Cinquenta anos depois da morte de Churchill, o presidente da secção portuguesa da International Churchill Society defende o legado do estadista.
Conservador, liberal, rebelde, cáustico e inconformista, Winston Churchill foi tudo isto e mais. Morreu há 50 anos, a 24 de Janeiro de 1965.
Ao longo de uma carreira política que durou seis décadas, lutou veementemente contra o nazismo e liderou a Inglaterra e a Europa até à vitória na II Guerra Mundial.
Em entrevista à Renascença, o presidente da secção portuguesa da International Churchill Society, João Carlos Espada, traça o retrato de Churchill como alguém com “uma grande força de vontade, uma grande resistência e sobretudo uma grande fé na tradição ocidental da liberdade, uma convicção que explica a persistência em enfrentar os dois grandes inimigos da sociedade aberta no século XX, o comunismo e o nazismo”.
Diz que é importante recordar Churchill nos dias de hoje. Porquê?
Churchill teve um papel fundamental no século XX, na defesa das nossas democracias ocidentais, e um papel que podemos mesmo alvitrar que sem ele, em 1940, na chefia do governo britânico, era possível que o resultado não tivesse sido o mesmo. O nazismo estava triunfante no continente europeu, as forças armadas britânicas estavam altamente fragilizadas depois da retirada de Dunkirk. Do ponto de vista estritamente racional era possível pensar que o triunfo do nazismo era inevitável. Foi Churchill que assumiu a responsabilidade da defesa da liberdade ocidental.
O que teria acontecido à Europa sem Churchill?
Há um livro muito interessante, publicado em português, que se chama “Cinco Dias em Londres, Maio de 1940”, de John Lukacs, em que ele reconstitui a situação no gabinete de guerra britânico, logo a seguir a Churchill ser nomeado primeiro-ministro. Nessa altura, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Lord Halifax, propõe uma negociação de paz entre a Inglaterra e a Alemanha nazi, e essa proposta poderia ter ido para a frente se não tivesse sido a oposição de Churchill. Ele teve um papel crucial naquele momento, naqueles dias, na escolha da resistência ao nazismo. E tinha passado a década anterior praticamente isolado, criticando o seu próprio governo pelas tentativas de apaziguamento de Hitler e alertando que a única política consistente seria enfrentá-lo.
E ele nessa posição estava relativamente só…
Estava relativamente só. Havia um grupo de deputados conservadores que gradualmente foram constituindo uma espécie de gabinete sombra do seu próprio partido, uma situação bastante peculiar, e esse gabinete era dirigido por Churchill. Foram reunindo um conjunto de altos funcionários públicos britânicos, que também é muito peculiar e invulgar, que começaram a dar informações sobre o rearmamento da Alemanha, dados confidenciais que Churchill começa a levar ao parlamento. Em 1939, Churchill é chamado para o Ministério da Marinha pelo primeiro-ministro, Neville Chamberlain, líder da política de apaziguamento, e ao chamá-lo já é um sinal de que o isolamento está a terminar. A imprensa apoia-o abertamente, e passa a ter uma grande popularidade. Quando Churchill é nomeado, um célebre jornal da altura traz em manchete “Winston is Back”.
O livro do autarca de Londres, Boris Johnson, “The Churchill Factor”, pinta o retrato de um homem que por si só pôde fazer a diferença, atribuindo-lhe totalmente o crédito na vitória da II Guerra Mundial. Concorda com este retrato?
Concordo com o papel crucial que Churchill teve na liderança da resistência britânica, mas não foi ele que fez a resistência sozinho, aliás ele refere-se a isso várias vezes: diz que o “leão” era o povo britânico e que ele apenas “fez o rugido”. Sozinho não teria podido enfrentar Hitler, mas sem a sua liderança decisiva, seria muito difícil haver resistência, porque em Maio de 1940 o próprio gabinete de guerra estava dividido. Churchill foi, de facto, absolutamente decisivo.
Ele foi visto como um “maverick”, um rebelde, um não conformista, um contra-revolucionário. Esta imagem corresponde à realidade?
Ele era bastante inconformista, mas não era um contra-revolucionário. A expressão sugere um revolucionário com um sinal político contrário, e na verdade Churchill era contrário a todas as correntes revolucionárias, quaisquer que fossem a cor política. Desde a revolução comunista na Rússia em 1917, Churchill é um crítico acérrimo, um opositor da revolução bolchevique na Rússia, e também, desde a emergência do nazismo, ele é um crítico acérrimo do nazismo.
Não lhe chamaria um contra-revolucionário. Churchill era um conservador liberal, que tinha muito orgulho na tradição inglesa, no regime parlamentar, na monarquia parlamentar, do governo limitado pela lei, do estado de direito, do governo que presta contas ao parlamento – esse era o ideário político de Churchill, e que definia a Grã-Bretanha há vários séculos.
E tanto o nazismo como o comunismo traziam propostas muito intrusivas à vida particular de cada cidadão, uma coisa que para os ingleses é muito negativa.
Há aquela famosa frase: “An Englishman’s home is his castle”, que é muito este espírito de que os modos de vida estão protegidos pela lei, o governo está não acima mas abaixo da lei, incluindo o rei. Quer o nazismo, quer o comunismo apresentaram-se como ideias inovadoras, modernas, e acusavam o sistema parlamentar de ser ultrapassado, envelhecido, incapaz de produzir os resultados que deviam produzir. Eram mensagens de inovação revolucionária, e contra isso Churchill foi sempre imune. Um aspecto importante do posicionamento político dele é a ideia de que a democracia moderna não é uma ruptura com o passado, é o resultado de uma evolução gradual que remonta às origens da civilização ocidental, à tradição grega, romana, ao cristianismo, e portanto, para Churchill, a ideia de que temos de romper com o passado era anátema.
Num artigo, escreve que Churchill traçou um perfil de Hitler como alguém que vivia com uma raiva latente: não tinha sido aceite na Academia de Belas Artes de Viena, vinha de uma família operária. Era alguém cheio de ressentimentos.
Hitler era de facto um marginal. Era muito ressentido contra a sociedade estabelecida, contra aquilo que chamamos em tom crítico o “establishment”, ele era claramente contra o “establishment”, porque tinha tido um conjunto de dificuldades na vida. Na Áustria tinha concorrido duas vezes à Academia de Artes e foi recusado. E aqui um “à parte” curioso: Churchill concorreu duas vezes à Academia Militar e só à terceira é que entrou. Mas não ficou ressentido com ninguém.
Churchill foi tido como um herói. Mas a sua carreira política é frequentemente pontuada por erros – um dos quais a indexação da libra ao padrão ouro, um decisão que teve consequências muito negativas. Como é que ele foi capaz de sobreviver politicamente a estas peripécias?
Quando hoje recordamos Churchill e o papel insubstituível que ele teve na altura na defesa da liberdade ocidental, com isso não estamos a dizer que Churchill não tenha cometido erros e alguns graves. Ele não era infalível. O ponto interessante é que conseguia recuperar. Tinha uma grande força de vontade, uma grande resistência, e sobretudo uma grande fé na tradição ocidental da liberdade. Logo a seguir à guerra ele faz um discurso importantíssimo em Zurique, em 46, em que faz um apelo à reconciliação entre a França e a Alemanha e à criação de uma comunidade europeia, uma espécie de “Estados Unidos da Europa”. Ele tinha uma grande confiança, uma grande fé e convicção na tradição da liberdade, e via a posição britânica como coluna dorsal dessa tradição. E foi essa convicção e visão que explica a persistência e a decisão de enfrentar os dois grandes inimigos da sociedade aberta no século XX, o comunismo e o nazismo.
Ao contrário do que é costume atribuir-se aos conservadores, Churchill era sensível às condições sociais dos pobres. Isto demonstra, de alguma maneira, que era um político que extravasava os limites da direita e da esquerda?
Em 1904 ele abandona a bancada conservadora e junta-se à bancada liberal por duas razões. Uma é o “free trade”, o comércio livre que os conservadores eram contra, tinham a posição proteccionista, que considerava ser uma das principais alavancas para melhorar a condição de vida de todos e em particular dos menos favorecidos, porque permitia aos consumidores terem acesso a produtos mais baratos. A segunda razão, que está particularmente relacionada com a protecção dos mais desfavorecidos, era a chamada questão social.
Churchill é a favor de uma série de reformas de natureza social. Ele e Lloyd George introduzem os fundamentos do Estado Social nos governos liberais. Em relação a superar um pouco as divisões dos partidos, é um ponto muito interessante. Em Londres há a tradição dos clubes, dos “gentlemen’s clubs”, e ele cria um novo clube, chamado “The Other Club”, que devia ser um ponto de encontro entre pessoas do centro-esquerda e do centro-direita para que pudessem dialogar e reflectir de uma forma mais descomprometida em relação ao clubismo dos partidos tradicionais. Ele procurava promover um diálogo para além das estruturas partidárias, mas não contra.
O que é que o atrai na figura de Churchill e por que dedicou tanto tempo a estudá-lo?
Quando pela primeira vez visitei [o filósofo] Karl Popper, em Inglaterra, em 1987, em casa dele, ao olhar para a biblioteca percebi que os livros eram muito seleccionados. Ele não era um coleccionador, tinha os livros fundamentais dos grandes autores. E a certa altura, chego a uma estante que está cheia de livros de Churchill e sobre Churchill. Lembro-me perfeitamente que fiquei muito surpreendido e perguntei: “Por que é que tem aqui uma estante cheia de livros sobre o Churchill, ele era basicamente um político”. Eu disse aquilo num tom um bocadinho paternalista, um bocado irreverente, mas saiu-me espontaneamente, porque era um contraste com Platão e Aristóteles.
Mandou-me sentar e disse: “Você não sabe porquê, então vou ter de lhe explicar”. Então deu-me uma “lecture” que demorou imenso tempo. E disse “você tem de saber que se não fosse este homem nós teríamos perdido a liberdade na Europa”. E depois começou a falar no papel dele e no que ele representava – no fundo, a ideia da sociedade aberta que Karl Popper tinha defendido. A seguir fui fazer o doutoramento aqui em Oxford e, desde essa conversa, fui começando a ler e à procura de coisas sobre Churchill. Começou assim.
Há hoje alguém, ou houve entretanto, que se possa considerar como o herdeiro político de Winston Churchill?
Acho que não. Houve vários líderes que consideraram Churchill como referência. O nome que vem imediatamente à memória é o de Margaret Thatcher, ela insistia muito em citar Churchill. Agora, daí a chamar-lhe herdeira dele, não diria isso. Penso que, felizmente, depois da guerra, todos os nossos grandes líderes políticos do Ocidente se reconhecem na tradição de Churchill.
E como figura é também difícil encontrar alguém com essas características.
Acho que sim, mas de certa maneira felizmente, porque não tivemos de enfrentar uma situação com a gravidade dos anos 40. O facto de não encontrarmos ninguém com aquela estatura, não diria isso num sentido pejorativo, porque a verdade é que a estatura de Churchill revelou-se perante a gravidade da ameaça. É importante recordar que todos os líderes políticos das democracias reconhecem o papel e o legado de Churchill na defesa destes valores comuns a todas as democracias, o estado de direito, o governo limitado pela lei, isso é um valor adquirido muito importante. Essa memória do papel de Churchill e dos valores que representou e pelos quais se bateu… O importante é não a perder e, sobretudo, que as novas gerações possam ter contacto com essa história da defesa da liberdade.
Foto: Arquivos do governo britânico
Matilde Torres Pereira