O protagonismo dos capitães no fim do regime não seria possível sem a degradação das relações políticas e institucionais entre alguns oficiais generais e a liderança civil. Guerra colonial, 3º artigo.
O regime político liderado por Américo Thomaz e Marcello Caetano caiu como consequência de um pronunciamento militar cuja preparação e execução coube, essencialmente, a capitães e majores do Exército. Esse facto levou a que se concluísse que teria cabido, senão exclusiva, pelo menos predominantemente a este corpo intermédio da oficialidade a responsabilidade pelo êxito político e militar dos eventos ocorridos a 25 de Abril de 1974. Depois desta data, aliás, não cessaram os exercícios de reconhecimento do papel dos “capitães” na restituição da liberdade e da democracia aos portugueses, além do protagonismo tido naquilo que foi o rápido reconhecimento do direito à autodeterminação e independência dos povos submetidos à tutela colonial portuguesa.
A promoção dos “capitães” foi obra de muitos. Desde os próprios protagonistas dos acontecimentos, até aos jornalistas, historiadores, sociólogos ou outros académicos que têm procurado analisar e interpretar a queda daquele que era em 1974 o mais antigo regime autoritário da Europa ocidental, mas também o processo “revolucionário” e a “transição” que se lhe seguiriam.
O protagonismo dos “capitães” foi antecedido pela movimentação de alguns generais.
No entanto, um olhar mais atento para a história das relações entre o poder civil e poder militar, ou entre as instituições e protagonistas civis e militares do salazarismo e do marcelismo durante os anos da guerra (1961-1974), permitem-nos perguntar se o protagonismo assumido pelos “capitães” no derrube do regime autoritário português não terá sido possível sobretudo pelo facto de no decurso daquele período de treze anos, e em especial na sua fase derradeira, se ter assistido a uma degradação das relações políticas e institucionais entre alguns oficiais generais e a liderança civil do regime.
Foi esta degradação, cujos protagonistas, principais sintomas e cronologia procurarei identificar, que criou na instituição militar, e em especial no Exército, uma erosão acelerada e parcialmente consentida dos princípios de respeito pela hierarquia, mas também dos pressupostos de obediência do poder militar ao poder civil (na imagem, a inconsequente manifestação de lealdade de oficiais superiores a Marcelo Caetano a 14 de Março de 1974).
Tivessem oficiais generais como António de Spínola e Kaúlza de Arriada resistido à tentação de fazerem política fora dos parâmetros em que a tinham feito durante as suas passagens pela Guiné e por Moçambique e muito provavelmente o “movimento dos capitães” nunca teria conseguido derrubar um Governo, um regime e um império.
Estes factos permitiram que uma conspiração político-militar inicialmente com propósitos e pressupostos estritamente “corporativos” ou “profissionais” evoluísse para a preparação e execução de um pronunciamento, ou golpe, militar que varreu um Governo com menos de seis anos, um regime com mais de quarenta e um, uma ordem social centenária e um império começado a construir quinhentos e sessenta anos antes.
Aqui não me interessa detalhar as razões e os passos que foram dados pelos capitães a partir do ano de 1973 e que lhes permitiram sair vitoriosos em Abril de 1974, mas apenas historiar alguns acontecimentos e, sobretudo, algumas acções e omissões protagonizadas por chefes militares que criaram condições para que uma conspiração envolvendo oficias intermédios do chamado quadro permanente se materializasse.
AS DIFÍCEIS RELAÇÕES ENTRE PODER CIVIL E PODER MILITAR
Apesar de o Estado Novo ter saído de uma ditadura militar que durou sete anos incompletos (1926-1932), foram recorrentemente difíceis as relações entre o poder civil e várias sensibilidades e figuras do poder militar entre 1933 e 1974. Independentemente das sucessivas purgas que sofreram as Forças Armadas e, em especial, o Exército, aquelas como este foram sempre o espelho das correntes políticas e ideológicas que constituíam e dividiam o tecido social português.
Grande parte da década de 1930, os anos do pós-Segunda Guerra Mundial e o quadriénio iniciado em 1958 e concluído em 1961, foram momentos da história política do Estado Novo em que o regime e a sua liderança se sentiram, se é que não estiveram, efectivamente ameaçados na sua existência como consequência de conspirações mais ou menos surdas arquitectadas ou sancionadas por oficiais-generais.
Tanto depois de 1926, como de 1933, de 1945 ou de 1958-61, as Forças Armadas conviveram com oficiais e sargentos mais conservadores ou mais liberais, com simpatias fascistas, socialistas ou comunistas, com católicos e anticlericais, com monárquicos e republicanos. De qualquer modo, ao longo daqueles quarenta e um anos foram essencialmente os oficiais superiores e os oficiais-generais das Forças Armadas (sobretudo do Exército) a avalizarem e a protagonizarem situações de contestação e de oposição a certos membros do Governos, à sua chefia e/ou às suas políticas, mas também de golpismo que pretendia ora apenas afastar Salazar, salvaguardando a Presidência da República sempre nas mãos de um militar, ora derrubar o próprio regime.
Grande parte da década de 1930, os anos do pós-Segunda Guerra Mundial e o quadriénio iniciado em 1958 e concluído em 1961, foram momentos da história política do Estado Novo em que o regime e a sua liderança se sentiram, se é que não estiveram, efectivamente ameaçados na sua existência como consequência de conspirações mais ou menos surdas arquitectadas ou sancionadas por oficiais-generais. Além disso, o oposicionismo clássico ao Estado Novo, percebendo a força e o prestígio político e social dos militares, recorreu a figuras como os generais Norton de Matos e Humberto Delgado e o vice-almirante Quintão Meireles para enfrentarem os candidatos do Governo nas “eleições” presidenciais de 1949, 1958 e 1951, respectivamente (Humberto Delgado e Quintão Meireles tinham, aliás, sido activos apoiantes e colaboradores da Ditadura Militar e do Estado Novo, nele desempenhando cargos de grande ou alguma relevância política).
O choque entre Adriano Moreira, ministro do Ultramar (na foto) e o general Venâncio Deslandes, governador de Angola, terminou com Salazar a demitir os dois.
É verdade que o fracasso do golpe Botelho Moniz em Abril de 1961 inaugurou um período de relativa acalmia nas relações entre o poder civil e o poder militar. Mas também é verdade que logo naquele ano, com a nomeação do general Venâncio Deslandes para exercer as funções de governador-geral e comandante-chefe das Forças Armadas em Angola, se abriu a porta à criação de incidentes políticos graves entre o general, e os interesses que alegada ou realmente representava naquele território, e, pelo menos, o ministro do Ultramar, Adriano Moreira. Os incidentes seriam sanados com a exoneração de ambos pelo presidente do Conselho em 1963.
Por outro lado, e ainda em 1961, a derrota militar portuguesa na Índia fez com que se reconstituísse um ambiente de desconfiança entre poder civil e poder militar. No entanto, e até ao momento da substituição de Salazar por Marcello Caetano na Presidência do Conselho, como nos primeiros anos do mandato de Marcello Caetano, a oficialidade — e em especial os oficiais-generais — reduziu ao mínimo as críticas ao poder civil, parecendo concordar com a decisão de se aceitar e manter uma guerra de contra-insurgência, defensiva, ou talvez essencialmente conservadora e parcimoniosa no uso de recursos, na sua abordagem tanto táctica como estratégica, primeiro num e depois em mais dois territórios ultramarinos.
Tanto em 1968, como nos anos anteriores ou imediatamente subsequentes, parecia haver uma quase lua-de-mel entre lideranças militares e lideranças civis que fizera esquecer o annus horribilis de 1961.
É verdade que os oficiais-generais mantiveram uma atitude reivindicativa junto do poder civil no que diz respeito à disponibilização de maior quantidade e qualidade de meios materiais e humanos para que, alegavam, pudesse ser cumprida com eficácia e menores custos em vidas humanas a missão que fora atribuída às Forças Armadas pelo poder político. E nos casos da Guiné e de Angola, as chefias militares no terreno alertaram, na segunda metade da década de 1960, para aquilo que seria uma degradação da situação militar portuguesa.
No entanto, tanto em 1968, como nos anos anteriores ou imediatamente subsequentes, parecia haver uma quase lua-de-mel entre lideranças militares e lideranças civis que fizera esquecer o annus horribilis de 1961. Mas este equilíbrio, por mais genuíno ou artificial que fosse, viria a romper-se com consequências decisivas e para muitos na altura totalmente imprevisíveis.
Kaúlza e Spínola chegaram a conversar pessoalmente sobre se, quando e como deveria Marcello Caetano ser levado a abandonar a Presidência do Conselho. Mais: procuraram criar espaço para uma intervenção política – sob a ameaça de uma intervenção militar – que permitisse a aplicação das suas estratégias.
A CRISE FINAL
As tensões e conflitos entre poder civil e poder militar regressaram na fase derradeira daquele que foi o segundo terço (1971-72) do consulado de Marcello Caetano. Aliás, quando sucedeu a Salazar em Setembro de 1968, Caetano foi avisado por Américo Thomaz, em nome das chefias militares, que em caso algum estas aceitariam hesitações ou mudanças de rumo na questão da defesa político-militar do “Ultramar”.
Spínola cultivou na Guiné um estilo de liderança muito próximo dos seus homens
Os desafios que se colocam neste passo da narrativa é então tentar perceber, em primeiro lugar, por que razão esta deterioração da relação do poder civil com o poder militar ocorreu neste momento e não anterior ou posteriormente; e por que razão foi protagonizada essencialmente por dois generais que desempenharam funções de liderança político-militar, ou apenas militar na Guiné e em Moçambique, respectivamente.
Para Spínola, urgia criar canais de diálogo com nacionalistas guineenses (sobretudo) e aprofundar e acelerar um programa de reformas políticas e sociais que entregassem aos africanos mais poder político e produzissem uma melhoria das suas condições de vida.
A resposta óbvia às duas interrogações é a de que em 1971-72, e depois em 1973, quando os generais António de Spínola e Kaúlza d’Arriaga estavam, primeiro, prestes a abandonar os seus cargos na Guiné e em Moçambique, e, depois, acabam efectivamente por os deixar, teriam entrado em rota de colisão com o poder civil quanto à forma como este estaria a lidar com o problema colonial tanto numa perspectiva político-diplomática como militar.
Para Spínola, urgia criar canais de diálogo com nacionalistas guineenses (sobretudo) e aprofundar e acelerar um programa de reformas políticas e sociais que entregassem aos africanos mais poder político e produzissem uma melhoria das suas condições de vida. Segundo Spínola, a situação militar avançava a passos largos no sentido de uma degradação que podia ser irreversível, caso as suas propostas não fossem adoptadas.
Kaúlza d’Arriaga acreditava numa vitória militar em Moçambique.
Pelo seu lado, Kaúlza d’Arriaga fazia uma apreciação globalmente positiva da situação militar. Mas insistia numa alteração pronunciada daquela que era a abordagem do problema político-militar suscitado pela guerra. Reclamava nomeadamente que se procedesse a uma unificação dos comandos militares moçambicano e angolano, que houvesse uma maior e mais pronunciada colaboração com rodesianos e sul-africanos. Pretendia ainda que se passasse a usar uma estratégia militar activa (search/seek and destroy) inspirada nos métodos utilizados pelos norte-americanos no Vietname e pelos britânicos no combate à insurgência malaia.
Kaúlza d’Arriaga fazia uma apreciação globalmente positiva da situação militar, mas insistia numa alteração pronunciada daquela que era a abordagem do problema político-militar suscitado pela guerra.
No entanto, e havendo muito de verdade nesta narrativa, certo é que uma vez terminadas as suas missões ambos os generais não se limitaram em analisar e apresentar ao poder civil a sua leitura sobre a evolução da guerra (passada, presente e futura). Tentaram, recorrendo a meios até então nunca usados na contestação feita por chefes militares ao regime — e sendo certo que as circunstâncias eram outras –, forçar o poder civil e as chefias militares a aceitarem as suas propostas para a resolução do conflito político-militar. Ao mesmo tempo, procuraram e conseguiram intervir na esfera de acção do poder político civil, ao desdobrarem-se em iniciativas que, sobretudo no caso de Spínola, não só estavam totalmente fora do âmbito da acção de um militar – mesmo com o seu prestígio e o seu posto (general vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas) – como enfraqueciam, ou podiam enfraquecer, a curto e a médio prazo, a capacidade de reflectir, decidir e agir por parte do poder político civil.
Neste contexto, realizou-se o Congresso dos Combatentes em Junho de 1973, organizado por oficiais próximos do general Kaúlza de Arriaga, e formou-se e consolidou-se o movimento dos capitães, possuindo inicialmente uma expressão essencialmente corporativa e que desde finais de 1973 o general de Spínola tentou manipular politicamente em proveito das suas ambições.
António de Spínola e Kaúlza de Arriaga não partilhavam aquela que era a visão estratégica do poder civil, e também de muitos oficiais-generais, sobre a melhor forma de actuar política e/ou militarmente para tentar resolver ou pelo menos melhorar substancialmente a posição portuguesa na guerra em curso. Chegaram a conversar pessoalmente sobre se, quando e como deveria Marcello Caetano ser levado a abandonar a Presidência do Conselho. Mais: procuraram criar espaço para uma intervenção política – sob a ameaça de uma intervenção militar – que permitisse a aplicação das suas estratégias.
Neste contexto, realizou-se o Congresso dos Combatentes em Junho de 1973, organizado por oficiais próximos do general Kaúlza de Arriaga, e formou-se e consolidou-se o movimento dos capitães, possuindo inicialmente uma expressão essencialmente corporativa e que desde finais de 1973 o general de Spínola tentou manipular politicamente em proveito das suas ambições. Estas duas iniciativas mostram de que modo aqueles dois chefes militares estavam dispostos a usar o seu prestígio junto de jovens oficiais, assim como as pretensões eventualmente legítimas destes do ponto de vista corporativo e político, para conquistarem apoios que lhes permitissem pôr em cheque, ou mesmo derrubar, o Governo em funções ou o próprio regime político-jurídico.
O EXEMPLO GAULLISTA
Independentemente de terem agido por ambicionarem, ou não, a chefia do Estado ou do Governo (algo que uma preservação do status quo não lhes permitia conquistar), e de considerarem que apenas na posse de poder político civil podiam resgatar os interesses do país salvaguardando sempre a integridade do império e a manutenção de laços de (inter)dependência política entre metrópole e ultramar, a verdade é António de Spínola e Kaúlza de Arriaga não eram insensíveis àquilo que consideravam ser as capacidades únicas das Forças Armadas para resolverem a questão colonial portuguesa nas suas ramificações, nacionais, coloniais e internacionais.
Os dois generais estavam possuídos de uma noção que lhes parecia bastante clara e completa sobre o protagonismo que os militares franceses tiveram, ou procuraram ter, na resolução dos problemas políticos suscitados pela guerra na Argélia (1954-1962), com destaque para a figura do general De Gaulle — que António de Spínola, mais do que Kaúlza de Arriaga, consciente ou inconscientemente, terá pretendido emular.
Esta percepção sobre a capacidade única dos militares decorria de muitos factores. Em primeiro lugar, julgavam-se na posse de uma legitimidade própria que decorria dos papéis político-militares que tinham desempenhado a partir de 1961, mas sobretudo depois de 1968 e 1970. Em segundo lugar, tinham presente o papel que outros militares portugueses (os “africanistas”), entre finais do século XIX e o período entre guerras, haviam tido na tentativa, eventualmente bem-sucedida de resolução da citada questão colonial. Mas em terceiro lugar, e finalmente, estavam certamente possuídos de uma noção que lhes parecia bastante clara e completa sobre o protagonismo que os militares franceses tiveram, ou procuraram ter, na resolução dos problemas políticos suscitados pela guerra na Argélia (1954-1962), com destaque para a figura do general De Gaulle — que António de Spínola, mais do que Kaúlza de Arriaga, consciente ou inconscientemente, terá pretendido emular.
É claro que, e ao contrário daquilo que pensavam, não só aqueles dois generais não eram, politicamente, De Gaulle, como a Argélia não era a Guiné, Angola ou Moçambique e, sobretudo, uma subversão da ordem político-constitucional como aquela que aconteceu na Argélia e em França em Maio-Junho de 1958 não era a mesma coisa, nem produziria os mesmos resultados, que um pronunciamento militar pensado e executado por “capitães” em Portugal dezasseis anos mais tarde…
Desfile militar de soldados do MPLA no interior de Angola, ainda antes do fim da guerra colonial.
Mas ao fim ao cabo a ambição e o voluntarismo de dois chefes militares que procuraram, ganharam e conseguiram rentabilizar o mediatismo conquistado durante as suas passagens pela Guiné e por Moçambique não lhes permitiu pôr em prática os respectivos programas políticos. Pelo contrário, a sua acção apenas contribuiu para debilitar decisivamente o Governo e o regime político que serviram e, acima de tudo, para destruírem um império que como chefes políticos e militares tiveram sempre a intenção de preservar, ainda que em termos diferentes daqueles que Marcello Caetano e os seus colaboradores mais próximos consideravam ser os mais realistas e racionais.
Tivessem oficiais generais como António de Spínola e Kaúlza de Arriada resistido à tentação de fazerem política fora dos parâmetros em que a tinham feito durante as suas passagens pela Guiné e por Moçambique e muito provavelmente o “movimento dos capitães” nunca teria conseguido derrubar um Governo, um regime e um império.
06/09/2014
Fernando Martins