ceder um navio, por causa dos esforços da I Guerra Mundial. Quando alcançou a ilha, Shackleton contou 22 silhuetas. Todos os homens tinham sobrevivido. Na carta que enviaria à mulher, escreveu apenas. “Consegui. Maldito almirantado… Não perdemos um único homem e atravessámos o inferno”.
*Fotos retiradas do livro “O Endurance – Encurralados no Gelo”, de Caroline Alexander (Planeta)
Nelson Marques (texto) Frank Hurley* (fotos)
18/01/2015