O repto para os portugueses irem à janela e cantarem a “Grândola Vila Morena”, uma das ‘senhas’ da Revolução de 1974, partiu da Associação 25 de Abril, que cancelou o habitual desfile na Avenida da Liberdade, em Lisboa.
Pontualmente, às 15:00, o presidente da associação, o antigo capitão de Abril Vasco Lourenço, surgiu à janela de sua casa e, do 5.º andar de um prédio na freguesia do Areeiro, em Lisboa, cantou “Grândola, Vila Morena” com um cravo vermelho na mão.
A poucos quilómetros, em frente à sede do PCP, o secretário-geral comunista, Jerónimo de Sousa, repetiu o gesto. Da varanda da sede do BE, na Rua da Palma, a coordenadora do partido, Catarina Martins, também cantou Zeca Afonso, antes de entoar “A Portuguesa”.
Pelos bairros da capital, conforme constatou a Lusa, também se foi cantando, em alguns casos com mais barulho, como em Alvalade, onde um morador da Avenida dos Estados Unidos da América colocou uma coluna à janela a dar o ‘mote’ para as dezenas de vizinhos que estavam à janela acompanharem a canção de Zeca Afonso.
Na vizinha freguesia do Areeiro, um morador colocou a “Grândola, Vila Morena” a tocar em ‘loop’ na varanda e, a cada repetição, os vizinhos iam batendo palmas.
Na Avenida Miguel Bombarda, na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, agitaram-se cravos e cantou-se a “Grândola” e o hino nacional, com a ‘ajuda’ de um megafone de um sindicato.
Depois das comemorações oficiais no parlamento realizadas durante a manhã, nas casas em frente a São Bento também se cantou em algumas varandas.
No Bairro de Inglaterra, nos Anjos, a adesão à iniciativa não foi muito grande, com pouco mais de uma dezena de pessoas nas janelas e apenas algumas a cantarem.
Na freguesia de Queijas e Barcarena, no concelho de Oeiras, algumas ruas tinham também colunas de som que reproduziram a música de Zeca Afonso depois de a sirene dos bombeiros ter assinalado as 15:00.
Na zona de Alfragide, concelho da Amadora, os moradores juntaram as suas vozes à canção que saía de um potente altifalante, batendo palmas no final e gritando, depois, as palavras de ordem “25 de Abril, sempre!”.
Na Charneca da Caparica, no concelho de Almada, o 25 de Abril começou a ser assinalado ainda antes da meia-noite, com uma carrinha a passar pelas ruas completamente desertas a tocar a primeira ‘senha’ da Revolução, “E depois do Adeus”. Hoje, pelas 15:00, foi cantada a segunda ‘senha’, antes das palmas dos moradores.
Em Vila Franca de Xira, a Câmara instalou colunas de som pela cidade e algumas dezenas de “cantores de improviso” juntaram-se ao apelo para cantar Zeca Afonso. Noutra cidade do concelho, em Alverca, também houve música e alguns agitaram as bandeiras de Portugal.
Pelo Alentejo, em Grândola, o presidente da autarquia, António Figueira Mendes, também cantou Zeca Afonso a partir de uma das janelas dos Paços do Concelho.
Mais no interior, em Portalegre, funcionários do hospital abriram janelas e cantaram.
No distrito de Évora, às 15:00, as ruas da vila de Viana do Alentejo estavam praticamente desertas, mas o silêncio na Praça da República foi quebrado pelo som que saia das colunas colocadas na parede de um edifício e pelas vozes de cerca de uma dezena de pessoas.
Em Beja, Serpa e Vidigueira também algumas dezenas de pessoas, em casa ou na rua, cantaram, algumas com cravos vermelhos nas mãos.
Mais a norte, o concelho de Chaves celebrou a conquista da liberdade de Abril com o cravo na mão e a voz na sacada!. Diversas iniciativas promovidas pela autarquia em colaboração com a associação local INDIEROR, deram alma ao sentimento da população. Ainda nos seus lares os flavienses festejaram a revolução dos cravos assistindo a uma série de curtas-metragens realizadas ou produzidas por flavienses. Também a Rádio, curiosamente precursora do movimento dos capitães, conquistou primazia de “prime-time” através da difusão de tertúlias e a emissão de um serão radiofónico com músicas emblemáticas tocadas por artistas flavienses.
Muitos, através das plataformas digitais, partilharam poesia de Abril, dezenas de imagens históricas e música de intervenção de muitos autores portugueses. O programa encerrou com a atuação do músico português Noiserv.
Na vila de Vidago, os Bombeiros Voluntários da vila, Junta de Freguesia; GNR; Casa de Cultura; Casa do Povo; e Vidago Futebol Clube associaram-se para evocar o dia 25 de Abril. Com cravos vermelhos nas mãos e nas vidraças muitos dos vidaguenses lembraram a alegria da liberdade, divulgando e cantando músicas de Zeca Afonso através das suas varandas, mostrando que, mesmo em dias de reclusão voluntária, Abril continua a cumprir-se.
No centro da cidade de Vila Real, altifalantes colocados em janelas junto ao antigo Governo Civil e à Câmara Municipal faziam ecoar Zeca Afonso.
Em Braga, Zeca Afonso também se ouviu a partir de colunas colocadas em varandas, mas foram poucos os vizinhos a juntarem-se no ‘coro’.
Por Viseu, no Rossio, ouviu-se a gravação da canção de Zeca Afonso, saída de um carro de um sindicato, mas pelas principais ruas do centro não se via ninguém à janela.
Em Paredes, no distrito do Porto, o apelo da Associação 25 de Abril parece não ter chegado e as varandas ficaram invariavelmente desertas, um pouco à semelhança do que aconteceu em Leiria, onde o silêncio apenas era pontualmente quebrado numa ou noutra janela.
Na Lousã, no distrito de Coimbra, a canção de Zeca Afonso ouviu-se sobretudo na vila, com várias famílias a aparecerem à janela pelas 15:00.
Noutro ponto do distrito, na Figueira da Foz, um militar de Abril, Góis Moço, agora coronel na reforma, ‘contagiou’ os vizinhos que o acompanharam a cantar à varanda.
A tradição também se cumpriu na Covilhã, onde, pelas 15:00, na Rua Direita, se ouviu a “Grândola, Vila Morena”, mas na Guarda foram poucos os moradores do centro da cidade a abrir as janelas.
No Funchal, militantes e simpatizantes do PCP cantaram em frente à sede regional do partido, mas pela cidade a adesão à iniciativa foi praticamente nula.
Marcelo junta-se a Ferro e à maioria parlamentar: “Esta não é uma festa de políticos”
Presidente da República afirma que “seria um absurdo cívico e um péssimo sinal deixar de evocar o 25 de Abril” e que a sessão solene no Parlamento não traduz alheamento em relação ao clima de privação nacional em tempos de Covid-19.
Foram 16 minutos de recados e “puxões de orelhas”. Marcelo Rebelo de Sousa encerrou este sábado a sessão solene de evocação do 25 de Abril colocando-se ao lado do presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e dos partidos que forçaram a realização da cerimónia no hemiciclo. O Presidente assegurou que não hesitou um minuto sobre a necessidade de estar presente no Parlamento e recordou os críticos da celebração de que esta “não é uma festa de políticos, alheia ao clima de privação vivido pela sociedade portuguesa”.
“Em tempos excecionais, de dor, sofrimento, luto, separação e de confinamento, é que mais importa evocar a pátria, a independência, a República, a liberdade e a democracia”, fundamentou o chefe do Estado, que, apesar de se ter mostrado “sensível” às dúvidas dos portugueses sobre o formato da cerimónia, observou que não seria “compreensível”, aos olhos da população, um “desencontro com a casa da democracia, num momento da vida do País que exige convergência” devido aos efeitos do surto de coronavírus.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, mesmo num quadro de emergência, as datas mais relevantes da nossa História coletiva não podem deixar de ser assinaladas. Exemplificou com 10 de Junho, com o 5 de Outubro e com o 1 de Dezembro para concluir: “O 25 de Abril é essencial e tinha de ser evocado.”
Ainda que tenha frisado que a unidade nacional não significa “unicidade” ou “unanismo”, o Presidente procurou travar as leituras divisivas – entre povo e poder político – a que a sessão se prestou. Ele próprio e os deputado não vieram de “outro país, de outro mundo ou de outra galáxia”. “Fomos a livre escolha dos portugueses. E o que nos reúne hoje são os seus dramas, anseios, angústias, pelos quais somos responsáveis”, reforçou, para realçar que não se tratou de uma comemoração em circuito fechado ou desligada dos cuidados sanitários que têm sido impostos ao País.
Num discurso que mereceu alguns ajustes, escritos à mão, já com a cerimónia a decorrer, Marcelo vincou que a vigência de um estado de emergência (com obrigação de confinamento e uma série de medidas restritivas às liberdades individuais) “implica um reforço extraordinário dos poderes do Governo”. “Quanto maiores são os poderes do Governo, maiores devem ser os poderes da Assembleia da República. E, por isso, a Assembleia da República nunca parou de funcionar”, acrescentou. “Esta sessão é um bom e não um mau exemplo”, apontou ainda, sem deixar uma palavra às “vozes discordantes” que se ouviram esta manhã.
No entanto, lá veio o remoque ao CDS e, sobretudo, a André Ventura (que deverá vir a enfrentar na próxima disputa presidencial): “O que seria incompreensível e civicamente vergonhoso era a Assembleia da República demitir-se de exercer os seus poderes. São esses os valores de Abril.” De caminho, saudou o ex-Presidente António Ramalho Eanes (que qualificou como o espelho do “espírito de unidade” do encontro), o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, único resistente em S. Bento desde a Constituinte, e recordou os quatro líderes fundadores da democracia: Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Diogo Freitas do Amaral, todos já falecidos.
Com uma pandemia ainda por controlar, Marcelo defendeu evocar Abril é também apelas a uma Europa “lúcida, solidária, empenhada e rápida a agir”, assim como capaz de “ultrapassar egoísmos e unilateralismos” e que não se permita “imolar quem ficou para trás”, ou seja, os mais vulneráveis em qualquer crise. “Evocar Abril”, prosseguiu”, é também garantir uma “comunicação social sem censura” e “redes sociais sem controlos”, atirou, parecendo ter os olhos postos ao que se passa na vizinha Espanha.
Da mesma forma que estendeu a mão à esquerda na fase inicial da intervenção, o chefe do Estado também piscou o olho ao seu eleitorado mais natural, o do centro-direita e lançou o repto para que se resista a “simplismos”, à discriminação de ideias, correntes de opinião ou pessoas, “como se o 25 de Abril fosse só de uma parte de Portugal”. A rematar, advogou que se releguem para segundo plano as “pulsões transitórias, passageiras e efémeras”: “Se Abril tivesse cedido ao efémero, a nossa liberdade e a nossa democracia teriam tardado.”
Desilusão, “violência simbólica” e críticas a Marcelo. Quatro estreantes e um repetente avaliam a sessão do 25 de Abril
Inês Sousa Real, José Luís Ferreira, André Ventura, João Cotrim de Figueiredo e Joacine Katar Moreira estiveram esta manhã no hemiciclo. Dos cinco, só a deputada não inscrita não interveio, mas todos se mostram desapontados com a sessão solene.
Quatro estreantes e um veterano das lides parlamentares. Quatro representantes de partidos e uma deputada não inscrita. Com experiências (e críticas) muito próprias, estiveram juntos na mesma sala das sessões, no Parlamento, este sábado, a viver um 25 de Abril que foi, em todos os sentidos, um momento único até hoje – e que todos desejam irrepetível.
Há 20 anos, José Luís Ferreira percorreu, pela primeira vez, os corredores do Palácio de São Bento. Inês Sousa Real, André Ventura, João Cotrim de Figueiredo e Joacine Katar Moreira estrearam-se ali fez esta semana meio ano. E se o deputado d’Os Verdes defendeu até ao último minuto que a sessão solene “não podia não se realizar” num momento como o atual, a líder parlamentar do PAN e o presidente da Iniciativa Liberal disseram desde o início que o Parlamento não podia abrir portas a convidados quando os portugueses estão há semanas confinados às quatro paredes das suas casas. André Ventura não queria, de todo, qualquer festejo.
Joacine corre noutra pista. Chegou a S. Bento como representante única de um partido, naquelas que foram três estreias absolutas nas legislativas de 2019. Mas, pelo caminho, o Livre retirou-lhe a confiança política e, depois, a Assembleia da República estreitou-lhe o espaço de intervenção. Este sábado, apesar dos protestos e dos reparos à própria esquerda, ficou em silêncio.
À VISÃO, os quatro contam como foi viver na primeira fila um dia sem paralelo na história da democracia. Um 25 de Abril em pleno estado de emergência, com todas as limitações que a pandemia implicou na organização da cerimónia e apesar da polémica que a decisão do presidente da Assembleia da República gerou. No fim, diz José Luís Ferreira, “valeu a pena”.
Sem desfile, mas com lugar reservado no coro
Antes de entrar para a sessão solene, na sala do plenário, havia sempre fotos de cravo na mão, cumprimentos nos corredores do Parlamento e andava por ali muita gente, muito mais gente do que em qualquer outro dia. Este ano, confessa José Luís Ferreira, foi tudo “um pouco estranho”. Ainda assim, o deputado d’Os Verdes garante: “A emoção é a mesma, bate cá dentro.”
Habituado a uma sala preenchida por muitas centenas de pessoas, entre deputados, membros do Governo, convidados, jornalistas e funcionários parlamentares (foram mais de 700, no ano passado), José Luís Ferreira falou, este ano, perante um público quase inexistente. Não seriam sequer 100 as pessoas na sala, pelas contas dos serviços da Assembleia da República.
Há quem esteja, não contra as comemorações, mas contra o próprio 25 de Abril
A intervenção do deputado José Luís Ferreira, d’Os Verdes, serviu, em parte, precisamente para defender que era ali que todos deviam estar, porque a situação de emergência não suspendeu a democracia. “Valeu a pena, fizemos bem, para mostrar que a Assembleia não está parada e porque isto também traz sossego às pessoas” que não sabem o que o dia de amanhã da pandemia lhes trará. “Há quem esteja, não contra as comemorações, mas contra o próprio 25 de Abril”, defende José Luís Ferreira. E, diz, “há muita gente ingénua nesta polémica” em que se pôs em causa a realização da cerimónia no Parlamento.
A sessão solene aconteceu, ainda que com limitações. Mas o mais estranho, num dia carregado de simbolismo e de “rotinas”, viria depois. “Saía daqui [da Assembleia da República] e ia para o desfile [na Avenida da Liberdade], já fazia parte da tradição”, conta. “Vou estranhar, sobretudo, a cantoria às 15 horas”, admitia, pouco antes da hora convocada pelos capitães de Abril para um coro nacional.
Vasco Lourenço pediu que, à hora marcada, e impedidos de participar nas celebrações tradicionais, os portugueses se juntassem à janela para cantar uma das senhas do 25 de Abril, “Grândola, Vila Morena”. José Luís Ferreira prometia não faltar.
A estreia cinzenta
É outra presença habitual no desfile da Avenida da Liberdade. Nesse percurso que desce uma das principais vias da capital e em que se assinala mais um ano do triunfo dos capitães de Abril, Joacine Katar Moreira cumpria sempre a tradição. “Embora, até recentemente, nunca tenha feito parte de um partido político, mesmo nessas épocas em que não estava filiada escolhia marchar ao lado do PCP”, revela à VISÃO.
“Herdeira” de duas revoluções – a do PAIGC, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, e a de 1974, em Portugal –, diz que se afastou da linha comunista devido à “relação muito pouco exata” do partido com o movimento anti-racista. Joacine entrou na Assembleia da República nas listas do Livre mas, três meses depois desse seu momento inaugural na atividade política, deputada e partido afastaram-se. Chega, por isso, ao 25 de Abril como deputada não inscrita e num ano em que tudo foi diferente.
Por um lado, não houve desfile; por outro, Joacine Katar Moreira, deputada não inscrita, pôde viver o 46º aniversário da Revolução num lugar inédito, ocupando o seu lugar de deputada na Sala das Sessões do Parlamento. De manhã, foi uma das primeiras a entrar, ainda Ferro Rodrigues se dirigia à porta da Assembleia para receber o Presidente da República. Encontrou o lugar que lhe estava destinado, sentou-se e, na hora seguinte, ouviria cada uma das intervenções dos vários partidos. Falaram todos menos ela. É isso que a leva ao desabafo: “Pela primeira vez, celebro o 25 de Abril sem muito ânimo e alegria.”
“Isto tem grande ironia porque é a primeira vez que celebro o 25 de Abril na casa da democracia, como deputada eleita pelos portugueses”, começa por dizer. Mas depois atira. “Desde a minha eleição, até hoje, a Assembleia da República tem-me mostrado um ambiente de imensa violência simbólica.” É essa, e não outra, a sua justificação para a forma como vive a data.
“Não posso falar de tristeza pelo facto de não podermos descer a Avenida da Liberdade ou por não haver hipótese de toda a gente circular e estar com quem mais ama, porque estas medidas de restrição têm como origem a enorme preocupação nacional em proteger indivíduos e famílias”, explica. “Não é a situação ideal, mas é a única capaz de nos garantir segurança perante o combate à Covid-19”, continua. A “desilusão” vem da sua própria experiência naqueles corredores. “A desilusão é com o fim da ilusão”, diz. “Esta esquerda nacional mostrou ser tão discriminadora quanto qualquer partido de direita:”
Presidente “não foi equidistante”
No PAN, só André Silva foi “repetente” na evocação da Revolução dos Cravos. Da legislatura passada para a presente, o partido aumentou a sua representação no hemiciclo, passando de um para quatro deputados. Inês Sousa Real, a líder parlamentar, assinala como “positivas” as comemorações, mas lamenta, em declarações à VISÃO, que tenha havido “alguma confusão” na preparação dos festejos.
Para o seu partido, realça, “nunca esteve em causa” assinalar-se a efeméride, com um deputado em representação de cada grupo parlamentar. Assim, aponta o dedo ao Presitente por “ter focado o discurso nas diferenças” em torno do modelo de celebração, “colocando-se de um dos lados”. Marcelo Rebelo de Sousa foi mais jogador do que árbitro? Inês Sousa Real mede as palavras: “Não foi equidistante o suficiente, como se impunha.”
Tanto o chefe do Estado como o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, “representam todos os portugueses, não os seus partidos ou as suas próprias visões”. Por isso, a líder da bancada do PAN, Inês Sousa Real, mostra-se dececionada com a circunstância de a crise sanitária ter feito com que os partidos “tenham perdido o foco dos discursos” – faltou falar do SNS, do clima e da nossa “casa comum”, de justiça, de igualdade e de bem-estar animal, aponta.
Excesso de “espuma dos dias”
Quanto a Cotrim de Figueiredo, outro novato nestas andanças, também não se mostrou particularmente entusiasmado com o plenário especial deste sábado. O deputado, que escreveu uma carta ao filho Miguel, que entrou na maioridade, reconhece ter ficado “triste” pelo que viu e ouviu no hemiciclo. “Não mencionei sequer o estado de emergência, porque acho que a cerimónia do 25 de Abril, apesar dos condicionalismos, deveria ter sido menos sobre a espuma dos dias”, fundamenta.
O presidente da IL lamenta que da esquerda à direita – “e até o Presidente da República” – tenham subido ao palanque para “tentar justificar a própria cerimónia”, quando a situação em que o País está imerso poderia ter sido uma “oportunidade para inovar e para chegar a mais pessoas”.
Cotrim confessa que a carta ao filho serviu também para alcançar o eleitorado mais jovem, sobretudo aqueles que, nascidos depois do 25 de Abril, dão “sentidos pífios à liberdade”. A evocação parlamentar e as comemorações fora do Palácio de S. Bento, por isso, devem “modernizar-se”. Os tempos são de “reanimação, a sério, da democracia”. Em síntese, o deputado único dos liberais apela a que nos próximos anos se mude o chip: “Foi um 25 de Abril muito virado para dentro e para o passado, quando devia ser virado para fora, para o futuro e para as novas gerações.”
Discursos “sem sal, sem entusiasmo, sem conteúdo”
Já fora do hemiciclo, André Ventura não desarmava: “A sessão não deveria ter sido realizada, mas não vale a pena insistir na polémica.” O presidente do Chega é taxativo e mantém a postura anti-sistema que evidenciou desde o primeiro momento do mandato parlamentar: “Achei os discursos de Ferro Rodrigues e da maioria dos líderes partidários sem sal, sem entusiasmo, sem grande conteúdo”, aponta.
As críticas mais mordazes são, porém, dirigidas a Marcelo Rebelo de Sousa, com o qual vai digladiar-se nas presidenciais do próximo ano. “A intervenção do Presidente teve conteúdo, mas foi divisivo: insistiu na questão da cerimónia sabendo que uma parte dos portugueses tinha e tem uma opinião diferente.”
“Gostei de estar presente, mas lamento que a Assembleia da República continue muito presa ao passado e com muita dificuldade de olhar para o futuro. Hoje falou se pouco de futuro”, sentencia. Ventura não fala em oportunidade perdida, mas quase…
A história esquecida do “estado de sítio” de 1975
No golpe de 25 de novembro, os “moderados” venceram os “revolucionários” – mas depois houve recolher obrigatório, escolas fechadas, jornais suspensos, censura e prisões.
Já imaginou um governo declarar-se em greve? Aconteceu em Portugal, a 20 de novembro de 1975, nas vésperas da instauração do “estado de sítio” na vasta área da Região Militar de Lisboa. Já lá iremos.
Naquele dia, pela voz do primeiro-ministro do VI Governo Provisório, o almirante Pinheiro de Azevedo, o País soube, estupefacto, que o executivo tinha decidido suspender as suas atividades sine die. Ou melhor: até que o Presidente da República e chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Costa Gomes, criasse condições para que fosse possível governar.
O PREC (Processo Revolucionário Em Curso) – que se seguiu ao golpe militar do 25 de Abril de 1974, que derrubou a ditadura salazarista do Estado Novo – estava, em 1975, numa ebulição incendiária. Na vigência do referido VI Governo Provisório, então, sucedeu de tudo: manifestantes enquadrados pela “esquerda revolucionária” cercaram o Conselho de Ministros e sequestraram a Assembleia Constituinte; a Embaixada de Espanha foi saqueada; um atentado à bomba destruiu a Rádio Renascença; e, por fim, ocorreu a original greve governamental.
Ao Presidente Francisco Costa Gomes, o povo chamava-lhe Chico Cortiça – mantinha-se sempre à tona, por mais agitadas que as águas estivessem. Na verdade, era um bombeiro para todo o serviço, que ia apagando, de forma habilidosa, os focos de incêndio. Mas, no outono de 1975, o confronto entre forças revolucionárias e moderadas, civis e militares, pela ocupação do poder, tinha chegado ao prenúncio da “guerra civil”, com metralhadoras G3 dispersas por muitas e variadas mãos.
No lado militar moderado, o “grupo dos nove”, membros do Conselho da Revolução e encabeçados por Melo Antunes e Vasco Lourenço, planeava com líderes políticos, como Mário Soares, secretário-geral do PS, a mudança da capital para o Norte. Nessa “retirada” iriam também as forças que os apoiavam (Comandos da Amadora, Artilharia de Cascais, Infantaria de Mafra e Cavalaria de Santarém), e formar-se-ia depois um parlamento, com poderes para legislar e escolher um Governo, com base num projeto de lei constitucional elaborado por Jorge Miranda. O objetivo era provocar a criação da “Comuna de Lisboa” e aí enclausurar o mais poderoso adversário militar, o COPCON (Comando Operacional do Continente), dirigido pelo carismático e revolucionário basista Otelo Saraiva de Carvalho.
Mas ninguém parecia dar pelos danos que o chefe do Estado-Maior da Força Aérea, Morais e Silva, um general de ideologia saltitante, estava a fazer na Base Escola de Paraquedistas de Tancos, dominada pela extrema-esquerda. Com ordens escritas saídas do seu gabinete, determinou, sem mais, a desativação daquela unidade. Voluntária ou involuntariamente, Morais e Silva estragou os planos de toda a gente, moderados e revolucionários, e ativou uma velha máxima militar: “O primeiro a saltar, come!”
Na madrugada de 24 para 25 de novembro de 1975, os “paras” de Tancos ocuparam o Comando da Região Aérea de Monsanto, a Escola Militar da Força Aérea e outras cinco bases aéreas. Como diz a investigadora académica Manuela Cruzeiro, “o pretexto para a concretização do golpe moderado caiu-lhes de bandeja pela ação dos ‘paras’”, extemporânea e sem comando. Os chamados “melo antunistas” (militares moderados nascidos do “grupo dos nove”) conseguiram a adesão do Presidente Costa Gomes à sua causa e, a partir daí, criou-se uma cadeia de comando institucional. E, no Palácio de Belém, de onde todas as ordens saíam, Costa Gomes, com a habilidade política que o caracterizava, chegou a um crucial acordo com Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP, do qual obteve o compromisso de que os militantes do partido se iriam abster de agir. Resultado: a esquerda revolucionária militar viu-se envolvida numa “parada demasiado alta” que, “com espanto e desespero, verificou a seguir não estar à altura de sustentar”, diz Manuela Cruzeiro.
No assalto de recuperação do Comando de Monsanto, os “paras” renderam-se de imediato. Os estúdios de Lisboa da RTP ainda foram tomados por elementos da Escola Prática de Administração Militar, e o seu segundo-comandante, Duran Clemente, solidário com os “paras”, interrompeu a Telescola para explicar aos portugueses os objetivos dos “revolucionários”. Mas a emissão seria desviada para o Porto por ordem de Belém e começou a dar o filme O Homem do Diner’s Club, uma comédia com Danny Kaye. Confronto a sério houve no cerco dos Comandos ao quartel da Ajuda da Polícia Militar (PM), onde pontificava o major Mário Tomé, então já pertencente à União Democrática Popular, partido de extrema-esquerda. Morreram dois militares dos Comandos e um da PM.
“O povo português é pacífico – não pode é ser excitado, porque é muito manipulável”
Segundo Manuela Cruzeiro, o 25 de Novembro, “tal como se deu”, deve-se, no essencial, “à ação de três homens: o incendiário Pinheiro de Azevedo, o fleumático Costa Gomes, o obstinado Vasco Lourenço [que tinha como adjunto o operacional Ramalho Eanes, futuro Presidente da República de 1976 a 1986]”. Costa Gomes costumava teorizar que “o povo português é pacífico – não pode é ser excitado, porque é muito manipulável”. Talvez tenha pensado nisso quando, logo a 25 de novembro, decretou o “estado de sítio na área da Região Militar de Lisboa”, através de um diploma que misturava referências à legislação constitucional produzida pelo I Governo Provisório, chefiado por Palma Carlos, constituído após o 25 de Abril de 1974, com uma lei de Salazar, de 1956… Esta última, aliás, era a mais importante: determinava a “superintendência” do comando militar sobre “as autoridades civis e serviços de segurança”.
Traduzindo, os governadores civis, os presidentes de câmaras, a PSP e a GNR de três distritos – Lisboa, Setúbal e Santarém – ficaram sob um férreo regime militarizado. Patrulhas da tropa vigiavam as movimentações nas ruas, as escolas fecharam e foi imposto o recolher obrigatório das 18 horas às sete da manhã. Diversos jornais viram a sua publicação suspensa (O Século, Diário de Notícias, A Capital, Jornal de Notícias, Diário de Lisboa, Diário Popular, O Comércio do Porto e Jornal do Comércio), e nos restantes órgãos de comunicação social, incluindo rádio e RTP, havia censura sobre temas militares. A mencionada lei de Salazar, que também determinava a “suspensão parcial das garantias constitucionais”, serviu igualmente aos vencedores do 25 de Novembro para procederem a prisões de militares revoltosos, à margem dos tribunais. Só Otelo teve o privilégio de ser colocado sob residência fixa.
Os restantes 30 militares detidos foram distribuídos pelas cadeias de Custóias, Santarém e Caxias. Em abril de 1976, já nenhum desses militares estava preso.
O “estado de sítio” seria levantado por Costa Gomes a 2 de dezembro de 1975. Durou oito dias. Também oito dias foi o tempo da greve do governo de Pinheiro de Azevedo: a 28 de novembro, o executivo voltou ao trabalho.
TPT com: AFP// Paulo Santos//TPT//Pedro Rainho/Octávio Lousada Oliveira/José Carlos Carvalho/J. Plácido Júnior/Luís Vasconcelos/Visão//Sapo24//MadreMedia//Lusa// 25 de Abril de 2020