Em cima, o Conselho da Revolução.
Quarenta anos depois, o peso das forças militares no desenho da Constituição e da vida democrática do país continua a dividir opiniões. Para Carlos Blanco de Morais, especialista em Direito Constitucional, o documento saído da Assembleia Constituinte em 1976 tem a marca de água de um processo todo ele marcado pela “coação” exercida pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). Já Jorge Reis Novais, também especialista em Constitucional, descreve essa suposta coação como “um conto de fadas” e um “mito urbano”.
Os dois estiveram frente-a-frente num colóquio sobre Assembleia Constituinte realizado esta quarta-feira na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), que juntou, ainda, Luís Pereira Coutinho, docente naquela faculdade, Marcelo Rebelo de Sousa e Jorge Miranda – ambos deputados constituintes em 1975.
Acabou por ser Carlos Blanco de Morais a tornar a discussão mais acesa. O professor catedrático começou a sua intervenção por elogiar a Constituição, que descreveu como sendo o “compromisso de duas ideias de direito antagónicas” que “permitiram evitar uma guerra civil”. Mas a provocação viria a seguir em jeito de pergunta: durante o processo de construção da Lei Fundamental, “terá havido verdadeira liberdade democrática e partidária”? O constitucionalista acredita que não.
Carlos Blanco de Morais começou por dar o exemplo dos partidos que foram extintos, proibidos e impedidos de participar nas eleições – o Partido Liberal, o Partido do Progresso e o Partido da Democracia Cristã, à direita e centro-direita. Ou à esquerda, como o Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses/Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (PCTP/MRPP) e a Aliança Operária Camponesa (AOC).
Ora, para o professor catedrático a forma como foram perseguidos certos partidos e protagonistas políticos durante o PREC, toldou o modo como as eleições foram realizadas. Ou, como preferiu ilustrar socorrendo-se de uma frase celebrizada por Henry Ford, “o cliente pode ter o carro da cor que quiser, desde que seja preto”. No fundo, explicou, o caminho traçado acabou por estar assente num “projeto político de esquerda” e orientado por uma “via socialista” – ambos impostos, em parte, pelos militares.
Um caminho que se alterou ligeiramente depois da tentativa de golpe de Estado em novembro de 1975. Aí, depois da vitória da ala militar mais moderada, institui-se uma “via mais democrática”, mas, ainda assim “pouco robusta”, que acabou por enfraquecer a vida democrática do país até aos dias de hoje, considera.
Sintomas disso mesmo é termos, hoje, um sistema minado pelas“suspeitas de corrupção”, por “colocações de quadros partidários e de juventudes partidárias” em altos cargos da Administração Pública e um “primeiro-ministro preso”, explicou.
A resposta de Jorge Reis Novais, professor associado na FDUL, não se fez esperar: “Aquilo que eu ouvi assemelha-se mais a um conto de fadas. Tivemos um golpe militar em que o poder foi depois devolvido aos civis. Foi por esta via que se instaurou a democracia e que se conseguiu a Constituição. Se não tivéssemos a sabedoria e razoabilidade de ambas as partes [militares e poder político] ela não teria resistido até hoje”, defendeu.
Mais: Jorge Reis Novais descreveu mesmo a suposta coação dos militares sobre os deputados da Constituinte e sobre os partidos políticos como um “mito urbano” defendido por quem ainda acredita e defende que Portugal, durante os anos de Salazar e Marcello Caetano, “vivia num Estado de Direito”.
“Portugal viveu durante 40 anos naquilo que se pode chamar de ditadura fascista. [Mas] para muita gente e para muitos professores de Direito, Portugal era [nessa altura] um Estado de Direito – o próprio Marcello Caetano dizia que Portugal, depois do 25 de Abril, vivia sob ditadura militar”, afirmou.
Apesar das diferenças de opinião evidentes, Carlos Blanco de Morais e Jorge Reis Novais acabaram por concordar num ponto fundamental: a Constituição pode não ter sido o melhor documento, mas foi o possível numa altura de grande agitação social e política.
Uma posição partilhada, de resto, por Marcelo Rebelo de Sousa e Jorge Miranda, os dois, deputados constituintes na época. Marcelo acredita que a Assembleia Constituinte “cumpriu a sua missão” e conseguiu “legitimar o curso da revolução”, “realizar eleições livres” e desenhar uma Constituição “que sobreviveu até hoje”.
Ainda assim, e apesar de reconhecer as valências da Lei Fundamental então criada, o comentador admitiu que o processo não foi fácil. Sobretudo perante duas incógnitas chamadas PCP e CDS – os centristas acabaram mesmo por votar contra a Constituição. “Confesso que fiquei surpreendido [com a decisão do CDS]. Mas acredito que foi um“voto estratégico” para evitar que “surgisse à direita” um partido que“ganhasse com a contestação da Constituição”, explicou o professor.
O antigo líder social-democrata sublinhou, ainda, um dado curioso: “As várias revisões constitucionais acabaram por criar o chamado arco governativo – afastando o PCP, que tinha votado favoravelmente e aproximando o CDS, que tinha votado contra”.
Mesmo assim, Marcelo Rebelo de Sousa não tem dúvidas em reconhecer que hoje dificilmente votaria favoravelmente. “Se me perguntassem se voltaria a votar aquela Constituição, naquela ocasião e naquelas circunstâncias, diria que sim. Dificilmente o faria se fosse hoje”, afirmou.
Jorge Miranda, um dos dois redatores finais da Constituição a par de Vital Moreira, afinou pelo mesmo diapasão e admitiu que, à luz do que acredita e defende, “não gostava” do documento final. Ainda assim, e à semelhança do que foram defendendo todos os oradores, não tendo sido “possível realizar o ótimo, foi possível realizar o bom”.
Nesse sentido, o ex-deputado do PPD não se cansou de lembrar o quão “extremamente difíceis” eram as circunstâncias em que o país se encontrava. Por exemplo, no contexto externo, onde se vivia a “crise do petróleo, o escândalo watergate, a demissão de Nixon” e, acima de tudo, “os perigos do avanço soviético”.
Mas, e sobretudo, no contexto interno. Jorge Miranda acredita que existia uma “vontade clara” de o PCP de “tentar tomar o poder”, pela via não democrática. O constitucionalista lembrou, inclusive, a fotografia de Álvaro Cunhal, captada no momento em que regressa a Portugal onde surge em cima de um tanque de guerra “supondo-se o Lenine português”.
“Os leninistas portugueses queriam fazer aquilo que Lenine havia feito já em 1918 na Rússia e que era dissolver em Portugal a Assembleia Constituinte. Mas não o conseguiram”, defendeu Jorge Miranda.
No final, acabaram por vencer “aqueles que defendiam a legitimidade democrática”. E, mesmo nos momentos mais difíceis, “a Assembleia Constituinte era uma ilha de liberdade numa Lisboa hostil”.
O CONSELHO DA REVOLUÇÃO
Na seq
uência de acontecimentos que significaram roturas ao nível de organização social, política e económica a seguir ao 11 de Março, como a nacionalização da banca, surgiu a 14 de março de 1975 a Lei n.º 5/75, que concedeu ao Conselho da Revolução as atribuições pertencentes à Junta de Salvação Nacional, os poderes constituintes do Conselho de Estado e ainda os poderes legislativos do Conselho dos Chefes dos Estados-Maiores.
Esta mudança representou a institucionalização do poder das Forças Armadas, consumada a 17 de março de 1975 com a tomada de posse do Conselho da Revolução, constituído por vinte e cinco elementos militares.
CONSELHO DA REVOLUÇÃO, OU A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PODER MILITAR
O Cons
elho da Revolução, como organismo político militar, foi constituído na sequência do 11 de Março de 1975, o que traduz a institucionalização do Movimento das Forças Armadas (MFA). Durante um ano (de Abril de 1975 a Abril de 1976) foi o órgão cimeiro da estrutura constitucional revolucionária, desempenhando, a partir de então, um papel de muito menor influência entre os órgãos de soberania até à sua extinção em 1982.
O debate sobre a institucionalização do MFA é introduzido na ordem do dia depois de superada a crise do 28 de Setembro, alcançando particular intensidade nos primeiros meses de 1975. Apesar de existir um certo consenso, entre civis e militares, quanto à necessidade de institucionalizar o poder militar (leia-se, do MFA), rapidamente se denotam divergências relativamente ao seu lugar no aparelho de Estado e à latitude dos seus poderes. Os debates no interior do Movimento e, sobretudo, entre este e os partidos políticos, colocam esta realidade em evidência, deixando em aberto um vasto leque de possibilidades.
Os acontecimentos do 11 de Março acabam por precipitar a já prevista institucionalização do MFA, reduzindo, no entanto, a capacidade negocial dos partidos no momento de discutir os seus poderes. Nessa mesma noite, a Assembleia do MFA determina a criação de um Conselho da Revolução que será o órgão executivo do Movimento das Forças Armadas, ao qual competirá a direção da revolução.
Tal como os primeiros organismos diretivos do Movimento – Comissão Coordenadora e Conselho dos Vinte – o CR apresenta-se como guardião do Programa do MFA e garante da prossecução da ‘obra de reconstrução nacional’. Os poderes que lhe são atribuídos são vastíssimos, dispondo de poderes constituintes, militares, fiscalizadores e de conselho do Presidente da República.
Resultam, desde logo, da extinção da Junta de Salvação Nacional e do Conselho de Estado na sequência do 11 de Março, passando a competir ao Conselho da Revolução: escolher de entre os seus membros o Presidente da República e os principais chefes militares; vigiar pelo cumprimento das normas constitucionais e das leis ordinárias e apreciar os atos do Governo ou da Administração; sancionar os diplomas do Governo Provisório em matérias como a definição das linhas gerais da política económica, social e financeira, ou exercício da liberdade de expressão do pensamento, de ensino, de reunião, de associação e de crenças e práticas religiosas; pronunciar-se em todas as emergências graves para a vida da Nação e sobre outros assuntos de interesse nacional sempre que o Presidente da República o julgue conveniente.
O Conselho da Revolução dispunha ainda dos poderes legislativos até aí atribuídos ao Conselho dos Chefes de Estado-Maior dos três ramos da Forças Armadas competindo-lhe o exercício de funções legislativas sobre matérias que respeitavam à estrutura e organização das forças armadas, bem como a assuntos internos das mesmas. Finalmente, foi-lhe atribuído o “poder legislativo para as necessárias reformas de estrutura da economia portuguesa”.
Em suma, o Conselho da Revolução foi concebido como um órgão com ampla capacidade de intervenção, assumindo-se não apenas como a expressão institucional da intervenção militar na vida política mas também como uma superestrutura diretiva do Estado. A ideia base deste novo momento da revolução é a de um regime diferente. Não se trata de uma ditadura militar mas de um regime em que os militares tomam parte ativa, como condutores e agentes de mudança.
Como afirma o então Presidente da República na cerimónia de tomada de posse do Conselho da Revolução, a 17 de Março de 1975, o “País e as forças autenticamente democráticas” deveriam aceitar o novo organismo como um “«motor da Revolução» que, por caminhos de sacrifício, conduzirá Portugal ao desenvolvimento, à paz e à justiça social” . Na prática, o Conselho da Revolução representa um considerável reforço do papel político do MFA e uma garantia da sua presença na estrutura constitucional revolucionária, assumindo-se como a cúpula do poder cívico-militar.
O período de Março de 1975 a Abril de 1976 constitui a sua época áurea, ainda que a sua efetiva capacidade de direção não tenha sido constante. A grande fratura opera-se no Verão de 1975, momento em que se torna óbvia a crise de direção do MFA e as suas contradições internas no plano programático-ideológico. Enquanto órgão supremo do processo revolucionário, o Conselho da Revolução torna-se inoperante, pela constante contradição entre as suas correntes. Esta situação, bem patente na ‘epidemia de planos’ que percorre o período, acaba por fragilizar o seu papel enquanto ‘motor da revolução’.
Na sua primeira composição, o Conselho da Revolução integra um total de 25 membros, todos militares. Entre eles destacam-se o Presidente da República; os quatro chefes militares; o comandante-adjunto do COPCON; os membros da Comissão Coordenadora do Programa do MFA; e, entre outros, o primeiro-ministro, se militar.
A composição do Conselho da Revolução sofrerá várias alterações até ao Verão de 1976, sendo de destacar a integração dos comandantes das Regiões Militares, em Maio de 1975, medida justificada com a necessidade de proceder a uma descentralização regional dos poderes do Conselho e de garantir uma informação atualizada das realidades concretas do país. Como resultado desta decisão os conselheiros Franco Charais e Pezarat Correia assumem o comando das Regiões Militares Centro e Sul, respetivamente, convidando-se o comandante da Região Militar Norte, Eurico Corvacho, a integrar o Conselho. Na Região Militar de Lisboa a situação permanece inalterada uma vez que Otelo Saraiva de Carvalho fazia parte do elenco inicial do Conselho.
Esta reestruturação, que elevou o número de conselheiros para 30, completa-se com a nomeação do conselheiro Pinto Soares como comandante da Academia Militar. Passado o pico do Verão quente de 1975, e fracassada a experiência de concentração de poderes num diretório integrando o Presidente da República, Francisco da Costa Gomes, o primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, e o comandante do COPCON, Otelo Saraiva de Carvalho, o Conselho da Revolução sofre uma profunda reestruturação.
A recomposição empreendida, na sequência da Assembleia de Tancos, traduz-se numa considerável redução do número de conselheiros, que de 30 passam para 18.
Fonte: Aniceto Afonso, Carlos Matos Gomes e Maria Inácia Rezola.
TIAGO PETINGA
LUSA
Miguel Santos
Observador
13/05/2015