O empresário entrou de rompante nos negócios com a compra da Vidago Pedras Salgadas no princípio dos anos 80. Ganhou ainda maior protagonismo quando assumiu a presidência do Sporting, no final da década. Quando sai do clube de Alvalade entra nas cervejas no Brasil e em Portugal. Agora falhou a sua aventura no petróleo.
Um empresário “versátil”: é desta forma que José de Sousa Cintra é visto pela maioria dos empresários contactados, que partilharam com ele alguns negócios ou apenas vivências, mas que ainda assim preferiram o anonimato. Apesar de ter investido em várias áreas de atividade, Sousa Cintra voltou agora à ribalta depois de ter sido surpreendido pela decisão do governo de rescindir os contratos para prospeção e exploração de petróleo no Algarve. A sua última aventura no mundo dos negócios foi anunciada em setembro de 2015, quando a sua empresa Portfuel – Petróleos de Portugal obteve permissão por parte do executivo para iniciar a prospeção de petróleo e gás natural no onshore (em terra) algarvio, nas zonas de Aljezur e de Tavira, na sua primeira incursão na pesquisa de hidrocarbonetos.
Em relação a esta surpresa de última hora, Sousa Cintra tem sido poupado nas suas palavras, dizendo apenas que “agora é com os advogados”, deixando em aberto a possibilidade de vir a pedir uma indemnização ao Estado português. Ao mesmo tempo aproveitou para tecer duras críticas ao executivo e à forma como foi conduzido todo este processo pelo secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches.
“Estão a brincar com os empresários e com as empresas. Eu tenho vários contratos para cumprir, tenho pessoas a trabalhar, tenho vários compromissos, e o secretário de Estado não quer saber disto para nada. É alérgico à iniciativa privada?
É alérgico aos empresários? Não dá para entender”, afirmou.
Mas a verdade é que o seu percurso começou cedo. Numa entrevista confessou que era um homem que trabalhava de noite e de dia e que nem tempo tinha para dormir. “Também não preciso de dormir muito, apenas cerca de quatro a cinco horas por noite. Deito-me com os problemas, levanto-me com eles. Sou um escravo do trabalho, de manhã à noite, sem parar. Até mesmo de carro, do escritório para a fábrica, aproveito para trabalhar e dito para um gravador o que preciso de fazer. Tirando o almoço e o jantar, trabalho cerca de 16 horas por dia. E levanto-me muito cedo, pelas sete da manhã”, revelou numa entrevista dada ao “Correio da Manhã” em 2003.
José de Sousa Cintra nasceu no Algarve, no seio de uma família humilde da aldeia de Raposeira, em Vila do Bispo. Mas cedo trocou os livros da escola para receber uns “trocos” na venda dos caracóis, onde batia porta a porta de balde em punho. Nessa altura ninguém acreditaria que iria ter um papel de relevo no mundo dos negócios, apesar de muitos terem representado verdadeiros fracassos.
Nas férias da escola chegou a trabalhar na Pousada Infante de Sagres e foi aí que a sua sorte mudou. Conheceu D. Manuel, conde de Caria, homem de negócios com interesses nas águas engarrafadas e na hotelaria, que costumava fazer férias naquela unidade hoteleira. Acabou por deixar um cartão com os seus contactos para o caso de Sousa Cintra precisar de alguma coisa – um cartão que mudou a sua vida. Aos 15 anos veio para Lisboa com um objetivo simples: pedir emprego ao aristocrata. Foi trabalhar como ascensorista no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade e, a partir daí, tudo mudou.
Aos 16 anos entrou como voluntário para a Marinha, mas nessa altura já tinha feito os conhecimentos certos. E, com ou sem cunha, foi parar à especialidade de transmissões e colocado na Estação Radionaval de Sagres, a poucos quilómetros da sua terra natal. Saiu de lá quatro anos depois. Pelo meio casou-se com uma professora de Lagos e, cumprido o tempo de tropa, nasceu o filho Miguel. No entanto, o casamento durou pouco tempo.
Sousa Cintra comprou ao conde de Caria a Vidago Pedras Salgadas no princípio dos anos 80 e anunciou um investimento de um milhão de contos numa cerimónia muito mediática em Trás-os-Montes.
O negócio seria vendido, já nos anos 90, ao grupo Jerónimo Martins. Cintra vira–se então para o imobiliário, uma área que conhecia muito bem desde o 25 de Abril de 1974, primeiro, como intermediário entre pequenos proprietários na Costa Vicentina e grandes investidores. Mas só depois da revolução é que começou a ver a sua fortuna a crescer. Como? Muitos proprietários de terrenos refugiaram-se no Brasil e tentavam desfazer-se de tudo a qualquer preço. E é aí que entra Cintra. Comprava esses terrenos quase ao desbarato para os vender, mais tarde, a preços muito mais altos.
A par dos negócios imobiliários, alargou então o império das águas – e chega às Pedras Salgadas, cuja empresa tinha terrenos e hotéis, que vendeu por 12 milhões de contos, nos finais da década de 90, ao grupo Jerónimo Martins – um negócio que, mais tarde, lhe trouxe verdadeiras dores de cabeça ao ter de enfrentar a barra do tribunal. Nessa altura, já apresentava uma das maiores fortunas de Portugal. E já tinha assumido entretanto o cargo de presidente da assembleia-geral da Associação Industrial Portuguesa (AIP).
Mais tarde, o empresário veio admitir que, em todas as atividades que desenvolveu, tinha paixões distintas. “No imobiliário ganha-se mais. A indústria é uma luta com mais trabalho, maior dedicação e responsabilidade. Hoje em dia, para vencer nos negócios, é preciso ter coragem. No setor das cervejas, muito importante para a nossa economia, fiz um investimento de 15 milhões de contos, mas com um grande orgulho e satisfação pessoal. Eu tenho dado a minha quota-parte para o país. Tive coragem de dar um contributo tão grande num momento particularmente difícil”, referiu nessa mesma entrevista.
Ganha protagonismo
Apesar da riqueza, nessa altura, Sousa Cintra pouco ou nada era conhecido junto do tecido empresarial português. Acabou por se tornar uma figura pública a partir do momento em que assumiu a presidência do Sporting Clube de Portugal. Numa altura em que o clube vivia uma fase de grande instabilidade, resolveu entrar na corrida eleitoral e, apesar de só ter ido a tempo de fazer seis dias de campanha, acabou por vencer o sufrágio com a maioria. A 23 de junho de 1989 assumiu a presidência do clube, onde esteve até 1995, ano em que foi substituído por Pedro Santana Lopes.
Durante os seus três mandatos, e apesar de muito investimento, a equipa de futebol do Sporting só conquistou um troféu, a Taça de Portugal de 1995/96, e, mesmo assim, com a final da competição a realizar-se numa altura em que já era Santana Lopes o presidente. A 1 de fevereiro de 1994, Sousa Cintra inaugurou o Museu do Sporting. Sempre viu o futebol como uma paixão clubista e como uma satisfação pessoal onde não se ganha nada.
Escapou ileso às “guerras” do atual presidente Bruno de Carvalho quando anunciou que iria fazer uma auditoria às contas do clube dos últimos anos 20, ou seja, a partir do fim do mandato de Sousa Cintra.
Negócio da cerveja
Depois de abandonar a presidência do Sporting voltou a dedicar-se em exclusivo à atividade de empresário. Em 1998, no Brasil, fundou a Drink In, que se iniciou na produção de cerveja com uma fábrica em São Paulo, a que se seguiu outra no Rio de Janeiro. Em dois anos tornou-se o quarto maior produtor de cerveja do Brasil e quis ser líder das águas neste mercado. O negócio acabou por ser vendido em 2007. Mas também lhe trouxe dissabores.
O certo é que o sucesso chegou a ser tão grande que o fez apostar no mercado português com a marca Cintra. Investiu 75 milhões de euros na criação de uma fábrica em Santarém, em 2002, mas, sem alcançar vendas capazes de escoar a produção, acabaria por vender o negócio em 2006 à Iberpartners, cujos acionistas eram Jorge Armindo, Vasco Pereira Coutinho, Esmeralda Dourado, António Bernardo, a família Amorim e Estela Barbot.
Pelo meio passa pela barra do tribunal. É acusado de inside trading no processo da oferta pública de aquisição (OPA) da Jerónimo Martins à Vidago Melgaço Pedras Salgadas. Em causa estava a venda da Vidago e a ação avançou pelas mãos do Banco Privado Português (BPP), mas Sousa Cintra acabou por ganhar o processo, em 2004. A ação cível reclamava uma indemnização de 1,8 milhões de euros que, com juros, implicaria uma verba a pagar de 2,5 milhões de euros, e alegava que Sousa Cintra teria já um acordo de venda com a Jerónimo Martins que viria a culminar numa OPA por parte desta sobre a Vidago.
O processo interposto em meados de 1999 foi contra cinco elementos do conselho de administração (CA) da Vidago, a título individual: José Sousa Cintra, enquanto presidente da empresa, e os vogais Miguel Cintra, Paulo Morgado, Luís Leyva e Ângelo Correia. A Portuguese Smaller Companies Fund do BPP acusou Sousa Cintra de que já estaria, à data de aquisição das ações por si detidas, a negociar com a Jerónimo Martins (JM) a sua venda. A 9 de novembro de 1996, Sousa Cintra e Soares dos Santos (presidente da JM) chegaram a acordo para a venda, e a sessão especial de bolsa da OPA sobre a Vidago ocorreu em 23 de janeiro de 1997.
Durante o processo em tribunal foi alvo de fortes críticas por parte do empresário Joe Berardo e de Paulo Morgado, diretor-geral e administrador da Vidago entre 1995 e 1998. Paulo Morgado negou ter sido o interlocutor da Vidago no negócio com a JM, reconhecendo, contudo, ter defendido a ideia da necessidade de realizar uma parceria com um grupo distribuidor para aumentar as vendas das águas. Paulo Morgado afirmou que “vários membros do conselho de administração da Vidago queriam que Miguel Sousa Cintra se envolvesse mais na empresa”, já que seria uma forma de ultrapassar a “aleatoriedade” do pai. “A relação entre pai e filho era formal. Por vezes, Miguel sabia tanto ou menos que os outros” membros do conselho de administração da Vidago, salientou.
Já o presidente da Metalgest, Joe Berardo, que em julho de 1996 vendeu a posição na empresa por, alegadamente, Sousa Cintra lhe ter garantido que o negócio da Vidago iria permanecer na família, afirmou em tribunal sentir-se “prejudicado pelo teatro que José Sousa Cintra fez”.
A Metalgest alega que se desfez, com prejuízo, de 9% que detinha na Vidago, e por isso interpôs uma ação cível contra o empresário, pedindo uma indemnização de 1,3 milhões de euros.
Mas o desfecho desta operação também não foi feliz para a empresa de distribuição que, em 2011, se viu numa situação de aperto e foi obrigada a desfazer-se do negócio das águas.
Mais ações em tribunal
Já em 2012, um tribunal brasileiro condenou o antigo presidente do Sporting a pagar 20,4 milhões de euros de indemnização à empresa Petrópolis. Na sequência deste processo, um tribunal português ordenou o arresto dos bens. Na altura, Sousa Cintra dizia sentir-se “totalmente tranquilo” e “completamente descansado” quanto ao desfecho do caso.
O caso remonta a 2008, ano em que Sousa Cintra foi condenado, por um tribunal arbitral brasileiro, a pagar 25 milhões de dólares, cerca de 20,4 milhões de euros, à Petrópolis. Considerando que fora por culpa da empresa que não se verificara o negócio de venda da fábrica de cerveja Cintra no Brasil, o empresário requereu o cumprimento da cláusula penal do contrato, que impunha uma indemnização de 25 milhões de dólares à parte incumpridora.
O facto de o ex-presidente do Sporting ter criado uma Fundação Sousa Cintra, em 2010, para a qual passou todos os seus bens, incluindo casa e recheio, foi usado como argumento pela Petrópolis de que o empresário tentava dispersar os bens para evitar pagar a indemnização. À data da legalização da fundação, o seu património estava avaliado em cerca de 20 milhões de euros.
Mais polémicas
Os problemas de Sousa Cintra não ficaram limitados apenas à barra dos tribunais. O empresário também enfrentou conflitos com o poder local quando decidiu cortar o acesso à praia do Tonel, em Sagres, colocando um portão no caminho público. A Câmara de Vila do Bispo chegou a autorizar a obra, mas acabou por recuar após protestos populares. Aliás, as divergências começaram ainda antes, quando mandou fechar o acesso público ao mar na Pedra da Bala, onde tinha mandado construir um casa que foi embargada por não respeitar os condicionamentos do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.
Estes investimentos chegaram a ser alvo de fortes críticas por parte dos seus conterrâneos, que o acusaram de comprar tudo, mas de mais tarde deixar ao abandono. Um dos casos mais polémicos foi o da urbanização das Esparregueiras, situada ao lado da estrada de acesso ao cabo de São Vicente. O loteamento, com cerca de duas centenas de fogos, beneficiou de um alvará dos anos de 1980, mas esteve abandonado.
O mesmo caminho teve o lagar da cooperativa Cartoil, em Ferreira do Alentejo. Foi apresentado em 2011 como o segundo maior lagar do mundo, representando um investimento de 16 milhões de euros, mas um desentendimento entre Sousa Cintra e o seu sócio, Carlos Olavo, levou ao abandono do projeto. Na altura, justificou este desfecho: “Fui enganado e não meto lá mais dinheiro.” Um argumento diferente do seu sócio: de acordo com Olavo, Sousa Cintra, quatro meses depois de ter assinado os documentos para entrar na empresa, quis desistir e pediu que lhe entregassem três milhões de euros. “Disse-lhe que não tinha o dinheiro no imediato e, a partir daí, recusou assinar cheques para pagar aos fornecedores”, revelou.
Estreia no negócio dos combustíveis Depois de ter investido nas mais variadas atividades, foi a vez do mercado de combustíveis, ao criar a rede de postos de abastecimento Cipol. Atualmente conta com 80 postos de venda em todo o país e chegou a anunciar a ambição de se transformar numa rede de gasolineiras low-cost. Em 2015 volta a ser notícia quando anunciou que ia avançar na pesquisa de petróleo no Algarve, que acabou agora de forma inesperada.
Já no ano passado, o governo decidiu suspender, com efeitos imediatos, os trabalhos de captação de água que a Domus Verde, uma empresa de Sousa Cintra, estava a realizar em Aljezur para o desenvolvimento de um projeto de agricultura biológica. A decisão surgiu no seguimento de uma inspeção extraordinária da Inspeção–Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e da GNR. Em causa estaria a quantidade de água que estava a ser retirada e que excedia aquela que tinha sido aprovada pela Associação Portuguesa do Ambiente. A verdade é que esta ação de fiscalização surgiu depois de ter dado entrada uma queixa-crime contra os trabalhos que estavam a ser realizados naquela zona.
Algarve Livre de Petróleo quer que Governo rescinda com Repsol/Partex
A Plataforma Algarve Livre de Petróleo (PALP) quer que o Governo rescinda os contratos de concessão, exploração e prospeção com o consórcio petrolífero Repsol/Partex e diga por que razão ainda não o fez, segundo um comunicado hoje divulgado.
De acordo com o documento, a PALP quer saber também se o Governo executou as cauções prestadas por incumprimento do plano de trabalhos.
A PALP, que agrupa associações ambientalistas e de defesa do património e luta pelo fim de todos os contratos que o Estado celebrou para prospeção e exploração de hidrocarbonetos no Algarve, considera que o executivo deveria rescindir os vínculos com aquele consórcio, com base no decreto-lei que prevê os fundamentos possíveis para estas decisões.
Entre esses fundamentos está “a inexecução injustificada dos trabalhos da prospeção, pesquisa, desenvolvimento e produção nos termos constantes dos planos e projetos aprovados”.
A PALP tomou esta posição depois de o Ministério da Economia ter informado que “irá iniciar o processo de execução das cauções prestadas pelo consórcio Repsol/ Partex, no valor de 4.500.000 euros”.
Essa decisão é justificada pelo executivo com o “incumprimento por parte deste [consórcio] do plano de trabalhos proposto para 2016, associado ao contrato de concessão para prospeção, pesquisa, desenvolvimento e exploração de petróleo na área a sul da costa algarvia designada por ‘Lagosta'”, referiu ainda o grupo de associações.
“Perguntamos, então: por que razão o Governo não rescinde o contrato?”, questionou a Plataforma, frisando que, “no mesmo ofício, o Ministério da Economia confirma que os contratos de concessão denominados ‘Aljezur’ e ‘Tavira’, celebrados com a Portfuel, foram já oficialmente rescindidos”.
A PALP quer que o Governo tome a mesma decisão de rescindir os contratos relativamente “às concessões que se mantêm em vigor” e garantiu que continuará “a desenvolver ações e a envidar esforços para que todos os processos de prospeção e exploração sejam anulados”.
A 14 de dezembro, o Governo anunciou a intenção de rescindir os contratos com a Portfuel, depois de um período de avaliação em que aguardou por pareceres da Procuradoria-Geral da República sobre a matéria.
A decisão foi bem acolhida pela PALP e pela Comunidade Intermunicipal do Algarve, que tinha já interposto na justiça, em nome dos 16 municípios do distrito de Faro, providências cautelares para travar os contratos de prospeção e exploração de petróleo e gás natural previstos para a região, além de defender a aposta em “energias limpas”.
A mesma posição foi manifestada pelo Turismo do Algarve, que qualificou a prospeção e exploração de petróleo como “muito má” para o setor e o ambiente e disse esperar que a rescisão de contrato com a Portfuel anunciada pelo Governo marcasse o fim dessa atividade na região.
Na segunda-feira, a Procuradoria-Geral da República, num parecer feito a pedido do executivo e publicado em Diário da República, conclui que a Portfuel, do empresário Sousa Cintra, não tem direito à devolução de rendas e taxas pagos desde 2015 para a prospeção e exploração exclusiva de petróleo no Algarve.
TPT com: AFP//Jornal i//Lusa//JN// 13 de Janeiro de 2017