As condições de detenção do grupo de jovens condenados são vistas como reflexo das falhas do sistema prisional angolano. O Governo tem construído novas prisões, mas a sobrelotação está a piorar.
Sem água para beber ou para tomar banho, os detidos na cadeia de Calomboloca, a cerca de 100 quilómetros de Luanda, são obrigados a esperar que as visitas lhes tragam de beber. Lá dentro, o esquema é agarrar em garrafas de plástico vazias, cortá-las, virá-las ao contrário usando-as como funis para recolher a água da chuva.
Esta é descrição que Mónica Almeida, mulher do rapper Luaty Beirão, ouviu do marido. Luaty Beirão foi condenado, na segunda-feira, com outros 16 activistas pelos crimes de “actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores”. A defesa, que interpôs recurso, fez um pedido de habeas corpuspara que os reclusos aguardem a decisão em liberdade.
No sábado, Mónica Almeida foi visitar o marido a Calamboloca, uma prisão construída recentemente na periferia de Luanda, e demorou mais de duas horas e meia a chegar, disse ao PÚBLICO por telefone este domingo. Com esta distância, as visitas regulares para o simples acto de fornecimento de bens alimentares básicos aos reclusos tornam-se inviáveis, diz. O direito dos reclusos a fazerem ligações telefónicas aos familiares também não está a ser cumprido: ou se desloca à cadeia, ou Mónica Almeida não consegue falar com Luaty. “Fizemos a visita no parlatório, totalmente escuro”, queixa-se. “Não nos conseguíamos ver um ao outro”, contou.
Na cadeia tudo depende da boa vontade de quem está de serviço, continua. São obrigados a comprar a água na cantina da cadeia para dar aos reclusos, ao dobro do preço no mercado (por volta de 1,8 euros), embora no sábado a tenham deixado ir comprar fora, pois a cantina estava fechada nesse dia.
Jornais não entram
Luaty Beirão foi colocado na ala dos criminosos assassinos, até quinta-feira, disse Mónica Almeida. Depois seria transferido para a ala dos crimes financeiros: as horas das visitas mudaram e ninguém avisou a família. Também não deixam entrar mais nenhum jornal nem revista além do Jornal de Angola. Livros são censurados, queixa-se ainda.
Mas há quem recorra, em desespero, à água da sanita, como relatou o tenente das Forças Armadas Angolanas Osvaldo Caholo, que ameaçou suicidar-se na prisão se as condições básicas não forem asseguradas. Os 17 activistas foram distribuídos por diversas cadeias. Pelo menos Osvaldo Caholo, Luaty Beirão, Afonso Mbanza Hanza estão na mesma cadeia e Mónica Almeida acredita que na mesma cela. Já Osvaldo Caholo se queixava na carta, e Luaty Beirão confirmou à mulher, que as refeições são dadas muito tardiamente: pequeno-almoço à hora de almoço, almoço à hora de lanche e jantar à hora da ceia. Os reclusos ficam horas em jejum, contou. E sem apanhar Sol.
Prisões sobrelotadas
Apesar de não ter visitado a cadeia de Calomboloca, relatos deste género não são estranhos a Lúcia da Silveira, presidente da Associação Justiça, Paz e Democracia, uma organização que desde 2000 se tem concentrado na denúncia das falhas do sistema penitenciário angolano. Ao PÚBLICO, recorda um trabalho que fez junto de presidiários da Cadeia de Viana, no ano passado. “Os detidos encontravam-se em situação lamentável, o cheiro que emanava enquanto conversávamos com eles denotava que não estavam a ter a possibilidade de fazer a higiene normal”, diz-nos em conversa telefónica a partir de Luanda.
A sobrelotação das prisões angolanas é o grande problema, diz a especialista. Na última década, a população prisional tem crescido sem cessar, tendo passado de cerca de 4000 em 2001 para mais de 21 mil em 2013. Nesse ano, a taxa de ocupação era superior a 166% e Silveira garante que este valor é hoje seguramente mais elevado (em Portugal, por exemplo, esta taxa é de quase 112%, segundo o World Prison Brief, um think tank especializado em prisões).
Em prisões sobrelotadas, os motins tornaram-se comuns. Em 2007, um motim na Cadeia Central de Luanda provocou três dezenas de mortos. O siteMaka Angola, gerido pelo jornalista e activista Rafael Marques, referia que em 2013 houve sete episódios de violência nos estabelecimentos prisionais. O próprio Governo reconheceu este problema e, nos últimos anos, construiu mais de uma dezena de novas prisões, incluindo a de Calomboloca, inaugurada há menos de três anos.
Esta não é, contudo, a solução adequada para o problema da sobrelotação, defende Lúcia da Silveira. “Podem construir-se mil cadeias” que a questão vai manter-se e até piorar, prevê. A origem da sobrelotação está no sistema judicial e na lentidão das decisões dos tribunais, especialmente para lidar com casos de pequeno crime. “O nível de criminalidade em Luanda tem crescido, e a maior parte tem motivação económica – pessoas que roubam para comer. Se não existe uma alternativa para estes crimes, obviamente que é preciso prender”, explica.
Diferença de condições
Mas relatos de maus tratos por parte dos agentes penitenciários ou de intimidação dos visitantes de detidos pouco têm a ver com questões de sobrelotação. Lúcia da Silveira reconhece que há problemas com a conduta dos funcionários das prisões, mas prefere realçar o trabalho que a sua associação tem feito para melhorar a situação. “Temos trabalhado com os serviços penitenciários para formar e informar os funcionários sobre os direitos humanos, as leis fundamentais, a lei penitenciária.”
A experiência que tem de anos de estudo e de visitas a várias prisões angolanas permite-lhe verificar que existe uma diferença nas condições que são suportadas por presos de cariz político e os restantes. “Todos os presos referem os mesmos problemas, mas as dificuldades por que passaram tiveram muito a ver com a origem do caso em si”, explica-nos, apesar de preferir não se pronunciar, para já, relativamente ao caso dos 17 activistas.
Entre os estabelecimentos que conhece pessoalmente, Lúcia da Silveira destaca a Cadeia Central de Luanda – onde estão presos seis dos activistas condenados – como “uma das piores que existem em Angola”. Até o actual ministro da Justiça, Rui Mangueira, chegou a dizer “que era necessário desactivar essa cadeia”, lembra.
Joana Gorjão Henriques e João Ruela Ribeiro/Público/ 4 de Março de 2016